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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Governar para as pessoas é eleitoralismo

  por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/10/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

As medidas mais simbólicas deste Orçamento do Estado têm impacto na vida concreta das pessoas: aumento de pelo menos dez euros em todas as pensões; redução dos cortes nas reformas antecipadas; redução das propinas das universidades; livros escolares gratuitos até ao 12.º ano; redução do preço dos passes nos transportes urbanos; redução da dívida tarifária elétrica (que esperamos que venha a ter efeito nos preços aos consumidores); descontos no IRS dos emigrantes que regressem (duvido que tenha algum efeito pretendido e cria uma injustiça desnecessária); aumento do número de pessoas que, por receberem menos, estão isentas de IRS, garantindo um rendimento mínimo. Sublinho ainda o aumento de 11% para a Ciência e 12% para a Cultura, dois parentes paupérrimos deste Governo. E o aumento do IMI e o arrendamento forçado para fogos devolutos.

Lido assim parece um orçamento extraordinário. Mas isso cai por terra quando se olha para os efeitos da contenção orçamental, sobretudo à custa do investimento público e de um aumento salarial dos funcionários públicos que deverá ficar abaixo da taxa de inflação, o que corresponde a uma perda de salário real. A chantagem da direita, que fez de cada corte nos rendimentos dos trabalhadores do Estado um ato de justiça e de cada devolução um escandaloso benefício, parece resultar.

Reduzir drasticamente o preço dos transportes públicos urbanos, a fatura energética, as propinas das universidades e o custo com livros escolares não é gastar dinheiro com futilidades para ganhar votos. Estranho tempo este em que governar para as pessoas sem sequer com isso pôr em causa o futuro e as finanças públicas é, por si só, motivo de crítica

Diz que este orçamento é “eleitoralista”. Na realidade, era uma crítica que estava preparada há três anos para usar quando o orçamento antes das eleições fosse apresentado. A narrativa que se tinha construído sobre este Governo e que foi repetida em todos os orçamentos anteriores era que mantinha a austeridade e apenas libertava recursos para as suas clientelas. Ao dizer-se que este orçamento é eleitoralista, há três possibilidades: ou os outros eram para os funcionários públicos e este é para todos e a oposição irá aprová-lo, ou está tudo na mesma e não faz sentido falar de eleitoralismo, ou é eleitoralista por ser irresponsável ao gastar recursos que não temos. A última tese choca com o facto de neste se prever o défice mais baixo da democracia portuguesa. Quem pensa que deveríamos cortar ainda mais defende a continuação preventiva da austeridade e acha que nos anos anteriores ainda se deveria ter cortado mais.

As minhas críticas a este orçamento não são a este orçamento. Aliás, acho que até são menos intensas neste orçamento do que nos anteriores. São críticas à ausência de reformas (não aquelas que a direita defende) que reforcem os serviços públicos e qualifiquem a economia. Mas não é um pormenor reduzir drasticamente o preço dos transportes públicos urbanos, a fatura energética, as propinas das universidades e o custo com livros escolares. É aumentar os salários indiretos da verdadeira classe média portuguesa. Não é gastar dinheiro com futilidades para ganhar votos. Estranho tempo este em que governar para as pessoas sem sequer com isso pôr em causa o futuro e as finanças públicas é, por si só, motivo de crítica. Como se castigar os mais pobres fosse virtuoso e só beneficiar quem tem mais poder fosse realista.

Sofrerei de daltonismo político?

  por estatuadesal

(Carlos Esperança, 17/10/2018)

independente

Não garanto que alguma vez, por grave distração, não tenha passado por um sinal vermelho sem o ver, mas não o confundo com o verde, mesmo com acuidade visual atenuada.

Já em política não estou tão certo de que algum fenómeno catatímico interfira na minha visão, apesar de ser exigente com a conduta de quem nos governa, quer dos partidos da minha simpatia, quer dos adversários.

Quando o atual governo iniciou funções, foram constituídos arguidos os secretários de Estado que aceitaram a viagem a uma Empresa, à vista de todo o país, para um jogo da seleção nacional de futebol, o que levou à demissão das funções para que lhes sobejava competência. O próprio ministro das Finanças esteve em risco, por ter solicitado dois lugares no camarote da direção a um clube para ver um desafio de futebol, uma paixão a que não é imune um doutorado por Harvard. Na minha opinião, os primeiros não deviam ter aceitado. No caso do ministro pareceu-me pura perseguição partidária.

