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quarta-feira, 11 de julho de 2018

Jornal de Angola sobre Portugal: é tempo de “relação de amor e não mais de ódio”

HÁ 2 HORAS

O Jornal de Angola publicou um editorial onde refere que portugueses e angolanos têm interesse numa boa relação entre os dois países e que podem agora estabelecer "uma relação de amor".

LUSA

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  • Agência Lusa
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“Os povos angolano e português têm interesse em que as relações entre Portugal e Angola atinjam um nível que possa dinamizar a cooperação económica entre os dois países”, lê-se no Jornal de Angola desta quarta-feira. Parece que os dois países “têm tudo” para avançar para “uma relação de amor e não mais de ódio”. O editorial aborda as reuniões mantidas esta semana entre o ministro das Relações Exteriores angolano, Manuel Augusto, e António Costa, em Portugal.

Ao mesmo tempo que recorda que “os portugueses têm empresas em Angola” e que os “angolanos têm capitais aplicados em Portugal”, o jornal sublinha que “é por isso do interesse dos empresários de ambos os países que haja boas relações políticas e diplomáticas entre Angola e Portugal”, para “impulsionar, por exemplo, as relações comerciais”.

Angola e Portugal têm tudo para estabelecer exclusiva e definitivamente uma relação de amor e não mais de ódio. Angola e Portugal têm condições para se constituírem num bom exemplo de cooperação, na base do respeito mútuo”, lê-se no mesmo editorial.

Aliás, o primeiro-ministro português reforça a ideia numa publicação feita no Twitter. “Recebi o ministro das Relações Exteriores de Angola num momento auspicioso para o relacionamento entre os nossos países com o retomar das visitas de alto nível. A minha visita a Angola renovará o dinamismo dos laços que unem Portugal e Angola, os nossos povos e as empresas”, escreveu.

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António Costa

@antoniocostapm

Recebi o Ministro das Relações Exteriores de Angola num momento auspicioso para o relacionamento entre os nossos países com o retomar das visitas de alto nível. A minha visita a Angola renovará o dinamismo dos laços que unem #Portugal e #Angola, os nossos povos e empresas.

O primeiro-ministro, António Costa, visita Angola a 17 e 18 de setembro. O anúncio foi feito em Bruxelas pelo ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE), Augusto Santos Silva. Em Luanda, precisou Santos Silva, Costa irá reunir-se com o Presidente da República de Angola, João Lourenço. A visita, segundo o ministro, terá “uma componente económica muito importante porque o relacionamento comercial e em termos de investimentos recíprocos de Portugal e de Angola é muito intenso”.

No editorial, publicado antes do anúncio destas datas, lê-se que as autoridades angolanas e portuguesas “compreenderam, no interesse dos seus povos e países, que era tempo de erradicar obstáculos a uma boa convivência”, o que acontece “numa conjuntura mundial que requer muito diálogo, tendo em conta que há muitos problemas que exigem o empenho de países de diferentes continentes”.

O desanuviamento das relações entre Angola e Portugal surge depois da transferência do processo Operação Fizz, em torno do ex-vice-Presidente angolano, Manuel Vicente, sobre suspeitas de corrupção, como era pretensão do Governo angolano.

Como os últimos 50 centímetros de uma corda salvaram os rapazes da gruta. Os detalhes de um resgate quase impossível

10 Julho 20183.450

Marta Leite Ferreira

Se o fio utilizado pelos mergulhadores na gruta tivesse menos meio metro, os rapazes encurralados não teriam sido encontrados. Pormenores de um resgate que salvou 13 pessoas numa gruta da Tailândia.

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  1. Como a equipa foi descoberta: os 50 centímetros da sorte
  2. Como o grupo chegou até aquele local
  3. Como foi feito um resgate quase impossível

As operações de busca pelas doze crianças e pelo treinador que ficaram presos no interior de uma gruta no norte da Tailândia começaram no próprio dia, sábado, 23 de junho, em que o grupo — uma equipa de futebol da cidade de Mae Sai, na província de Chiang Rai — entrou no complexo de Tham Luang. Tudo teve início depois de a mãe de uma das crianças ter alertado as autoridades que o rapaz não tinha regressado a casa a seguir a uma visita de estudo com o clube da escola. Pouco tempo depois, um guarda do parque natural encontrou as bicicletas dos jovens abandonadas junto à entrada da caverna. Foi ele quem avisou a polícia de que podia haver gente no interior da gruta e que essas pessoas deviam estar encurraladas porque a chuva que caiu nesse dia teria inundado a maior parte das câmaras.

Os fuzileiros tailandeses foram chamados e as primeiras missões de busca começaram logo às duas da manhã, quando os mergulhadores do corpo militar do país se dividiram em três equipas de seis pessoas e, durante dezasseis horas, entraram alternadamente dentro da gruta para explorar as câmaras mais próximas da entrada. Essa primeira estratégia sofreu várias interrupções porque a chuva não dava tréguas e o nível da água continuava a aumentar no interior.

Os fuzileiros tailandeses foram chamados e as primeiras missões de busca começaram logo às duas da manhã locais, quando os mergulhadores do corpo militar do país se dividiram em três equipas de seis pessoas e, durante dezasseis horas, entraram alternadamente dentro da gruta para explorar as câmaras mais próximas à entrada.

