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terça-feira, 23 de abril de 2019

O 25 de Abril é a cola que nos une

por estatuadesal

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 23/04/2019)

Paes Mamede

Penso nisto e parece estranho: o 25 de Abril é a cola que nos une. Parece estranho quando lembramos as tensões que marcaram o primeiro ano e meio do regime democrático. Golpes e contragolpes, saneamentos e perseguições, destruição de bens, ocupações, confrontos físicos, processos de intenção.

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Tendo eu nascido nas vésperas do golpe militar que se transformou em revolução, não tenho memória viva desses tempos. Mas recordo, nos anos que se seguiram, o tom duro e extremado das discussões, a adjectivação permanente, as acusações mútuas.

Nas memórias daquela época há lugar para tudo. Visões mais ou menos românticas da generosidade reinante e das noites mal dormidas para construir um país novo. Ressentimentos mais ou menos exacerbados pela vida deixada à pressa nas ex-colónias, pelos desmandos da revolução, pelas perseguições e arbitrariedades cometidas. O sabor da liberdade, a alegria do fim da guerra, a esperança no futuro. Os conflitos permanentes, o questionamento radical dos valores tidos como certos.

Apesar das diferenças com que se olha para aquele período, há na sociedade portuguesa uma visão largamente partilhada sobre o regime anterior. São poucos, muito poucos, os que defendem aquilo que o 25 de Abril derrubou.

Não tinha de ser assim. Não foi assim em Espanha, onde os herdeiros de Franco participaram na transição de regime. Não foi assim na Grécia, onde os generais organizaram a saída de cena da junta militar que tinham até aí apoiado. Em ambos os casos, a ruptura com o passado foi limitada.

O que se passou em Portugal não foi uma mera transição de regime - foi uma revolução social. Os capitães de Abril puseram em causa a hierarquia militar. O programa do MFA pôs em causa o poder político e económico dominante. As centenas de milhares de pessoas que se envolveram nas dinâmicas sociais trataram de pôr em causa muitas outras formas de poder - as que vinham de trás e até as que conduziam a mudança de regime.

Muitos acreditam que o país esteve então à beira do caos e da guerra civil. De facto, nada disso aconteceu. As instituições democráticas consolidaram-se num contexto de grande mobilização social. Para se legitimar, o novo regime teve de responder às aspirações populares, expressas de formas múltiplas e por vezes contraditórias. A participação tornou-se hábito - e, em muitos casos, foi assumida como regra.

Como afirma Robert Fishman, sociólogo americano e autor do recente livro Democratic Practice - Origins of the Iberian Divide in Political Inclusion, aqueles meses iniciais formaram a nossa democracia, deixando um lastro que ainda hoje dura. Os portugueses esperam que os políticos e as instituições estejam ao serviço do bem-comum. Se há indignação face à utilização ilegítima do poder é porque se exige mais do regime - e não porque se desistiu de acreditar nele. Contrariamente ao que sucede noutros países, os governantes não olham para o protesto e para a mobilização popular como uma ameaça, mesmo quando são um embaraço.

Portugal também se destaca pelo modo como celebra a democracia. Segundo Fishman, em nenhum outro país se dá tanto valor às comemorações do Dia da Liberdade, seja no parlamento ou nas ruas. No mesmo sentido, Filipa Raimundo, investigadora e autora de Ditadura e Democracia: Legados da Memória, mostra-nos como os principais partidos convergem na rejeição da ditadura e nas dimensões centrais do regime que construímos.

Em 1974 o 25 de Abril trouxe a paz, a liberdade e a democracia. Quarenta e cinco anos depois representa ainda mais do que isso. O acesso à saúde, à educação e à protecção social para todos. O combate às desigualdades e a exigência de justiça. O desenvolvimento económico e a coesão social. A vontade colectiva de construir um país melhor.Podemos divergir em muita coisa, mas estes valores partilhamos. É a herança que Abril nos deixou.

Economista e Professor do ISCTE-IUL

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