No anterior governo, uma secretária de Estado que negociara Swaps com o Estado numa empresa privada, viu sair colegas por esse motivo, mas permaneceu e, à falta de melhor, chegou a ministra das Finanças. Saiu para um fundo abutre, em Londres, acumulando o lugar de deputada. Passos Coelho chegou a PM após a fraude com fundos europeus na Tecnoforma, o pedido de salário como deputado em exclusividade (não concedido), a falta de pagamento às Finanças e à Segurança Social. Saiu como catedrático.

Autarcas acusados de corrupção pela revista Visão, em que se destacam Marco António e Luís Filipe Meneses, continuam tranquilos à espera da prescrição dos crimes que a revista lhes imputou. O País só queria saber se foi calúnia ou se a PGR não soube.

Durão Barroso era PM e foi em jato privado ao Brasil, com a família, para uma estadia numa ilha paradisíaca, a convite de um amigo com negócios com o Estado. Foi de férias no iate de um magnata, quando estava indigitado para presidente da Comissão Europeia, e acabou, depois de suspeitas e furtivas reuniões, como CEO de Goldman Sachs, em Londres.

Paulo Portas, desde as trapalhadas da Universidade Moderna, da falência fraudulenta da empresa de sondagens Amostra, da falta de recibos de pagamento aos sondadores e do atraso de pagamentos às Finanças, comprou submarinos sem que fosse averiguado o destino das comissões que levaram a condenações dos corruptores alemães.

Com exceção de Cavaco Silva, uma referência ética, incorruptível, incapaz de intrigas e de rancores, com um passado imaculado como investigador da Gulbenkian, assiduidade inexcedível na docência de uma Universidade pública, que alia uma invulgar cultura ao inexcedível sentido de Estado, com exceção de Cavaco – dizia –, sobre as referências da direita pairam suspeitas que nunca foram investigadas.

Provavelmente sofro de facciosismo político. Aliás, nunca disfarcei o posicionamento político.

AGORA QUE SOUBERAM DEU-LHES PARA CHORAR

  por estatuadesal

(In Blog O Jumento, 17/10/2018)

passos_chora

Estávamos em Dezembro de 2015, para ser mais preciso era dia dois, uma quinta-feira. Mário Centeno, um ministro sem qualquer experiência política anterior, um doutorado em Harvard com uma longa carreira no Banco de Portugal, ia falar pela primeira vez na Assembleia da República. Um pobre diabo, hoje promovido a catedrático, que fez uma vida à custa da política e de um emprego dado por um padrinho político montou a encenação do rir até às lágrimas.

Tudo bem montado, vale a pena reler a notícia do Expresso (ver aqui) para vermos como alguns inúteis se fartaram de rir até às lágrimas, pensado estarem a gozar com um pacóvio sem experiência nas pulhices das jotas. Imagino que esses mesmos andem agora a chorar pelos campos pois se vivessem em Las Vegas estariam a esta hora a fazer queixas do Mário Centeno. Não sabiam na altura que o choro do riso iria dar num choro de vontade, como dizia a minha mãe quando achava que eu estava a fazer uma encenação.

O diabo não veio e o país teve quatro anos de estabilidade política, financeira e social, quatro anos sem o credo na boca, sem ter de aturar o Vítor Gaspar e fazer de conta que a Maria Luís era uma grande economista.

Aquele de quem choraram foi um dos poucos ministros das Finanças que aguentaram uma legislatura, foi o ministro das Finanças português com maior projeção internacional, foi o único economista português a liderar uma grande instituição internacional no domínio económico e escolhido pelos seus pares pelo mérito político e económico.

Mas, a esquerda portuguesa deve a Mário Centeno uma outra vitória moral bem importante: ao logo de mais de um século a direita portuguesa fez passar a ideia de que só a direita consegue equilibrar as contas públicas e que tal só é possível com algum autoritarismo. Não admira que alguns ministros das Finanças da direita tenham adotado uma “cara de pau”, sempre a imitar Salazar no elogio das origens humildes, como se a humildade ajudasse a credibilizar os tiques do autoritarismo.