Um dia depois do desaparecimento das crianças, os guardas do parque encontraram impressões digitais, sapatos e mochilas com alguns mantimentos junto à segunda câmara da gruta, a três quilómetros da entrada do complexo, o que reforçou a ideia de que os rapazes ainda podiam estar lá dentro. Apesar de as esperanças terem renascido com essa descoberta, as operações tiveram de ser suspensas porque os níveis de precipitação estavam a subir e a chuva podia inundar as únicas três câmaras que estavam secas, junto à entrada.

Na segunda-feira seguinte, no entanto, e já com o governador da região Narongsak Osottanakorn à frente das operações, os fuzileiros deram um passo importante: estabeleceram uma base na terceira câmara, a última a que tinham tido acesso. Para tal instalaram um cabo elétrico com um quilómetro de comprimento que pudesse fornecer luz aos mergulhadores e energia para alimentar sistemas de comunicação, ventiladores que mantivessem a qualidade do ar no interior do complexo e bombas de extração de água, três das quais foram montadas a 500 metros da entrada da gruta (na segunda câmara) e outras seis a cerca de 1.500 metros da entrada, na tentativa de diminuir a profundidade da inundação. Mas a energia fornecida através desse cabo elétrico teve de ser cortada por diversas vezes: chovia mais do que a água que as bombas de extração conseguiam bombear para a superfície, o que ameaçava mergulhar os fios elétricos e aumentar o risco de eletrocussão.

Soldados tailandeses montam fios elétricos no interior da gruta Tham Luang. Créditos: LILLIAN SUWANRUMPHA/AFP/Getty Images

Sempre que as condições meteorológicas o permitiam, os mergulhadores tailandeses voltavam a aventurar-se pelas águas escuras que inundavam as cavernas de Tham Luang. A corrida contra o tempo já tinha disparado, até porque a épocas das monções aproximava-se o que dificultaria ainda mais as operações. Por isso, três estratégias foram postas em prática em simultâneo: enquanto os mergulhadores continuavam em busca de corredores que levavam a novas câmaras, vários helicópteros começaram a sobrevoar a cordilheira de Doi Nang Non em busca de entradas alternativas para a grutae uma equipa de resgate dedicava-se a fazer furos na rocha calcária na tentativa de libertar alguma da água acumulada nas passagens bloqueadas.

Os helicópteros não conseguiram encontrar outras entradas viáveis para e nenhum dos furos feitos até à uma da manhã de quarta-feira, alguns dos quais com 30 metros de profundidade, foram capazes de alcançar uma nascente. Mas uma das estratégias deu bom resultado: os mergulhadores encontram Sam Yaek, uma junção em forma de T onde dois corredores a três mil metros da entrada da gruta se encontram, embora tenham sido obrigados a recuar porque a água da chuva inundou uma fenda que dava acesso a Pattaya Beach, uma bolsa de ar onde as crianças se poderiam ter resguardado.

Instalou-se um cabo elétrico com um quilómetro que pudesse fornecer luz aos mergulhadores e energia para alimentar sistemas de comunicação, ventiladores que mantivessem a qualidade do ar no interior do complexo e bombas de extração de água.

Mais de cem furos foram feitos na tentativa de libertar a água da chuva, que em algumas partes chegou a ter cinco metros de profundidade e a aumentar 15 centímetros por hora — mas o esforço foi inglório, mesmo apoiado por materiais mais sofisticados enviados pelo Departamento de Águas Subterrâneas da Tailândia e pelas barragens improvisadas à superfície, construídas para evitar a entrada de mais chuva. Uma equipa foi destacada especialmente para, também no solo, procurar fendas que pudessem permitir aos exploradores acederem às partes mais profundas da gruta com equipamentos geológicos e câmaras. A PTTEP, uma empresa de exploração de petróleo na Tailândia, enviou uma frota de drones para constituir um esquema tridimensional das cavernas e um sonar para desenhar em computador um mapa das partes submersas da gruta.

Reunião junto à entrada da terceira câmara, onde ficava a base dos mergulhadores. Créditos: LILLIAN SUWANRUMPHA/AFP/Getty Images

Como a equipa foi descoberta: os 50 centímetros da sorte

Até essa quarta-feira, já as operações de busca se prolongavam por três dias, as autoridades tailandesas operavam sozinhas. Tinham mais dificuldades do que soluções em mãos, mas um pormenor havia de delinear toda a operação de busca a partir daí: a tal secção em T encontrada poucas horas antes. Um desses corredores rumava para norte em direção ao cume da montanha, enquanto outro dava acesso a uma grande câmara do tamanho de um anfiteatro conhecida como Pattaya Beach. O caminho para essa bolsa de ar é moroso porque é composto por corredores muito estreitos e passagens sinuosas. Mas era, ainda assim, a melhor opção dos mergulhadores: Pattaya Beach, batizada assim em homenagem à atração turística em Banguecoque, não só é espaçosa como tem rochas altas onde o grupo se poderia abrigar sem estar ameaçado pela subida do nível da água. Com estas características, é possível que essa câmara tenha entradas que permitam a passagem de oxigénio que mantenha o ar saudável e pelas correntes de água a escorrer pelas paredes que possam ser bebidas pelos rapazes.

