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terça-feira, 23 de abril de 2024

 

A síndroma Tolstoïevsky

estatuadesal

22 de Abril de

(Slobodan Despot, in Despotica, 8/8/2014, trad. José Catarino Soares)

2017. Slobodan Despot, durante a apresentação do seu romance, “Le Rayon Bleu

Nota Introdutória do tradutor

O autor deste texto, Slobodan Despot, é um escritor e editor sérvio por nascimento, suíço por adopção e francês pelo idioma que escolheu para se exprimir. O texto “A síndroma de Tolstoïevsky” foi escrito em 2014, mas parece ter sido escrito hoje, em 2024, tão grande continua a ser a sua actualidade. O seu alvo é a russofobia, da qual tivemos e continuamos a ter mil e uma manifestações em todo o “Ocidente alargado” (Portugal incluído). Despot desenterra e expõe as raízes dessa fobia: a ignorância crassa e a sobranceria ensimesmada relativamente a um país imenso, que é também uma civilização de primeira grandeza. “Tolstoïevsky” não é uma palavra inventada por Despot. É o resultado risível da confusão frequente entre Tolstoi e Dostoïevsky, verbalmente fundidos numa só pessoa — uma confusão sintomática da ignorância crassa e sobranceria ensimesmada com que o “Ocidente”, tanto o estreito como o alargado, olha para a Rússia.

O problema da abordagem ocidental da Rússia não é tanto a falta de vontade de compreender, mas sim uma vontade excessiva de não saber nada.


Esta é a nação que produziu Pushkin e Guerra e Paz, Nijinsky e O Lago dos Cisnes; que tem uma das mais ricas tradições pictóricas do mundo; que classificou os elementos da natureza; que foi a primeira a enviar um homem para o espaço (e a última a fazê-lo); que produziu pazadas de génios no cinema, na poesia, na arquitectura, na teologia, na ciência; que derrotou Napoleão e Hitler; que publica, de longe, os melhores manuais de física, matemática e química; que conseguiu encontrar um modus vivendi secular e pacífico, baseado no respeito e na compreensão mútuos, com os seus tártaros e os seus inúmeros muçulmanos, Casares, budistas, Chukchis, Buriates e Tungúsicos; que construiu o caminho-de-ferro mais longo do mundo e que ainda o utiliza (ao contrário dos EUA, onde os lendários carris acabam comidos pela ferrugem); que explorou e cartografou meticulosamente as terras, os costumes, as etnias e as línguas do espaço euro-asiático; que constrói temíveis aviões de combate e submarinos gigantescos; que reconstruiu uma classe média em menos de quinze anos após a terceira mundialização de Gorbachev e Ieltsin; esta imensa nação, que governa um sexto da superfície terrestre, é subitamente tratada, de um dia para o outro, como um bando de brutamontes que precisam de se livrar do seu caricato e sangrento ditador antes de serem educados para servir a “verdadeira” civilização!

O Ocidente recorre ao mesmo odioso teatro de fantoches em todas as crises, de Ivan, o Terrível, a Putin-“Putler”, passando pelo czar Paulo, pela Guerra da Crimeia, pelo pobre e trágico Nicolau II e até pela URSS, onde todos os êxitos eram ditos “soviéticos” e todos os malogros denegridos como “russos”.

As nações servis, que dão aos americanos um crédito ilimitado pela sua traição e banditismo “porque nos libertaram em 1945”, não têm uma palavra ou um pensamento de gratidão pela nação que mais contribuiu para derrotar a hidra nazi... e que pagou o preço mais alto por isso. Os seus representantes eleitos são tratados como intrusos, o seu presidente é caricaturado com um ódio obsessivo e a liberdade de circulação e de comércio dos seus cidadãos, cientistas, académicos e homens de negócios é suspensa por capricho de obscuras comissões europeias, de cujos membros os povos que eles dizem representar não conhecem sequer o nome, nem por que razão ele ou ela tem nelas assento, em vez de outro qualquer fantoche das multinacionais.

Mas tudo isto não é nada. Faz parte da ordem das coisas. O Ocidente e a Rússia estão simplesmente a prolongar ad infinitum o conflito Roma-Bizâncio, alargando-o aos continentes vizinhos e até ao espaço interplanetário. Esta é a verdadeira e única guerra de civilizações. Bárbara como o saque de Constantinopla, apocalíptica como a sua queda, antiga e insidiosa como os cismas teológicos que encobrem pérfidas tomadas de poder. Escondido nas dobras do tempo, mas pronto para atacar e morder como uma armadilha para lobos. É a única armadilha, aliás, que o império ocidental não montou sozinho e não consegue desarmar. (No pressuposto de que a ameaça islâmica é apenas o produto das manobras coloniais anglo-saxónicas, da ganância do petróleo e das acções de serviços estatais ocupados a cultivar espantalhos para assustar os seus próprios súbditos, abatendo-os depois para os convencer do seu próprio poder e necessidade).

A ameaça russa, por outro lado, é de natureza diferente. Trata-se de uma civilização praticamente gémea, enraizada nas suas terras, consciente de si própria e totalmente aberta aos três oceanos, ao Ártico e aos Himalaias, às florestas da Finlândia e às estepes da Mongólia. Aqui há soberanos que ‒ desde a batalha de Kazan, ganha pelo mesmo Ivan que nos serve de papão ‒ ostentam o título de Cãs tártaros, bem como imperadores cristãos sentados na derradeira Roma, a terceira, Moscovo, que floresceu numa época em que Bizâncio gemia sob os Otomanos e o Papa sob a verga dos seus favoritos. Eis uma terra de horizontes infinitos, mas cujos contornos estão gravados na história do mundo, invioláveis embora difusos. E, por último, mas não menos importante, aqui estão os povos mais diversos que se possa imaginar, misturando os cabelos louros dos vikings com os olhos oblíquos e as peles bronzeadas da Ásia. Os russos não esperaram que a miscigenação começasse, têm-na no sangue, tão bem assimilada que já nem sequer pensam nisso.

Os cabeças-rapadas obcecados pela raça que passam nos canais de televisão anglo-saxónicos têm a mesma função que os relógios de cuco suíços: artigos para turistas.