Afinal é possível equilibrar o orçamento sem ser necessários recorrer à ditadura ou ao autoritarismo, sem adotar medidas inconstitucionais ou, como alguém sugeriu, sem suspender a democracia durante um par de meses. É possível fazê-lo e ao mesmo tempo promover a justiça social, implementar medidas de redistribuição do rendimento e em paz social. Não há memória de um OE sem ditadura ou sem conflitos sociais e este é um legado de Centeno. É possível governar à esquerda e promover uma gestão orçamental com mais responsabilidade e competência do que a direita.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Quando os povos mergulham na noite

  por estatuadesal

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 14/10/2018)

soromenho

No mesmo dia em que o eleitorado brasileiro colocou Jair Bolsonaro à entrada do Palácio do Planalto, foi divulgado um inquietante Relatório Especial do IPCC - órgão da ONU encarregado de monitorizar a marcha global das alterações climáticas. A mensagem é dupla. Primeiro, as alterações climáticas estão a crescer a um ritmo que a ciência, importa confessá-lo, não foi capaz de antecipar. Segundo, o limite antes considerado aceitável de 2ºC para o aumento da temperatura média até ao final do século afinal seria catastrófico, Devemos, por isso, usar a próxima década para mudar aceleradamente o nosso sistema de produção e consumo (de civilização, em geral), de modo a impedir que esse aumento ultrapasse 1,5ºC. Imaginemos Bolsonaro a ler o relatório do IPCC, o homem que quer destruir a Amazónia e que alardeia a sua ignorância e preconceito! O seu problema, como o de Trump, como o de Duterte e de todos os outros tiranetes é que nem sequer têm a literacia elementar para perceberem aquilo que recusam. A política foi inventada, acreditamos, para corporizar a força comum na superação das ameaças que só em comum podem ser vencidas. Se assim é, então, ao eleger líderes ignorantes, moralmente niilistas e semeadores da discórdia e do conflito - que nos levam para o abismo que deveriam evitar - estamos a colocar a antipolítica no lugar da política. De onde se deveria esperar a salvação vem, afinal, o maior perigo...

O que poderá levar os brasileiros a escolher para presidente um homem que fala e se comporta como um delinquente? Ou os norte-americanos a suportarem e, eventualmente, a reelegerem uma criatura totalmente indigna de crédito e confiança como Trump? Quando dizemos que Bolsonaro e Trump são a morte da política, corremos o risco de confundir causas com efeitos, de esquecer o que se passa na cabeça de cada eleitor em favor de um excesso de sociologia política. Na sua obra maior, O Princípio Esperança (1959), o filósofo Ernst Bloch analisava as diferenças entre o "sonho acordado" ou devaneio (Tagtraum) e o "sonho noturno" (Nachttraum). Com razão, Bloch destacava o facto de escassa atenção ter sido dada ao primeiro, enquanto o estudo do segundo até serviu de base para a construção da psicanálise. O devaneio, que não se esgota na idade juvenil, cumpre uma função de antecipação do futuro, constitui uma espécie de ensaio utópico quotidiano à escala individual. É um ato de higiene do espírito, em que, ao contrário do sonho noturno, nunca perdemos o controlo da efabulação nem a identidade própria. O devaneio raramente remete para o passado, como ocorre com o sonho noturno, mas visa o futuro, o mundo concreto partilhado com os outros. Voltando ao início.

Os povos só se entregam à noite dos ditadores e populistas quando os indivíduos deixam de ter capacidade de sonhar acordados. Só entrega o seu destino nas mãos de um monstro certificado como tal quem trocou o sonho acordado pelo medo paralisante e/ou pelo ódio cego que alimenta a violência indiscriminada.

Quando os eleitores desistem de imaginar o seu futuro, trocam a incerta aposta na esperança, que implica sempre um esforço individual, pela inevitabilidade do anónimo e impositivo pesadelo coletivo. No dia 28, os brasileiros vão escolher entre serem cidadãos racionais, capazes de ponderar o gradiente dos interesses e valores em jogo, ou cúmplices imputáveis dum golpe, possivelmente letal, contra a sua frágil ordem democrática.

Professor Universitário

O populismo fascista só está a começar

Posted: 16 Oct 2018 03:28 AM PDT

«A banalização do termo “populista” atrapalha mais do que ajuda à clareza de análise. É uma bagunça: Jimmy Carter diz-se populista, Salvini também. Em todo o caso, populista passou a ser uma designação adversarial, identificando alguns estilos mais do que a política (Mussolini, Ghandi, Perón, Samora, Sanders ou Trump fariam todos parte desta categoria). Assim, é uma mistificação, aliás intencional, apresentando o centro e a direita como o único lugar do respeito, o do liberalismo. Nessa narrativa, o que fica de fora da fronteira institucional é populista. Por mais deficiente que seja esta fábula (os populistas europeus nasceram na solene direita clássica de ontem; Orbán era o protegido de Kohl; a Liga de Salvini esteve no Governo com Berlusconi; Merkel e Macron pagam a Erdogan para prender imigrantes), ela é uma arma de confusão maciça.