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Botijas de oxigénio são levadas para o interior da gruta para depois serem espalhadas ao longo do percurso. Créditos: KRIT PHROMSAKLA NA SAKOLNAKORN/AFP/Getty Images

Na quarta-feira, dia 26 de junho, as autoridades tailandesas pediram ajuda internacional na busca pelas doze crianças e um adulto de 25 anos perdidos dentro da gruta de Tham Luang. O auxílio chegou logo a seguir: a equipa de resgate foi integrada por três especialistas em mergulho e um especialista em grutas na Tailândia, todos eles britânicos. Mais tarde, o comando norte-americano do Indo-Pacífico enviou também um especialista em sobrevivência e uma equipa com 30 militares dos “Pararescue”, um ramo de elite do Comando de Operações Especiais da Força Aérea e do Comando de Combate Aéreo especializados em salvar e prestar cuidados médicos a pessoas envolvidas em ambientes de guerra. Mais tarde, também a Austrália, a China, o Japão e Israel responderam ao apelo vindo da Tailândia e enviaram não só mergulhadores (eram 140 no total), mas também equipas médicas, cozinheiros e soldados.

Voluntários cozinham para as equipas de resgate. Créditos: YE AUNG THU/AFP/Getty Images

Os mergulhadores britânicos eram aqueles que reuniam mais experiência. O bombeiro reformado Richard Stanton e o consultor de tecnologias de informação John Volanthen são membros da equipa de resgate de cavernas do sul e do centro de Gales. De acordo com Gary Mitchell, presidente do Conselho Britânico de Resgate em Cavernas, os dois homens “estiveram envolvidos num número considerável de resgates ao longo dos anos e ambos têm muita experiência pessoal para levar para a Tailândia”. Há oito anos foram chamados a França para resgatar um mergulhador preso e em 2004 contribuíram para o resgate de seis no México. Desta vezes, foram eles próprios a voluntariarem-se para ajudar os tailandeses nas buscas no norte do país.

Com cada vez mais elementos, as equipas de resgate decidiram adotar novas estratégias para encontrar os treze desaparecidos. Os drones e os helicópteros mobilizados para as buscas foram usados para encontrar assinaturas infravermelhas que desvendassem imagens térmicas que pudessem indicar a presença dos corpos dos rapazes; e os soldados, a par com os agentes da polícia, andaram a vasculhar a selva na cordilheira na esperança de encontrar entradas desconhecidas para a gruta.

Algumas fendas acabaram por ser avistadas nos cumes das montanhas e duas delas até davam acesso a salas vazias dentro do complexo calcário, mas era incerto quão próximas podiam estar da câmara onde os rapazes se poderiam encontrar — e eram sempre demasiado estreitas para permitir uma extração na vertical. De qualquer modo, as buscas por fendas continuaram: se não servissem para uma operação de socorro, pelo menos podiam ser úteis para comunicar com os rapazes. Até observadores de pássaros foram usados.

Entretanto, os mergulhadores britânicos tiveram uma ideia para facilitar as operações de exploração da gruta: esticar uma linha que servisse de guia ao caminho mais fácil de percorrer ao longo das câmaras. Essa linha começou a ser esticada desde a terceira câmara, onde os mergulhadores deixam os materiais de trabalho, pelo britânico John Volanthen. A chuva tinha acalmado nos últimos dois dias, por isso o consultor de tecnologias de informação decidiu aproveitar a descida do nível da água no interior da gruta para montar o fio.

Ao fim de dois quilómetros, pouco depois de ter passado Pattaya Beach, John Volanthen percebeu que não tinha mais fio e veio à superfície da câmara para perceber onde é que a podia prender. Foi então que encontrou a equipa completa, os treze, a olhar para ele.

— Levantem as mãos.
— Obrigada!
— Quantos é que vocês são?
— Treze.
— Treze?
— Sim, sim.
— Brilhante!

Ao fim de dois quilómetros, pouco depois de ter passado Pattaya Beach, John Volanthen percebeu que não tinha mais fio e veio à superfície da câmara para perceber onde é que a podia prender. Foi então que encontrou a equipa completa, os treze, a olhar para ele.

Antes de regressar, John Volanthen explicou à equipa que não voltariam naquele dia a casa: “Nós somos só dois e temos de mergulhar. Mas nós voltamos. Está tudo bem. Há muitas pessoas a virem. Muitas, muitas pessoas. Nós somos só os primeiros. Mas há muitas pessoas”. Os rapazes perguntaram que dia era e o mergulhador britânico respondeu: “Segunda-feira. Vocês estão aqui há dez dias. Foram muito fortes”. Depois prometeu regressar no dia seguinte. Se aquele fio fosse meio metro mais curto, os rapazes não teriam sido encontrados a 2 de julho. Era o suficiente para que o mergulhador não tivesse acesso à câmara onde a equipa de futebol foi encontrada.

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Como o grupo chegou até aquele local

Doze crianças e um homem de 25 anos tinham conseguido sobreviver durante dez dias sem nada mais senão a água que escorria das paredes daquela caverna. Daquilo que se sabe sobre o percurso feito pelos treze no interior da gruta, nenhum deles comeu sequer uma migalha durante esse tempo. Não tinham acesso a luz nem sabiam nadar. A falta de comida não foi um problema de maior: “O corpo tolera bastante tempo a falta de comida. O nosso organismo tem reservas naturais que vai consumindo quando fica privado de alimentos, que são os tecidos adiposos. O estômago começa a contrair naturalmente para a quantidade de produtos que entram no sistema digestivo, depois o organismo passa a dosear mais os sucos que entram na cadeia digestiva e a seguir começa a consumir a gordura que todos temos guardada no corpo. Em situações mais extremas, o organismo até consome a gordura que todos temos na pele e só depois consome também os nossos músculos”, contou ao Observador um membro dos fuzileiros formado para reagir em situações extremas como esta.