[A Rússia] É tão parecida com a Europa. E está tão longe dela! Tão longe que os infatigáveis navegadores dos mares ‒ genoveses, ingleses, holandeses, espanhóis ‒ que conhecem o cheiro da fava tonka e a variedade das madeiras de Sumatra, nada sabem sobre a composição de um borsch [sopa de beterraba de origem ucraniana, n.t.]. Nem sequer como se pronuncia o nome desta sopa. Não é que não o possam aprender. É só que não querem. Nem querem realmente conhecer o espírito, os costumes e a mentalidade dos imigrantes exóticos que agora acolhem aos milhões e que deixam amontoar-se em guetos, porque não sabem como falar com eles.

Como criança sérvia, tive de aprender duas línguas e dois alfabetos para começar a minha vida de imigrante. Aprendi outras para conhecer o mundo em que vivo. Surpreende-me sinceramente que a maioria dos meus compatriotas suíços não saiba os outros dois idiomas principais do seu país [o alemão e o italiano, n.t.]. Como é que se pode conhecer uma pessoa se não se sabe nada sobre a língua que ela fala? É o mínimo de cortesia. E essa cortesia está cada vez mais reduzida aos rudimentos do inglês de aeroporto.

O mesmo acontece com os russos, cuja educação incorpora a cultura da Europa Ocidental e a sua própria. Onde é que se vê o inverso a Oeste do Dniepre? Desde Pedro, o Grande, que os russos se consideram plenamente europeus. Os artistas da Renascença e os pensadores do Iluminismo eram deles. Leontiev, o padre Serge Bulgakov, Repin, Bunin, Prokofiev e Shestov ainda são nossos? Claro que não. Durante dois séculos, falar francês era a regra nas famílias cultas — e por vezes ainda é. Os russos acreditavam que eram intensamente europeus, mas a Europa fez tudo o que pôde para dissipar essa ilusão. Quando os jovens russos cantam Brassens de cor, responde-se evocando “Tolstoievski”. A Europa de Lisboa a Vladivostok só era real no Leste. No Ocidente, nunca foi mais do que a projeção livresca de alguns visionários.

A Europa de Lisboa a Vladivostok! Conseguem imaginar o poder, a continuidade, a influência e os recursos de uma tal entidade? Não. Preferimos, sem dúvida, ver-nos reflectidos no Atlântico. Um mundo envelhecido e os seus próprios bandidos, desesperadamente abraçados uns aos outros sobre o mar vazio, recusando-se a ver o mundo exterior como algo mais do que um espelho ou um saque. As suas últimas trocas calorosas com a Rússia datam de Gorbachev. Normal: o zeloso cornudo tinha começado a desmantelar o seu império sem nada em troca para além de um par de botas no rancho de Reagan. Vinte anos mais tarde, os soldados da OTAN [/NATO] ocupavam todo o território, de Viena a Levive, que tinham jurado nunca tocar! No auge da Gorbymania, Alexander Zinoviev lançou o seu axioma que todos os russos deveriam aprender desde o berço: “Eles só amarão o czar enquanto ele estiver a destruir a Rússia!”

“Ah, vocês, eslavos!”, já ouvi muitas vezes dizer: “Que dom para as línguas!” Durante muito tempo, regozijei-me, tomando o elogio pelo seu valor facial. Depois, tendo viajado, compreendi finalmente. Não somos “nós, eslavos” que temos um dom para as línguas: são vocês, “europeus”, que não o têm. Não precisam, porque durante séculos acreditaram que o vosso estojo linguístico (Inglês, Francês, Alemão, Espanhol) domina o mundo. Porquê esforçar-se por falar banto? A vossa língua, o estandarte da vossa civilização, é mais do que suficiente para vós, porque para lá da vossa civilização estão os limes (como no tempo de César), e para lá dos limes, meu Deus... estão as terras dos citas, dos sármatas, dos Caminhantes Brancos, em suma, da barbárie. Ou, para o dizer sem rodeios, o limite do mundo onde os navios mergulham no abismo infinito.

É por isso que, para vocês, o russo é chinês. E o chinês é árabe, e o árabe é o inimigo. No vosso olhar preso ao vosso umbigo, vocês já nem sequer têm os instrumentos cognitivos para compreender o que os outros ‒ que, de repente, começam a contar ‒ pensam e dizem realmente sobre vós. Teriam vergonha se conseguissem compreender o árabe dos pregadores dos subúrbios? Zombariam se conseguissem perceber algumas migalhas do que os empregados de mesa chineses do 13.º arrondissement [bairro em Paris, n.t.] dizem sobre vós? Rir-se-iam se conseguissem perceber a delicadeza do humor negro dos russos, em vez de se autoconvencerem, de cada vez que eles levantam uma sobrancelha, de que as lagartas dos carros de combate deles estão a milímetros do vosso relvado.

Mas vocês não se riem. Já não se riem. Até os vossos vaudevilles presidenciais são agora comentados com caras de pau. Vocês são tão sérios quanto os gatos que ronronam no silêncio do vosso recolher obrigatório, enquanto eles, os russos, ali, riem, choram e festejam nos seus apartamentos minúsculos, no seu metro sumptuoso, nos seus blocos de gelo, nas suas isbas e até sob uma chuva de granadas de obus.

“Tudo isto não é nada”, disse eu, referindo-me ao histórico mal-entendido entre nós. A parte séria está a chegar agora. Vocês não os culpam por três pedaços da Ucrânia que nem sequer sabiam que existiam. Culpam-nos por serem o que são, e por se manterem assim! Têm-lhes ressentimento por eles respeitarem a tradição, a família, os ícones, o heroísmo — em suma, todos os valores que vocês foram treinados para vomitar. Têm-lhes ressentimento por eles não organizarem o ódio a si próprios em nome do amor ao próximo. Invejam-nos por terem resolvido o dilema que vos enfraquece e vos transforma em hipócritas congénitos: até quando defenderemos cores que não são as nossas?

Culpam-nos por tudo o que vocês não conseguiram ser!