Acrescento que entendo que o populismo mesmo é uma máquina social ao serviço da direita. E, em concreto, que o único populismo realmente triunfante foi o fascismo. Teve base de massas, uma ideia de liderança, um inimigo social, uma linguagem e uma forma de política. Já a conhecemos e é agora o risco brasileiro.

Bolsonaro, um fascista ainda sem fascismo

Bolsonaro pode ganhar a segunda volta das eleições presidenciais se ampliar um pouco que seja a base do ódio – e os partidos e arautos do centro vão favorecê-lo, depois do colapso histórico que os marginalizou.

Mas Bolsonaro tem dois problemas maiores se triunfar. Primeiro, é um fascista numa sociedade que só se fascistiza desde há pouco. Ainda pode lá chegar, o turbilhão do ódio cavalga depressa. Pessoas ameaçadas na rua por milicianos, deputados eleitos por terem destruído uma homenagem a Marielle, assassinada há poucos meses, violência religiosa como norma política, tudo isso é fascismo a espreitar. Mas falta muito, falta o poder absoluto, a censura da imprensa, a proibição dos partidos, a marreta antioperária, a repressão das universidades, o endeusamento do chefe. Bolsonaro quer tudo isso, mas só o pode conseguir com a força dos militares. E se pensa que os generais aceitam o poder de um capitão de quermesse, que em trinta anos de paisano como deputado só assinou duas leis, está enganado. Querem dele o mandato constitucional, mas se o poder precisar dos militares os militares mandarão. Golpe dentro do golpe ou simples jogo de poder, serão os militares e não os rufias a comandar o regime bolsonarista se ele ganhar.

Um governo deste jaez tem ainda outra implicação. Precisa de precipitar uma comoção. Um governo populista-fascista precisa de inimigos e de cheiro a pólvora. Um ataque à Venezuela passaria a ser possível numa estratégia da coligação militar-bolsonarista. Seria o alvo óbvio, com a vantagem de criar um laço com Washington. Num regime em desagregação, como o brasileiro, um fascista só se impõe com golpes de teatro e de canhão.

O populismo pode ser vencido?

Só que a segunda volta está em disputa e, se Haddad fosse capaz do mais difícil, mobilizar os milhões de pobres que não foram votar, ainda poderia virar a mesa. Do outro lado tem uma tremenda força social: a burguesia brasileira é patrimonialista, oligárquica e escravocrata, não hesitando entre a democracia e qualquer forma de autoritarismo, se entender que assim protege a desigualdade tão extremada e por isso perigosamente evidente. Para os donos do Brasil, pobre na universidade é sacrilégio, empregada doméstica com salário mínimo é afronta, respeito pelas pessoas é atrevimento. O alinhamento desta ‘elite’ é uma lei da natureza, e os que ainda se espantam com a vitória eleitoral de Hitler na pátria de Beethoven e Bach não perceberam a realidade da vida: em tempos de crise os que mandam recorrem sempre à força bruta para impor o silêncio.

Há ainda mais no mundo populista. Os tempos brasileiros, e não é só por lá, têm promovido uma classe de conselheiros Acácios, videirinhos que singram nos favores, e que aprenderam que o poder se alcança com o medo. A forma ideal da sua campanha é o fervor, a intriga, a corrupção do debate eleitoral, é a política suja nas redes sociais. Como eles estão a inventar à nossa frente, a política mudou com Modi, Duterte, Trump e Salvini, agora continua a mudar com Bolsonaro.

Nessa tecnologia, a democracia vai perder sempre. As redes da modernidade eram os sindicatos, o partido e a conversa, ou a mediação da comunicação social, agora as redes alimentam-se de pavor e são fluxos irremediáveis, portadores de novas formas de poluição. Não se volta atrás, mais vale que a esquerda se prepare, mas não será hoje. Só há por isso uma alternativa para contrariar o fascismo bolsonarista: trazer a alegria para a rua. Só se pode ganhar-lhe com a alegria e a cor do povo, é aí que mora a confiança que falta. Como é preciso abrir uma página nova, mais vale então romper com o passado e buscar essa confiança. Ainda pode chegar esse cheirinho de alecrim que tanta falta faz ao Brasil.»

Francisco Louçã