Este não é um processo eterno, mas demoramos muito mais a esgotar completamente as nossas reservas e a morrer de fome do que a esgotar a água que armazenamos no organismo: “O nosso corpo é essencialmente composto por água, por isso se não a consumirmos estamos a comprometer as funções dos rins, do pâncreas, do fígado, do cérebro e dos pulmões, por exemplo. Sem comida, o organismo aguenta 20 a 25 dias, desde que tenha água. Mas a falta de água pode provocar algumas lesões para o organismo que podem culminar numa falência multiorgânica. Interessa sobretudo que eles tenham água e ar de qualidade, isto é, que não tenham níveis de saturação muito altos de dióxido de carbono”, explicou o fuzileiro ao Observador.

Mas como é que se garante que a água que chega àquela câmara é potável ou pelo menos saudável para o organismo? De acordo com este militar, “a água da chuva passa por processos simples de filtragem ao passar pelas rochas calcárias que compõem uma gruta”: “A água passa pelas rochas, pelas areias, pelos aluviões, e enquanto faz essa passagem acaba por se livrar das impurezas que possa ter, por isso é praticamente seguro dizer que a água que escorre pelas paredes de uma gruta é potável”. Só há dois cuidados a ter: não beber a água das correntes de água subterrâneas porque não são filtradas e podem estar poluídas; e, para beber a que escorre das paredes, ensopar uma peça de roupa (como a manga de um casaco, por exemplo) e depois torcê-la para soltar a água, de modo a que as impurezas fiquem presas nas fibras da roupa.

Uma câmara semi-inundada no interior de Tham Luang. Créditos: Linh Pham/Getty Images

Os treze choraram nas primeiras comunicações com os mergulhadores mas pareciam estar estáveis. Isso tem justificação: “Em termos de sobrevivência, tudo depende muito do estado psicológico deles, do estofo e da vontade que tenham de sobreviver. Também depende se existe alguma liderança natural, o que parece ter sido o caso porque o grupo estava com o treinador e, sendo uma equipa de futebol, deve haver união e um espírito de disciplina e metodologia. Nessas situações costuma despontar alguma liderança natural que efetivamente mantenha ali um equilíbrio psicológicoe espírito de entreajuda que é fundamental”, explicou o militar. Como têm desvendado os meios de comunicação social, a contribuir para o união do grupo esteve o responsável pelos rapazes e o capitão da equipa.

O corpo tolera bastante tempo a falta de comida. O nosso organismo tem reservas naturais que vai consumindo quando fica privado de alimentos, que são os tecidos adiposos. O estômago começa a contrair naturalmente para a quantidade de produtos que entram no sistema digestivo, depois o organismo passa a dosear mais os sucos que entram na cadeia digestiva e a seguir começa a consumir a gordura que todos temos guardada no corpo.

Outro aspeto pode ter contribuído para o sucesso das doze crianças e do treinador ao longo desse tempo: a meditação, que todos estavam a praticar no momento em que foram encontrados. Quem pratica o budismo, como o treinador fazia porque esteve durante dez anos num templo para ser monge, vive o momento presente e exercita a “capacidade de ver a situação com mais clareza e ter presença de espírito para encontrar a resposta mais adequada, sem estar dependente de medos“, disse Manuela de Almeida, professora certificada de meditação e yoga.

Monges budistas visitam a gruta de Tham Luang. Créditos: YE AUNG THU/AFP/Getty Images

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Como foi feito um resgate quase impossível

Assim que os rapazes foram descobertos, a maior preocupação foi encontrar uma forma de levar produtos médicos e alimentares para junto deles e estabelecer linhas de comunicação com o exterior para que as crianças pudessem comunicar com os pais. Isso nunca chegou a acontecer porque a água podia causar eletrocussões — as duas partes só comunicavam através de cartas transportadas pelos mergulhadores. Mas duas decisões foram tomadas imediatamente: dois mergulhadores e um médico tinham de estar no interior da caverna com o grupo enquanto estivessem dentro da gruta. O médico escolhido foi o australiano Richard Harris, que com trinta anos de experiência em mergulho foi requisitado especificamente pelos especialistas internacionais presentes na missão. Estava de férias quando foi contactado para a operação. E aceitou o desafio.

Enquanto os primeiros alimentos e medicamentos chegavam à caverna pelas mãos dos mergulhadores, que eram substituídos de tempos a tempos no interior do complexo, na superfície a equipa de resgate ponderava qual seria a melhor forma de tirar o grupo dali. Havia três possibilidades: uma era ensiná-los a nadar e a mergulhar — já que apenas um sabia fazê-lo; outra era encontrar ou escavar entradas desde o cume até à câmara; e a terceira opção era esperar que a época das monções parasse e o nível da água da chuva diminuísse.

A primeira hipótese seria a mais célere e também a mais barata, mas provavelmente a mais arriscada: em entrevista ao Observador, o mergulhador Pedro Lage disse que “seria um milagre conseguir ensinar os 13 a mergulhar o suficiente para saírem todos juntos”. É que as dificuldades são muitas: “O tipo de mergulho mais difícil é em gruta. É preciso ensinar-lhes a mexer no equipamento. A falta de visibilidade causada pelas lamas pode ser assustadora. Portanto têm de estar psicologicamente preparados para não verem nada, não é só usar o equipamento. Os miúdos aprendem rápido, há alguns que podem pôr aquilo às costas e avançar. Mas há outros que podem ter medo. Dos 12 meninos, pode haver alguns que nem consigam, se tiverem a tal fobia ou inaptidão para estar dentro de água. Outros podem conseguir de um dia para o outro”.