O que é mais impressionante é a quantidade de ignorância e estupidez que têm de demonstrar para manterem a vossa fantochada de um bando de brutamontes que precisam de se livrar do seu ditador caricatural e sangrento antes de serem educados para servir a “verdadeira” civilização. Porque tudo o desmente: as excelentes relações da Rússia com as nações que contam e se defendem (BRICs); o dinamismo real do seu povo; a competência dos seus estrategas; a cultura geral do primeiro russo que vos aparece à frente, por oposição à incultura especializada do “investigador” universitário parisiense que pretende explicar-nos o seu obscurantismo e o seu atraso. É porque esta miscelânea de brutamontes ainda acredita na educação e no conhecimento, quando a escola europeia produz a ignorância socializada; ainda acredita nas suas instituições, quando as da UE são risíveis; ainda acredita no seu destino, quando as velhas nações da Europa confiam o seu à bolsa e aos banqueiros de Wall Street.

A propaganda invadiu tudo, até o ar que respiramos. O governo de Obama impõe sanções ao regime de Putin: isto diz tudo! Por um lado, Guantánamo, assassinatos por drones nos quatro cantos do mundo, a suspensão dos direitos fundamentais e a licença para matar os próprios cidadãos sem julgamento — e, sobretudo, vinte e cinco anos de guerras coloniais calamitosas, sujas e falhadas que transformaram o Médio Oriente, da Bósnia a Candaar, num inferno na terra. Do outro, uma potência que está a tentar, passo a passo, limpar as suas próprias fronteiras, as mesmas fronteiras de que nos comprometemos a nunca nos aproximarmos. O vosso governo contra o regime deles...

Sabem do que se estão a privar ao separarem-se da Rússia duas vezes por século? O derradeiro refúgio para os vossos dissidentes, em primeiro lugar e acima de tudo a testemunha-chave, Edward Snowden. Das fontes de uma parte considerável da vossa ciência, da vossa arte, da vossa música, e até, actualmente, do último porta-aviões capaz de levar o vosso povo ao espaço. Mas isso não tem importância, porque submeteram a vossa ciência, a vossa arte, a vossa música e a vossa busca do espaço à lei suicida do rendimento e da especulação. E que serem seguidos e espiados a todo o momento, como vos mostrou Snowden, não vos incomoda por aí além.

Qual é o objectivo de implantar um microprocessador GPS em cães que já estão presos por uma trela? Quanto à dissidência... Só serve para minar a Rússia. Tudo é bom para minar a Rússia. Incluindo os nazis raivosos de Quieve, que vocês apoiam descaradamente e não hesitam em acicatar contra os seus próprios concidadãos. Seja qual for o resultado, haverá sempre alguns milhares de eslavos a menos...

O que é que a Rússia vos fez para estarem tão dispostos a desencadear contra ela as forças mais sanguinárias da maldade humana: os nazis e os jihadistas? Como é que podem pensar em eludir um povo espalhado por onze fusos horários? Exterminando-o ou escravizando-o?

(É verdade que “todas as opções estão em cima da mesa”, como se diz na OTAN[/NATO]). Depor do exterior um chefe de Estado que é mais popular do que todos vós juntos? Estão loucos? Ou o mundo é demasiado pequeno para que o “Ocidente” possa coexistir com um Estado russo?

Se calhar, afinal, é isso mesmo. Actualmente, a Rússia é a guarda avançada de um novo mundo, da primeira verdadeira descolonização. A descolonização das ideias, do comércio, das moedas e das mentalidades.

A menos que vocês, atlantistas e eurocratas, consigam arrastar convosco a toalha de mesa provocando uma guerra atómica, o banquete de amanhã será multipolar. Terão apenas o lugar que merecem. Será a primeira vez na vossa história, por isso é melhor estarem preparados.

 

Europa à deriva, França NATOnizada, militarização e corrida precipitada para a guerra…

estatuadesal

22 de Abril de

(Marti MICHEL, in Le Grand Soir, 20/04/2024)

(Este texto, não é só sobre a França. É sobre todos os países europeus, Portugal incluído. Talvez a França esteja mais avançada no processo de ver que a Europa se está a destruir, com os serviços públicos a desmoronar-se devido ao desvio, cada vez mais significativo, de recursos para a guerra, para a NATO, para a Ucrânia e outras paragens de conflito.

Até agora tem ido só dinheiro. Mas, em breve, vão pedir-nos a carne e o sangue dos nossos filhos e netos. A França está a acordar. Por cá, em Portugal, dormimos ainda o sono dos idiotas.

Estátua de Sal, 22/04/2024)


A Europa à deriva, a França NATOnizada, militarização e corrida precipitada para a guerra... O que fazer?... Talvez construir uma frente unida para a paz?...Foi isso que um pequeno grupo de coletes amarelos perdidos nos subúrbios de Paris se propôs a fazer. Contactaram uma UL CGT local e, com ela, começaram a elaborar um quadro em torno de 3 propostas simples, susceptíveis de ultrapassar as divisões partidárias e conseguir reunir o maior número possível de cidadãos. 3 propostas comuns a muitos partidos (mas sim, considere as declarações deles e lá encontrará, formuladas de forma diferente, esses 3 pontos) dizendo-se pacifistas e respondendo à urgência do dia:

- Nem um euro, nem um soldado, nem uma arma para guerras
- Saída da NATO
- Reorientação da diplomacia francesa em favor da negociação e do cessar-fogo.

Estas 3 propostas excluíram deliberadamente as questões incómodas: as da origem e das responsabilidades da guerra na Ucrânia, as relativas à União Europeia neste período eleitoral.

3 propostas susceptíveis de sentar à volta da mesma mesa as diferentes componentes do chamado campo da "paz" na esperança de lançar assim a primeira pedra de uma frente única que faz tanta falta neste país. Entenda-se que, dentro de tal movimento, cada organização poderia desenvolver livremente as suas próprias análises: o essencial era que a base unitária fosse mantida.

Note-se que os resultados até agora são escassos: das 6 organizações contactadas, sem contar várias personalidades e sites alternativos, 3 simplesmente reconheceram a receção, apenas uma respondeu. Lutte Ouvrière, a quem agradecemos apesar de sua relutância, em a nomear.

Os folhetos foram impressos. Quanto à petição nacional lançada em apoio à iniciativa, as 50 assinaturas não foram alcançadas!

Então vamos parar? Seríamos tentados...

Mas aqui é que está o problema: a máquina de guerra à nossa frente está entrando em overdrive dia após dia.

Esquizofrenia Ocidental: Afundando-se na Crise e Empurrando para a Guerra

Todos os nossos meios de comunicação estão agora em pânico com a dívida pública. Em 31 de março, a dívida pública da França era estimada em € 3.000 biliões, com um déficit de € 154 biliões em 2023. Uau! Mas isso é horrível! E voltando à dos EUA: 31.400 biliões de dólares de dívida! Somos anões ao lado deles! Fique tranquilo: há uma grande diferença em relação aos americanos: eles, graças ao dólar, têm a possibilidade de fazer outros países pagarem a dívida deles. Nós não!

Curiosamente, o pânico fiscal pára nas fronteiras da despesa pública. Em suma, sabem atingir os pequenos serviços públicos que restam, os desempregados, a segurança social, as ajudas à agricultura, as pequenas e médias empresas, enfim, sabem fazer tudo isto. Congelar salários e pensões aos reformados, arranhar a superfície do Livret A explicitamente orientado para a defesa nacional, tudo é bom. Os professores recém-recrutados (medidas Attal) serão pagos abaixo do salário mínimo: 800 ou 900 euros! E os impostos? É tentador, mas é perigoso eleitoralmente... Logo se verá...

Macron disse isso: são 10 biliões de euros que devem ser recuperados. A UE estabeleceu o intervalo para a França: estamos em 5,5% de déficit, Attal propõe passar para 4,4%... Não, no final, seria melhor 5,1% para o ano, antes de se nvoltar aos sacrossantos 3%... em data posterior.

Mas a mesma mídia acha natural que o orçamento militar que deve acelerar a modernização do exército francês (diante das "ameaças inimigas"?) tenha aumentado de 43,9 biliões em 2023 para 47,2 biliões este ano (aumento de 46% desde 2017). E, garante Macron, o esforço será mantido. Nós acreditamos!

O império americano exige-o, a NATO está a trabalhar, a UE está empenhada, o nosso governo está entusiasmado: estamos em guerra! Pergunta-se contra quem: as sanções afetaram mais a Europa do que a Rússia.

Os nossos deputados concordam, apesar de tudo: em 12 de março, a Assembleia Nacional por 372 a 99 (votos de LFI e PCF) votou o acordo bilateral de segurança França/Ucrânia. Pelo voto dos deputados, são mais 13 biliões pagos diretamente pela França por conta da guerra que foram oficialmente validados (parte dos 50 biliões votados para a UE, mais a extensão de 3 biliões decidida por Macron). Você ouviu bem: 13 biliões, para serem comparados com os 10 biliões confiscados por Macron levando à destruição dos nossos serviços públicos.

E eis Macron a revelar-se como um excelente estratega da NATO. Em 7 de março, concluiu um acordo de defesa Moldávia-França. Porquê a Moldávia? Até agora, era um país neutro. Só que faz fronteira com a Ucrânia e é vizinho de um país independente muito pequeno, a Transnístria. Como resultado, a Moldávia, trabalhada pela UE e pela NATO, está a aumentar as suas provocações contra o seu pequeno vizinho, um aliado tradicional dos russos. Daí o acordo de Macron, que poderia abrir uma segunda frente nas fronteiras da Federação Russa. Em que a França seria arrastada... Finamente jogado!

Mas também estamos armando as poucas ditaduras africanas ainda leais à França. No Senegal, a França acaba de sofrer um sério revés com a derrota eleitoral de Macky Sall, até então fiel ao Hexágono.

Acrescente-se a isso a óbvia cumplicidade com o atual genocídio no Congo (6 milhões de mortos até agora!) por ação interposta do Ruanda, permitindo que a UE saqueie os recursos minerais fronteiriços.

Sem falar no apoio financeiro e militar da França ao genocida Israel, que segue a mesma lógica belicista, apesar dos apelos hipócritas de Macron por um cessar-fogo, aos quais ele sabe que Netanyahu faz orelhas moucas.

Em suma, as engrenagens estão ajustadas. A França só tem que marchar em passo rápido, a sua juventude em primeiro lugar: restauração à honra do serviço militar (Serviço Nacional Universal), retorno do uso de uniforme na escola, propaganda de recrutamento no exército em todos os lugares. E repressão a todos os níveis: 600 processos policiais e criminais foram recentemente instaurados por "apologia terrorista e antissemita", incluindo vários sindicalistas e líderes políticos.

Palestina-Ucrânia: dois pesos e duas medidas?

É o que ouvimos com frequência nas marchas de solidariedade da Palestina. Com isso, os manifestantes querem dizer a diferença de tratamento entre a Rússia e Israel em nome do direito internacional.

No entanto, a questão também poderia ser colocada de forma diferente: como explicar tamanha disparidade? A isto, há que responder que em ambos os campos de batalha são as mesmas pessoas que estão a promover a escalada, os americanos e os seus aliados europeus, fornecendo ajuda militar e aplicando sanções aqui e ali como lhes apetece, tornando assim o direito internacional uma concha vazia, com o perigo iminente do que isso implica para a paz em todo o mundo.

Em primeiro lugar, o genocídio sionista, amplamente tolerado, se não apoiado, pelo Ocidente será lembrado como uma prova impressionante aos olhos dos povos de todo o mundo de até onde pode ir a barbárie belicista de nossos governos. Os nazis esconderam os seus campos de concentração, os israelitas estão a fazer tudo com a cara descoberta: os seus soldados filmam-se durante o massacre.

Israel comporta-se como um mero agente do império norte-americano: um meio de controlar a subjugação do mundo árabe, simbolizada pelo famoso processo de Abraão.

É também um aviso aos "nossos inimigos", russos ou em breve chineses, da determinação dos EUA em manter o seu domínio a todo o custo.