Assim que os rapazes foram descobertos a maior preocupação foi engendrar uma forma de levar produtos médicos e alimentares para junto delas e para estabelecer linhas de comunicação com o exterior para que as crianças pudessem comunicar com os pais. Isso nunca chegou a acontecer porque a água podia causar eletrocussões, por isso as duas partes só comunicavam através de cartas transportadas pelos mergulhadores.

John Volanthen, o mergulhador britânico que encontrou as 12 crianças e o treinador. Créditos: Linh Pham/Getty Images

A segunda opção, a de encontrar ou escavar entradas para a câmara a partir do cume da montanha, seria infrutífera, contou também ao Observador o espeleologista Francisco Rasteiro, presidente do Núcleo de Espeleologia da Costa Azul. “Fazer um furo é impensável porque o mais provável era que a gruta colapsasse“, disse. É que a gruta de Tham Luang fica na cordilheira de Doi Nang Non, nas terras altas tailandesas, onde ficam serras que se estendem da Tailândia até aos Himalaias passando por Laos, Mianmar e China. Esta secção da cordilheira fica no província de Chiang Rai, cujo solo é muito rico em calcário, que por ser uma rocha sedimentar é também muito mais frágil. Na opinião de Francisco Rasteiro, o solo que compõe a caverna pode nem sequer suportar as escavações.

É o que pensa também Sérgio Barbosa, vice-presidente da Federação de Espeleologia: “É preciso ter um mapa topográfico muito bom da região, como havia quando os mineiros ficaram presos no Chile. O resto depende mais da rocha que está por baixo, mas escavar uma abertura poderia provocar desmoronamentos que esmagassem a câmara onde o grupo está ou poderia abrir fendas por onde passasse água para dentro da câmara, inundando-a”. Além disso, furar o chão poderia demorar demasiado tempo: quando o grupo de 24 mineiros ficou preso no Chile, as operações de resgate demoraram cerca de 200 dias — entre seis e sete meses.

Esperar parecia ser a hipótese mais segura, mas rapidamente tornou-se pouco viável: primeiro, porque o nível da água no interior da gruta subia cada vez mais, ameaçando inundar a câmara onde os rapazes estavam e limitar o espaço deles a menos de 10 metros quadrados; e, depois, porque a qualidade do ar piorava a todo o instante. Os níveis de oxigénio dentro da gruta tinham descido para os 15% na última sexta-feira, quando o valor normal para o cérebro se manter saudável é de 21%: um decréscimo de três pontos percentuais seria o suficiente para deixar sérias mazelas aos rapazes.

Ao mesmo tempo que a percentagem de oxigénio descia dentro da gruta, a quantidade de dióxido de carbono subia por causa da quantidade de membros das equipas de resgate a trabalhar no interior da gruta. Com estes problemas a apressar o resgate, o chefe das operações admitiu que estava “numa corrida contra o tempo”: “Os próximos três ou quatro dias a partir de agora são o tempo mais favorável para a operação e a missão de resgate, usando um dos planos de ação. Se esperarmos demasiado tempo, não sabemos quanta chuva virá“, disse o governador  Osatanakorn numa conferência de imprensa no último sábado.

Era preciso agir rápido e foi o que aconteceu: naquele mesmo dia, eram 10h da manhã em Chiang Rai e 4h da manhã em Lisboa, toda a região junto à entrada da caverna foi evacuada: treze ambulâncias foram estacionadas ali perto e um número indeterminado de helicópteros foi posto num descampado a um quilómetro. Dezoito mergulhadores — treze internacionais e cinco soldados da Marinha da Tailândia — entraram na gruta Tham Luang para resgatar as doze crianças e o adulto de 25 anos que ficaram presos a quatro quilómetros da entrada na gruta.

Desde as 21 horas da noite anterior (três da tarde em Lisboa) que a região onde estavam concentrados os membros da equipa de resgate começou a ser evacuada porque “as operações iam começar”. Até o pavilhão onde as famílias das crianças costumavam dormir também foi esvaziado. Pouco depois, o chefe das operações oficializava o início do resgate: ” Hoje estamos prontos. Hoje é o dia D. Hoje, às 10 horas, 13 mergulhadores estrangeiros foram buscar as crianças, juntamente com cinco mergulhadores tailandeses”.

A decisão de avançar para a operação de resgate veio de Richard Harris, o médico australiano. Segundo Narongsak Osatanakorn, o médico mergulhador disse que os rapazes estavam prontos para a operação. “A saúde e a mente deles estão prontas e todos têm conhecimento da missão”, explicou um porta-voz aos jornalistas. Aproveitando que os volumes de precipitação verificados nas horas anteriores tinham sido inferiores ao previsto, o que permitiu aos voluntários bombear para fora da caverna água suficiente para que fosse possível caminhar até à terceira câmara sem utilizar equipamento de mergulho — o nível baixou 30 centímetros, o máximo alcançado até ali –, a missão de resgate começou.

A decisão de avançar para a operação de resgate veio de Richard Harris, o médico australiano com três décadas de experiência em mergulho que interrompeu as férias para acompanhar a missão de resgate. Segundo o governador Narongsak Osatanakorn, o médico mergulhador disse que os rapazes estavam prontos para a operação: "A saúde e a mente deles estão prontas e todos têm conhecimento da missão”, explicou um porta-voz da missão aos jornalistas.