A segunda parte da tragédia palestina é o roubo de gás planeado pelo Ocidente (liderado por Israel) com a cumplicidade do Egito e da Autoridade Palestiniana ao largo de Gaza.

As sanções económicas contra a Rússia perturbaram a economia global, levando à inflação global. A aquisição de novos recursos energéticos tornou-se fundamental. No entanto, os campos de gás a 30 km da costa de Gaza são uma sorte inesperada para o Ocidente.
 
Os campos de gás marinhos 1 e 2 de Gaza, identificados desde 1999, têm reservas extraíveis estimadas em cerca de 35 biliões de m3 e uma capacidade de produção anual de 1,5 biliões de m3 durante um período de 12 anos.

Recorde-se que a UE proíbe, teoricamente, qualquer transacção de recursos palestinianos por parte da potência ocupante. No entanto, não há fim para as sórdidas e ilegais negociações entre Israel, a UE e até a Índia, supervisionadas pelos EUA, tendo como pano de fundo a fatia que iria para a Autoridade Palestiniana (e, por extensão, para o Hamas).

Para a UE, a exploração direta do depósito seria realizada pelo gigante italiano ENI (Ente Nazionale Idrocarburi) de alcance global, ao qual Israel estaria a preparar-se para entregar o contrato.

E tudo isso é negociado com bombas e mortes, para grande alegria da indústria armamentista, cujos lucros continuam a explodir. Mas tudo isso não é novidade. Novidade seria: e se todos nos envolvêssemos para parar a máquina?

Construir uma frente unida pela paz

Estamos de volta ao ponto de partida. Todos os partidos, à excepção do PRCF (Polo da Renascença Comunista), que também contactámos, estão ocupados com as eleições europeias. Não lhes pedimos que façam muito: apenas que se sentem à volta de uma mesa e concordem com uma base minima... que já consta dos seus próprios programas!

Quantos cidadãos viriam a juntar-se a um movimento tão unido para travar o massacre: todas as sondagens mostram-no. Os franceses, como outros povos, não querem a guerra. Por que aceitar fazê-la, noutras paragens e com o sangue dos outros?

Todos concordam: queremos viver em paz, num mundo melhor, para nós mesmos, para os nossos filhos. "Por um mundo melhor": essas letras são as de uma de nossas músicas, a canção dos Coletes Amarelos tocada e cantada internacionalmente.

Então, vamos ao que interessa. Que aqueles que se dizem pacifistas assumam as suas responsabilidades. Ao assinarmos o apelo lançado pelo nosso pequeno grupo dos Coletes Amarelos, talvez consigamos fazer-nos ouvir. Vamos pelo menos tentar!

domingo, 21 de abril de 2024

 

Passos Coelho e os que comem criancinhas

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21 de Abril de

(António Fernando Nabais, in Aventar, 21/04/2024)

Quadro de Goya - Saturno devorando um filho

No tempo do salazarismo, havia um faduncho anticomunista que servia para alimentar o medo do papão leninista-estalinista-siberiano. Incluía, o dito faduncho, versos como “Maldita seja a Rússia soviética!” e “Malditos os que comem criancinhas!”. Quando se pensava que já não seria possível reencontrar um discurso tão primário, eis que Passos Coelho reaparece para reavivar fantasmas em que ele próprio não acredita, mas que lhe dão jeito para a campanha em que se integra, juntamente com outros intelectuais do mesmo calibre, como Paulo Otero ou João César das Neves, alguns dos autores que integram a colectânea “Identidade e Família”.

Descaindo os cantos da boca, de modo a imitar uma gravitas de estadista, Passos Coelho disse que há uma «sovietização do ensino».

Um dos mitos alimentados pela direita tola (ou pela direita que fala para tolos) é o de que a Escola Pública é uma verdadeira madraça dominada por comunistas e outros parentes desgraçadamente próximos que andam a catequizar as pobres criancinhas, que, a não serem comidas ao pequeno-almoço, hão-de transformar-se, por força da doutrinação, em futuros comedores de criancinhas, em consumidores de drogas pesadas, médias, leves e pesos-pluma e em heterossexuais convertidos em quaisquer outros sexuais que tentarão obrigar toda a população a mudar a orientação sexual.

A acreditar em Passos Coelho (a propósito de acreditar em Passos Coelho, convém relembrar), os professores portugueses andaram a receber instruções para encher a cabeça dos alunos de ideias satanicamente esquerdistas. Temos, então, de imaginar que, de acordo com a cabecinha de Passos, os professores constituem um conjunto homogéneo de pessoas

  1. acéfalas: que obedeceriam a qualquer instrução ministerial;
  2. de esquerda: haveria um ou outro professor de direita, mas viveriam, na melhor das hipóteses, aterrorizados com as brigadas vermelhas de docentes que vigiam as escolas, de kalashnikov em punho, a fim de manter o comunismo em boa ordem;
  3. sem ética: porque se achariam no direito de usar as aulas para deixar de ensinar as matérias, com comícios em cada sala de aula e com as turmas transformadas em células de pequenos soviéticos, com o caderno diário a ser substituído pelo kit pedagógico da foice e do martelo.

No mundo fantástico da cabeça de Passos Coelho, os alunos serão, ainda, seres amorfos que se limitam a obedecer cegamente às ordens dos professores. Os alunos seriam gente, toda ela, sem cabeça e sem espírito crítico, incapazes de não cumprir uma única tarefa que lhes seja imposta pelos canibais infanticidas que se disfarçam de professores.

As próprias famílias, acuadas nas suas casas, viveriam petrificadas, impossibilitadas de criticar os professores, porque, vivendo em residências sovietizadas, estão a ser permanentemente escutadas, enquanto, lá fora, as tropas rubras dos professores batem as ruas, de noite e de dia, enquanto sovietizam os passeios, as ruas, as janelas e os postes de iluminação pública.

Como explica, ainda, o Rui Correia, até a tia – talvez de Passos Coelho – é soviética, o que, a ser verdade, deve ser um desgosto enorme para a família.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

 

  A ruína moral do Ocidente

estatuadesal

19 de Abril de

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/04/2024)

Certamente que todos dormiremos mais descansados se, no seu exercício de “legítima defesa”, Israel destruir as instalações nucleares dos aiatolas. Mas dormiremos mais descansados ou mais pacificados de consciência sabendo a bomba nuclear nas mãos dos fanáticos ortodoxos de Israel, que se declaram “o povo eleito”?


A

1 de Abril — parece mentira mas não é —, Israel consumou um feito jamais visto, que me recorde, na história diplomático-militar dos tempos modernos: atacou uma instalação diplomática de um outro país na capital de um país terceiro, matando oito funcionários dessa instalação através de um míssil disparado de um avião da sua Força Aérea. Morreram nesse ataque ao Consulado-Geral do Irão em Damasco, na Síria, um comandante do Quds, a guarda revolucionária iraniana, e sete outros agentes da organização, e o edifício ficou destruído. Normalmente ou quase sempre, tais acções de execução de agentes inimigos no estrangeiro são levadas a cabo pelo Kídon, uma secção da Mossad, que as executa após receber luz verde do próprio primeiro-ministro israelita. Mas são feitas de forma tão discreta quanto possível, através de execuções a tiro, por meio de carros armadilhados ou por envenenamento, com cuidado para evitar vítimas civis — a maior parte das vezes com sucesso, mas outras vezes fracassando e até tomando inocentes por alvo. Mas agora tudo foi feito de forma espectacular e ostensiva e nem sequer visando um alvo particularmente importante. Tratou-se, para lá de qualquer dúvida legítima, de um acto de guerra e de um acto de pirataria internacional sem precedentes. Todavia, chamado a condenar o ataque de Israel no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o bloco ocidental opôs-se a qualquer condenação. Imaginem o que aconteceria se Putin tivesse disparado um míssil contra o Consulado da Ucrânia em Varsóvia...

A 14 de Abril, o Irão ripostou, que era aquilo que Israel obviamente esperava e desejava da sua acção em Damasco — e daí tê-la feito de forma tão ostensiva. Nada fazendo, o regime iraniano via ameaçada a sua fraca popularidade interna e desautorizada externamente a sua aura de único país islâmico que mantém um conflito insolúvel com Israel. Mas também não podia arriscar nada que desenca­deasse uma resposta em grande escala de Telavive e que trouxesse os americanos de volta, sem rodeios, para o apoio total a Israel. Sabendo que Washington já tinha enviado um porta-aviões para a zona, diversos caças e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o Irão fez uma coisa insólita: avisou previamente os Estados Unidos do ataque, mas garantindo que ele apenas visaria instalações militares e seria mais simbólico e para salvar a face do que verdadeiramente ameaçador. Fez o mesmo aviso aos países árabes sunitas vizinhos de Israel e, depois, com as televisões do mundo inteiro a seguirem em directo, despachou uns 400 drones que demoraram seis horas a tentar chegar ao destino, umas dezenas de mísseis de cruzeiro e alguns mísseis balísticos. Como resultado, escavou um buraco numa base área do Neguev e feriu uma jovem beduína numa zona sem sirenes nem protecção antiaérea, cuja casa as autoridades israelitas aproveitaram para mandar destruir. Após o que Teerão declarou a operação terminada, com êxito.

Foi um festim para Israel e os seus “aliados”. Imediatamente, Damasco ficou esquecido, e o que passou a vigorar em todos os noticiários e declarações, como acto primeiro do casus belli, foi o “ataque em grande escala do Irão a Israel”. Há dezenas de anos que Israel usa esta estratégia política em relação aos palestinianos: promove uma nova ocupação de terras, destruição de casas ou repressão sangrenta num posto de controlo e depois, perante uma tímida resposta, invoca um direito de legítima defesa perante um ataque de que terá sido alvo. Fez agora o mesmo com o Irão, que, não sabendo como reagir, optou perla opção mais estúpida. Depois, o Iron Dome proporcionou um show televisivo em directo, um ensaio práctico muito mais útil do que os realizados frente aos pobres rockets do Hamas e um pretexto para Biden pedir ao Congresso mais dinheiro para Israel, visto que o dinheiro dos contribuintes (e eleitores) americanos estava a ser bem empregue. Em terceiro lugar, permitiu a Israel experimentar a doce sensação de gozar da solidariedade amedrontada de países como a Jordânia, a Arábia Saudita ou os Emiratos, num regresso ao espírito dos Acordos de Abraão, estilhaçados pelo sanguinário ataque do Hamas em 7 de Outubro de 2023 e o subsequente genocídio palestiniano em Gaza. E, finalmente, se dúvidas porventura ainda houvesse em alguns ingénuos espíritos, permitiu a Israel convocar, além do esperado e indefectível apoio militar e político dos Estados Unidos, o apoio igualmente empenhado dos outros suspeitos do costume: França, Inglaterra, Alemanha, eternos campeões dos direitos humanos, grandes vendedores de armas a Israel, inescapáveis cúmplices morais do genocídio de Gaza.

No momento em que as opiniões públicas nestes países começavam a mobilizar-se para exigir dos seus Governos o fim da venda de armas a Israel, o ataque do Irão veio mesmo a calhar para abafar o assunto, fazer esquecer o massacre em Gaza ou outros temas inconvenientes, como o assassínio de sete civis estrangeiros da carrinha da organização humanitária World Kitchen. Como que por magia, Israel passou de agressor a agredido, de carrasco a vítima. E aqueles, os grandes defensores dos direitos humanos, que em seis meses não conseguiram encontrar razões suficientes para forçar Israel a parar com o morticínio de palestinianos, nem sequer para a sua condenação, agora, sim, estão revoltados com o ataque dos inofensivos drones dos aiatolas e a ofensa aos israelitas. Eles que, em seis meses, não conseguiram encontrar quaisquer razões para castigar Israel ou os seus governantes com sanções que prejudicariam os seus comuns negócios, agora, sim, vão estudar sanções ao Irão. (Mas não se admirem se, por debaixo da mesa, os mesmos, os mesmíssimos que vão aprovar as sanções, venham a montar um sistema para as contornar e até para poderem vender armas aos aiatolas, porque tudo isto é demasiado complicado para a nossa vã inteligência). E, juram eles, tentam segurar a mão de Israel, na sua justa e terrível represália (perdão, legítima defesa) sobre o Irão. Mas, no limite e além do palavreado hipócrita, deixarão que Israel faça o que quiser, como sempre. Porque confiam que a Rússia não intervirá, e assim o “louco bom”, Netanyahu, pode ser deixado à solta, porque o “louco mau”, Putin, tem a Ucrânia com que se ocupar: mesmo a calhar. E se, mesmo assim, aquilo explodir numa guerra regional e a Europa ficar sem petróleo, como em 73, paciência, dos fracos não reza a história. E teremos sempre o amigo americano para nos ajudar, como fez com o gás, substituindo-se aos russos, depois de fazer explodir os Nordstream e duplicar o preço que os europeus pagam pelo gás.