Para conseguirem retirar as crianças — as mais fortes sairiam primeiro e as mais fracas no fim — os mergulhadores envolvidos no resgate  tiveram de andar, rastejar e mergulhar com recurso a uma corda que foi instalada por socorristas ao longo dos quatro quilómetros que separam a caverna onde a equipa de futebol estava e a entrada principal da gruta. Nos primeiros 1,7 quilómetros do percurso a caminho da superfície, que corresponde à distância entre a caverna onde o grupo está e a câmara que tem servido de base aos mergulhadores, os rapazes tiveram de colocar em prática as técnicas de mergulho que treinaram em situação real nos últimos seis dias. A tarefa ficou ainda mais complicada porque a parte inicial do percurso de cerca de três quilómetros inclui passagens estreitas, com menos de um metro de altura, que obrigaram os rapazes a largarem as botijas de oxigénio que levavam às costas e a gatinharem pelos corredores de calcário. Uma vez chegados à terceira câmara, os rapazes e os mergulhadores tiveram de caminhar ao longo de mais 1,5 quilómetros para chegar à superfície.

Uma ambulância leva um dos rapazes para o hospital. Créditos: Linh Pham/Getty Images

De acordo com Narongsak Osatanakorn, os rapazes foram equipados com máscaras faciais e garrafas de ar comprimido e divididos em grupos. Para cumprirem o plano de trazer os rapazes “gradualmente” à superfície, cada um foi acompanhado por dois mergulhadores: um deles seguiu atrás da criança, enquanto o outro seguiu à frente dele com uma corda a ligar os dois pela cintura. A corda não serve apenas para ajudar no sentido de coordenação das crianças: foi usada principalmente para guiar as crianças pelo canal sempre que se deparassem com uma passagem mais estreita. Caso algum material se estragasse pelo caminho, o problema seria colmatado com um plano de contingência delineado ainda antes de a equipa entrar na caverna.

Chegados à superfície, os rapazes foram avaliados por uma equipa de médicos australianos: de acordo com o plano, se algum dos elementos se encontrasse em estado crítico seria levado de ambulância até ao aeródromo mais próximo e depois viajaria até à base aérea da Divisão de Asa 416, na cidade de Chiang Rai. De lá, as ambulâncias iriam transportá-los para o hospital. Quem estivesse saudável, seguiria também para o hospital, mas podia ir numa das 13 ambulâncias de prevenção. Depois ficaram em quarentena numa sala isolada para fazer despistagem de eventuais infeções que possam ter contraído dentro da gruta. Entre as doenças que as crianças podem ter contraído estão a histoplasmose (um fungo que entra no corpo através das vias respiratórias e se aloja nos pulmões), raiva (um vírus transmitido pela saliva de outros animais, entre eles morcegos), leptospirose (infeção causada por uma bactéria que pode causar meningites ou insuficiência renal) e febre recidivante, transmitida por carrapatos (também causada por uma bactéria).

Cada um foi acompanhado por dois mergulhadores: um deles seguiu atrás da criança, enquanto o outro seguiu à frente dela com uma corda a ligar os dois pela cintura. A corda não serve apenas para ajudar no sentido de coordenação das crianças: foi usada principalmente para guiar as crianças pelo canal sempre que se deparassem com uma passagem mais estreita.

Esta missão de resgate implicava que os rapazes não fossem tirados todos ao mesmo tempo. A operação foi dividida em três dias: nos primeiros dois saíram quatro crianças e no último dia mais quatro acompanhadas pelo treinador. Essa pausa tinha dois motivos: servia para que os mergulhadores pudessem descansar e para que outro grupo de mergulhadores pudesse repor as botijas de oxigénio espalhadas pelo caminho. E foi sempre estimada para ter entre dez e vinte horas, mas certo é que a operação demorou menos tempo do que era expectável, tudo porque a chuva deu tréguas e permitiu bombear água suficiente para fora das cavernas. Ao terceiro dia, já com os doze rapazes e o treinador à superfície, a operação foi dada por encerrada quando o médico e os dois mergulhadores que os acompanharam nos últimos dias deixaram a gruta.

A alegria de quem ajudou no resgate das crianças. Créditos: Getty Images

Esta é a história de uma missão quase impossível que se concretizou. Ivan Karadzic, um dos mergulhadores que esteve em Tham Luang, frisou à BBC que “nenhuma criança alguma vez fez isto no passado”: “Eles foram forçados a fazer uma coisa que nenhuma criança alguma vez fez. Não é de forma nenhuma normal para miúdos de 11 anos fazerem mergulho. Eles fizeram-no num ambiente que é considerado extremamente perigoso, sem nenhuma visibilidade. A única luz que tinham eram as lanternas que os mergulhadores levavam. Isto é quase inacreditável”. Só não é porque aconteceu mesmo.

Ultimatos e diplomacia prussiana

  por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 10/07/2018)

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Dois jogadores de xadrez calculam o seu próximo movimento. Pensam no efeito da deslocação da peça escolhida, o que significa que procuram antecipar o que fará o adversário depois da sua jogada. E imaginam como responderão então e o que fará o outro. E qual deve ser a nova resposta e assim por diante. Não parece simples, mas é mesmo muito complexo: as jogadas possíveis no xadrez são mais do que o número de segundos desde o Big Bang.