A 14 de Abril, Israel e os seus aliados não apenas detectaram no ar e destruíram 99% dos engenhos de morte enviados do Irão — também detectaram previamente e destruíram 99% das opiniões ou notícias capazes de contrariarem a versão única de mais uma vitória dos bons sobre os maus, da derrota de um ataque não provocado à “única democracia do Médio Oriente”. Uma democracia que, em seis meses, liquidou, nas suas casas, nas ruas, nas escolas, nas mesquitas e nos hospitais, 35 mil civis, dos quais 16 mil crianças, e em cujo governo há um ministro que propôs resolver o problema dos 2,3 milhões de palestinianos encerrados em Gaza com uma bomba termonuclear e outro que, mais simplesmente, jurou que “os palestinianos não existem”. Se não tivéssemos visto as imagens de quarteirões inteiros em Gaza destruídos com bombas de uma tonelada fornecidas a Israel pelos defensores dos direitos humanos, dos hospitais transformados em campos de batalha, das crianças com olhares esgazeados de fome, ainda poderíamos acreditar, talvez, que isto seria uma guerra da liberdade contra o terrorismo. Se não conhecêssemos a história, poderíamos acreditar que eram os justos a triunfar sobre os usurpadores da “Terra Santa”. E certamente que todos dormiremos mais descansados se, no seu exercício de “legítima defesa”, Israel destruir as instalações nucleares dos aiatolas. Mas dormiremos mais descansados ou mais pacificados de consciência sabendo a bomba nuclear nas mãos dos fanáticos ortodoxos de Israel, que se declaram “o povo eleito”? Qual é, afinal, o critério moral que nos distingue dos outros? Perguntem às crianças de Gaza, perguntem à rosa de Hiroxima.

Eu fiz jornalismo durante mais de 40 anos. E em todas essas décadas, seguindo a política nacional e internacional, tive muitas vezes de me conter para não confundir a hipocrisia com a própria natureza da política. Mas sempre acreditei que, no fim, seria a independência e a liberdade do jornalismo a prevenir e a evitar que isso acontecesse.

Porém, e como já o escrevi a propósito da guerra na Ucrânia, e agora o volto a escrever a propósito da guerra de Israel em Gaza, nunca tinha visto o jornalismo tão submisso à narrativa oficial, tão disposto a abdicar do contraditório e tão avesso a fazer as perguntas ocultas, as perguntas essenciais.

Isso, mais ainda do que esta miserável geração de líderes políticos, é o que mais me faz descrer no triunfo das democracias, enquanto resultado de regimes escolhidos por povos informados e livres. Oxalá eu possa estar enganado!

"Você obteve uma vitória. Aproveite a vitória”

estatuadesal

18 de Abril de

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 17/04/2024)

Israel terá de incorporar no seu cálculo estratégico o facto do Irão de hoje não ser o mesmo Irão de há duas décadas. Fica a esperança de o conselho de Biden a Netanyahu prevalecer.


Disse o presidente Joe Biden ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu no rescaldo da operação militar iraniana em território israelita, em 13-14 de abril, procurando dissuadir Israel de retaliar. Afinal Israel intercetou 99% dos drones e mísseis lançados pelo Irão. Simultaneamente, Biden foi dizendo a Netanyahu que os EUA não apoiarão uma resposta israelita a Teerão.

Telavive tem procurado insistentemente envolver os EUA numa derradeira campanha militar contra o Irão. O ataque à soberania iraniana através da ação militar contra as instalações diplomáticas de Teerão em Damasco tinha esse objetivo. Telavive sabia que estava a pisar uma linha vermelha intolerável à luz do direito internacional para qualquer Estado; sabia o que estava a fazer. Foi uma ação deliberada, esperando que uma resposta iraniana demolidora viesse colocar os EUA a seu lado num ataque massivo ao Irão. Parece que os planos de Telavive não se irão concretizar.

A resposta militar iraniana foi calibrada tendo o Irão informado previamente os EUA e os Estados vizinhos da região da realização da operação, com cerca de 72 horas de antecedência, procurando assim obviar baixas civis. O Irão pretendia atacar os alvos militares que considerava terem estado envolvidos no ataque israelita de 1 de abril, em Damasco: as bases aéreas de Nevatim e de Ramon, ambas no sul do país, e os radares e meios de defesa aérea israelita nos montes Golã, o que conseguiu com sucesso.

Os danos provocados a Israel foram considerados pelo New York Times “relativamente limitados”. A comunicação social israelita manifestou-se no mesmo sentido, pairando no ar o desincentivo a uma retaliação. Baixas civis volumosas dariam a Israel um excelente pretexto para retaliar. Não foi o caso. Telavive não foi encostada à parede como foi Teerão com o ataque do dia 1 de abril. A resposta iraniana não pisou linhas vermelhas. Washington ajudou Telavive a deter o ataque iraniano, mas parece que não a ajudará a atacar o Irão. A concretizar-se, essa falta de apoio representará uma derrota para Netanyahu.

Houve quem pensasse, entre eles eu, que com o ataque a Israel, o Irão tinha caído na armadilha montada por Telavive. Sabe-se hoje, que Teerão geriu com destreza a escalada da violência, mostrando a sua força sem ir demasiado longe na resposta, não dando pretexto para a uma reação militar israelita ou mesmo americana. Embora os EUA neguem, sabemos que foram informados da operação pelo Irão, assim como Israel através da Arábia Saudita e dos Emiratos Árabes Unidos, que lhes transmitiram os planos de ataque para que pudessem proteger o seu espaço aéreo.

Não interessa a Washington nem a Teerão uma guerra generalizada e sem controlo no Médio Oriente. Farão o que está ao seu alcance para a evitarem. Os EUA receiam que Israel possa não estar a ter em conta as potenciais consequências negativas de uma resposta. Afinal, os EUA têm cerca de 30 mil soldados relativamente vulneráveis na região, em particular na Síria e no Iraque, que não ficarão incólumes no caso de uma ação militar norte-americana contra Teerão. Se tiver de escolher entre os seus interesses e os de Telavive, Washington não terá dúvidas na preferência.

As chancelarias europeias tão silenciosas quando as instalações iranianas em Damasco foram atacadas saíram da hibernação para condenarem o Irão que, em última análise, atuava em legítima defesa ao abrigo do Art.º 51, da Carta das Nações Unidas, algo que não fizeram quando as instalações consulares em Damasco foram destruídas.

Em matéria de cinismo, Telavive não ficou atrás das chancelarias europeias. Depois dos discursos inflamados sobre a inutilidade das Nações Unidas e dos ataques às suas agências em Gaza, Israel veio pedir uma reunião do Conselho de Segurança para considerar a Guarda Revolucionária Islâmica uma organização terrorista. De notar que o Conselho de Segurança se recusou a reunir depois do ataque israelita de 1 de abril.

A narrativa das 99% interceções é útil para convencer a opinião pública da não necessidade de retaliar, sobretudo a israelita. Os danos foram limitados e as baixas em vidas humanas quase nulas, como tal não se justifica uma resposta. Tanto a imprensa israelita como a norte-americana afinaram diapasões e coordenaram o alinhamento das mensagens. Não obstante essa narrativa ganhadora, os altos-comandos israelitas deverão estar tremendamente preocupados.

Sabem que a operação iraniana não foi “fogo de artifício”. A bem escalonada defesa aérea israelita não foi capaz de deter os misseis hipersónicos lançados por Teerão. Não terá sido muito confortável ver mísseis iranianos sobrevoar o Knesset tornando evidentes as vulnerabilidades da melhor defesa aérea do mundo. Perante as imagens em circulação na internet, Telavive não teve outro remédio se não reconhecer os danos procurando, no entanto, minimizá-los. Só uma das bases aéreas foi atingida por sete mísseis hipersónicos.

Independentemente do que se disser, o Irão demonstrou capacidade para contornar o poderoso e avançado sistema antimíssil israelita. Os mísseis hipersónicos iranianos foram capazes de nulificar o avançado radar AN/TPY-2 de banda X norte-americano estacionado em Har Qeren, no deserto do Negev, com a missão de detetar os lançamentos de mísseis iranianos e transmitir os dados às baterias israelitas Arrow e David’s Sling, e às americanas THAAD que tinham por missão proteger locais sensíveis, incluindo a cidade de Dimona onde se encontram as instalações nucleares israelitas e as bases aéreas de Nevatim e Ramon, de onde terão partido as aeronaves que atacaram o consulado iraniano. Há evidência de que os mísseis balísticos hipersónicos iranianos não tiveram praticamente oposição. Não há provas de que um único tivesse sido abatido.

Parece incontornável ter de reconhecer que um sistema de radares de vigilância funcionando em proveito de defesas antimísseis extremamente sofisticadas, reforçadas pela ação do Reino Unido, França e Jordânia foram impotentes face ao ataque iraniano, não conseguindo proteger os locais acima mencionados. A isto acresce o facto de, segundo várias fontes, o ataque iraniano ter custado cerca de 30 milhões de dólares, enquanto o conjunto das interceções teria, segundo algumas estimativas, rondado os 1,3 mil milhões de dólares.

Israel estará a planear um ataque “doloroso” ao Irão, mas sem provocar vítimas evitando que se desencadeie uma guerra regional. Benjamin Netanyahu terá pedido às Forças de Defesa de Israel a elaboração de uma lista de alvos aos quais os EUA não levantariam objeções. O gabinete de guerra pretende encontrar uma forma de retaliação que não seja bloqueada pelos Estados Unidos.

Apesar das pressões de muitos líderes ocidentais, a resposta israelita parece inevitável, não se sabendo quando, como e onde irá ocorrer. O formato dessa resposta não é claro. Numa conversa telefónica com o secretário norte-americano da defesa, o ministro da defesa israelita Yoav Gallant disse: “não há outra alternativa senão ripostar contra o Irão… Israel não pode permitir que sejam disparados mísseis balísticos contra o seu território sem uma resposta”.

Por sua vez, o Irão declarou que responderá “dentro de segundos” a uma retaliação de Israel. O presidente da comissão parlamentar de segurança do parlamento iraniano Abolfazl Amouei, declarou que o Irão está preparado para usar “uma arma que nunca usou antes” se Israel prosseguir com o seu planeado ataque retaliatório.

Independentemente do que possa vir a acontecer, a ação militar iraniana em território israelita não tem precedentes e já fez história. Pela primeira vez, o Irão levou a cabo um ataque em solo israelita a partir do seu território, em vez de recorrer apenas aos seus proxies para atacar Israel.

A resposta de Telavive tem mais a ver com o precedente criado pela ação iraniana, pela afirmação de Teerão como potência regional, inspiradora dos seus seguidores, algo que Telavive não quer aceitar, do que propriamente com os danos causados. Israel terá de incorporar no seu cálculo estratégico o facto do Irão de hoje não ser o mesmo Irão de há duas décadas.

Esperemos que o conselho de Biden a Netanyahu prevaleça em detrimento da opinião daqueles que no gabinete de guerra em Telavive defendem um ataque demolidor e que se recusam a aceitar as novas realidades estratégicas. Fiquemos com a esperança uma vez que não temos certezas.