Agora imagine que não são só dois jogadores à frente do tabuleiro. Há um terceiro e talvez mesmo um quarto. Ou muitos mais. Falam, sugerem, atrevem-se mesmo a mexer nas peças. O jogo torna-se uma cacofonia. Mas é assim mesmo que são as sociedades, a sua complexidade resulta da interação de muitos interesses, grupos, classes, pessoas e estratégias. Difícil, não é? Ainda assim, jogamos xadrez e vivemos em sociedade, porque inventamos regras que permitem coordenar-nos nesta complexidade ou nesta cacofonia.

A preparação do Orçamento é parecida com este jogo de xadrez. Os jogadores pensam no que vão fazer e como responderá quem está sentado à sua frente. Vão alinhando as suas propostas: o investimento para salvar o Serviço Nacional de Saúde, o aumento extraordinário das pensões, o sistema fiscal, os salários da Função Pública, a carreira dos professores. Calculam o seu efeito e o que responderá o ministro dos ministros. Há outros jogadores a pairar à volta: Assunção Cristas garante que vota contra, Rui Rio diz para exasperação de Hugo Soares que quer ler a lei antes de a votar, o Presidente avisa que há eleições se a coisa falha, Carlos César mostra o bastão. E eu pergunto: além do barulho, estão a fazer as continhas, a preparar as simulações dos efeitos das medidas, a escolher as soluções para os problemas? Há conversa ou só cavaco?

Ora, só há duas formas de preparar o Orçamento. Uma é com trabalho, estudando as medidas e verificando as contas. Outra é com negociações de última hora para encaixar reivindicações. A primeira exige tempo e já vai sendo tarde. A segunda é mais fácil porque é um fingimento de entendimento. O governo e porventura algum dos seus parceiros têm hesitado entre uma e outra forma de preparar a lei. Em todo o caso, este ano parece que nos calhou em sorte a segunda. Nada está a ser preparado em comum entre a maioria, fora alguma conversa de circunstância enquanto prosseguem os insondáveis desígnios do Terreiro do Paço. De facto, parece ser assim que o governo entende o seu magistério neste Orçamento, antes só que mal acompanhado.

A intervenção inopinada de Augusto Santos Silva deve ser lida nesse sentido. Silencioso como um bom diplomata, Santos Silva não apareceu em Portugal durante os dois primeiros anos do governo. Instalou-se como um ministro seguro de um governo europeísta no tempo da crise europeia. Mas ao terceiro ano chegou-se ao congresso do PS para anunciar a ressurreição da Terceira Via, aquela fusão entre social-democracia e neoliberalismo à moda de Blair e Hollande. Em política, isso quer dizer Bloco Central e rejeitar o acordo com o Bloco de Esquerda e o PCP. Verdade seja dita, Santos Silva nunca ocultou nem essa preferência nem o seu menosprezo pelos aliados do governo. É dele aquele inolvidável “eu cá gosto é de malhar na direita e gosto de malhar com especial prazer nesses sujeitos e sujeitas que se situam de facto à direita do PS e são das forças mais conservadoras e reacionárias que eu conheço e que gostam de se dizer de esquerda plebeia ou chique, estou-me a referir ao PCP e ao Bloco de Esquerda”, uma formosura de quando era o número dois do Governo Sócrates. Só que agora as circunstâncias são diferentes e, se bem leem os augúrios, os partidos de esquerda devem perceber que Santos Silva está a tentar atiçar um conflito para confirmar a sua estratégia pessoal e que a melhor forma de responder à diplomacia prussiana é mesmo trabalhar para um orçamento consistente.

A esquerda e a amnésia

  por estatuadesal

(Carlos Esperança, 11/07/2018)

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(Tem razão António Costa quando diz que "os portugueses não perdoariam se a maioria de esquerda caísse já" (ver notícia aqui). Mas, assim sendo, convinha também que o PS não insistisse em quebrar acordos negociados com os partidos à sua esquerda, sem lhes dar qualquer satisfação, como  aconteceu no caso das rendas do sector energético e agora, mais recentemente, no caso das leis laborais. Se se quer manter uma maioria de esquerda não há lisura quando se fica à espera que a direita sufrague no parlamento as medidas que o PS toma para satisfazer as clientelas tradicionais da direita.

Comentário da Estátua, 11/07/2018) 


Quando o anterior Governo estava já em minoria na AR e o PR continuava a ser cúmplice para desmantelar o Estado, o país assistiu perplexo ao ressentimento e desespero da campanha de Belém, difundindo ameaças e instilando o medo, indiferente aos reflexos nos juros da dívida e à desconfiança internacional que provocava.

Foi o tempo em que um PR salazarista e o PM acidental entraram em desvario por não terem na AR o apoio necessário para manter o governo mais extremista que a democracia gerou.

É interessante verificar os tiques salazaristas de certa direita, que levam dirigentes partidários a considerarem aberrante e antidemocrático o governo suportado pelo PS, PCP, BE e PEV, sem que os partidos de esquerda tivessem alguma vez apelidado de antidemocráticas as coligações do PSD com o CDS, o PPM e outras irrelevâncias de origem duvidosa. Talvez se encontre aqui a forma de aferir o espírito democrático de cada partido, no respeito por todos os que emergem do voto popular.

Infelizmente, à curta memória do País junta-se o interesse eleitoral dos partidos que disputam as próximas eleições. Passada a ameaça da direita truculenta, que originou o atual Governo, já se digladiam entre si e perturbam a convergência que se revelou saudável para o País.

Numa altura em que a direita, apesar da forte campanha mediática, apoiada pelas associações patronais, bastonários e outras personalidades da sua área, não consegue derrubar o Governo, seria lamentável que os partidos que convergiram quando Cavaco e Passos Coelho ameaçavam subverter a democracia, desrespeitando a AR, se transformassem agora nos coveiros da mais rica e profícua experiência política das últimas quatro décadas.

A onda de agitação e de reivindicações sociais, algumas injustas, saídas de classes privilegiadas, perturbam o discernimento de partidos de esquerda e ajudam a direita, enquanto o Governo, incapaz de satisfazer as exigências e de proceder à consolidação orçamental a que é obrigado, abre espaço ao crescimento da direita. Todos parecem esquecer o governo anterior, e não se dão conta de que Rui Rio e Marcelo não são Passos Coelho e Cavaco. Destes já não há medo, o medo que levou à convergência dos vários partidos de esquerda.

É fácil imaginar o que vai suceder se não houver bom senso nos partidos que suportam o atual Governo, desde recriminações mútuas ao desalento do eleitorado apoiante. A abstenção será a primeira força a crescer e o desânimo afetará o eleitorado que se revê na solução em vigor.

A perceção dos eleitores da culpa de cada partido na eventual cisão da maioria que permitiu este governo decidirá o voto, mas não há ganhos que compensem o que o país perde.

Pela minha parte, apoiante entusiasta deste governo apoiado pelo PS, BE, PCP e PEV, e livre de compromissos partidários, sentir-me-ei traído.

Um comunista não pode ser rico?

por estatuadesal

(Pedro Tadeu, in Diário de Notícias, 11/07/2018)

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Começou por ser um dos frequentes disparates das redes sociais: o deputado do PCP, António Filipe, aparece fotografado na sala de espera de um hospital privado em frente a um cartaz do partido, exposto na rua, por detrás do vidro do prédio, com o slogan, vibrante, a gritar que "a saúde é um direito, não é um negócio".

Façanhudos do Twitter e do Facebook entretiveram-se a insultar o deputado, com base numa aparente contradição moral entre os ideais e a prática.

O tom, mais ou menos, foi este: "afinal os comunas dizem ao povo para irem ao Serviço Nacional de Saúde e, pelas costas, quando têm dinheiro, vão mas é aos privados, como os ricos!".

Vozes de burro não deviam chegar ao céu mas, na verdade, se zurrarem muito, pelo menos chamam a atenção dos deuses da opinião publicada nos media tradicionais.

Bernardo Ferrão, no Expresso, tem a bondade de defender o direito à "livre escolha" de António Filipe mas critica o PCP por defender as 35 horas de trabalho para os profissionais da saúde, por aceitar as cativações de Mário Centeno e por deputados como António Filipe "se baterem contra as Parcerias Público Privadas" na saúde quando, afinal, "confiam num privado para o seu particular".

João Pereira Coutinho, no Correio da Manhã, repete parte destes argumentos e pareceu-me (o texto é um bocadito confuso) achar mal que a ADSE pague consultas a deputados comunistas.

Tirando o facto de ninguém saber se António Filipe foi a uma consulta, a um tratamento, a um exame (talvez coberto por protocolos com o Serviço Nacional de Saúde), ou, simplesmente, visitar uma pessoa amiga, o pressuposto é este: um dirigente comunista se vai, doente, a um hospital, não está a tratar-se, está a fazer uma opção política.

Esta inferência, se for aceite como verdadeira, leva, dedutivamente, a outras conclusões: um comunista pode lutar toda a vida pelo que acha ser melhor para a sociedade, por melhores salários para os trabalhadores, por mais direitos para os desprotegidos, por serviços de saúde gratuitos e bons para todos. No entanto, o comunista, para respeitar os seus princípios políticos, só pode ter um salário decente, usufruir de direitos básicos ou, simplesmente, escolher o que é melhor para si quando toda a sociedade poder beneficiar dos resultados da sua luta - até lá, em solidariedade para com os mais desfavorecidos, o comunista não pode usufruir do que a sociedade tem disponível...

Com tanta fome no mundo, imagino que um comunista a comer bife da vazia já seja, para esta moral distorcida, um pecado mortal.

Um comunista, pelos princípios desta teoria, é, portanto, um mártir e se não se portar na sua vida privada como um mártir, é um hipócrita. Ora acontece que o PCP não é a Ordem de São Francisco (e mesmo esta, já não é o que era).

Claro que ninguém pergunta se um defensor da privatização da saúde deve ir a um hospital público, se um defensor dos PPR privados pode receber pensões do Estado ou se quem quer destruir o ensino público pode meter os filhos nas melhores universidades do país (que, não por acaso e muito graças aos comunistas, são as públicas).

Se um comunista tem de ser pobre, um católico pode ser neoliberal? Um monárquico pode ser deputado da República? Um rico pode ser solidário? Um ateu pode ir a um velório na igreja?

Se, por exemplo, um cientista comunista inventar o motor contínuo ou souber transformar chumbo em ouro, não pode ficar rico? Por esta pretensa filosofia, não: deve doar o seu talento e saber à sociedade e, no estágio em que ela está, transformar inevitavelmente um capitalista rico que decida investir na sua invenção num capitalista obscenamente rico, contribuindo assim para o aumento do fosso entre ricos e pobres, ajudando ao domínio das classes favorecidas e prolongando a exploração dos trabalhadores. Ou seja, um comunista, para esta gente, só é um bom comunista se for estúpido!

Sim, um comunista, se levar a ideologia a sério, cumpre uma ética na sua vida privada que tem correspondência com os princípios sociais que defende. Mas não, um comunista não tem de ser parvo.