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sábado, 17 de novembro de 2018

A civilização contra a cultura

  por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 16/11/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

E, de repente, ao entrar em funções, confrontada com a questão das touradas, a ministra da Cultura pronunciou a palavra “civilização”, explicitando assim, espontaneamente, o campo e o horizonte de ideias em que esta discussão tem lugar. O aparecimento e a evolução semântica e ideológica da palavra “civilização” e das problemáticas que ela trouxe consigo é um assunto importante na história das ideias, que no nosso tempo mobilizou estudos de figuras tão importantes como Jean Starobinski e Émile Benveniste.

A civilização como categoria é um elemento central do projecto iluminista, para o qual ela designa o processo fundamental da História e o resultado desse processo: a superação de um estado primordial em direcção a um estado considerado superior do ponto de vista moral, cultural, científico, tecnológico, etc. A ideia de civilização tornou-se o critério pelo qual a barbárie — ou não-civilização — é julgada e condenada. Ela só pode ser compreendida em função da ideia de progresso, da concepção de que há um progresso da humanidade.

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A história da ideia de civilização não pode ser feita sem a referência à ideia de cultura, com a qual ela forma um par. E esse par ganhou uma importante configuração dicotómica — a civilização em oposição à cultura — que nos chegou da tradição romântica alemã. A reivindicação da Kulturcontra a Zivilisation (vista com desconfiança como ideia muito francesa), a defesa da “cultura espiritual” e enraizada contra o cosmopolitismo e universalismo da ideia de civilização, democrática na sua essência, encontra em Thomas Mann, na sua fase inicial, um representante que manifestou todo o seu desprezo pela classe que ele denominou como intelectuais da civilização, Zivilisationsliterat, a que pertencia, aliás, o seu irmão Heinrich Mann.

O par dicotómico civilização/cultura é de uma grande complexidade, ao ponto de ser muito difícil responder a esta questão: quando Freud escreveu Unbehagen in der Kultur, publicado em 1930, é sobre o mal-estar da cultura ou sobre o mal-estar da civilização que ele escreveu? Sobre isso, os tradutores nunca se entenderam e nas principais línguas europeias encontramos o título traduzido das duas maneiras.

Fácil é então perceber porque é que os defensores das touradas reivindicam a ideia de cultura e os que querem que elas sejam proibidas tomam a civilização como critério. Mais difícil — mas necessário — é perceber que as duas partes não estão envolvidas num litígio em que é possível uma verdadeira discussão, isto é, um encadeamento das frases de um lado e de outro que formam uma argumentação e uma contra-argumentação, tendo como condição necessária o pressuposto de que é possível as duas partes litigarem.

Ora, neste caso não se trata nunca de um litígio, mas de um diferendo. O que é um diferendo? Há um diferendo, explicou o filósofo francês Jean-François Lyotard, quando o discurso de uma parte não tem nenhum sentido para a outra parte porque as duas falam uma linguagem diferente e nem partilham um terreno mínimo, uma razão comum, que possa tornar possível o esforço que consistiria em cada uma das partes se colocar no lugar da outra.

É que, neste caso em que há um diferendo, as palavras de uns não podem ser encadeadas nas palavras dos outros. Há uma absoluta heterogeneidade de linguagens, uma incomensurabilidade dos discursos, ao ponto de aquilo a que uns chamam cultura os outros chamarem barbárie. E cada vez que uma das partes explica e defende as suas razões, só confirma as razões da outra parte. E, assim, o conflito nunca pode ser equitativamente resolvido, não é possível recorrer a uma regra de julgamento aplicável ao discurso de ambos os lados. O diferendo não é uma mera oposição de opiniões nem se resolve accionando os mecanismos da democracia.

Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam

  por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 17/11/2018)

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A ideia de que ser a favor ou contra as touradas é uma questão de liberdade de expressão é um absurdo. Ser a favor ou contra as touradas é uma questão de civilização e, por muito que a palavra esteja gasta, nós sabemos muito bem o que é. É o mundo frágil que nos faz viver melhor, mais tempo, com menos violência do que no passado. É completamente frágil e contraditório, muitas vezes anda para trás e poucas vezes anda para a frente, mas representa o melhor da vida possível, feito por um olhar humanista sobre as coisas, que inclui condenar, limitar, punir a violência.

É o mundo em que há direitos humanos, em que os homens e as mulheres são iguais, é o mundo em que as mulheres e as crianças são protegidas da violência doméstica, é o mundo em que o direito de viver de forma livre o sexo é garantido, é o mundo em que a tortura, a pena de morte, o genocídio são condenados, é o mundo em que há liberdade religiosa, de opinião, política, etc., etc. Sim, é verdade que é também o mundo em que tudo isto não existe, mas escolham. Pode não ser o mundo que temos, mas é o mundo que desejamos.

Os animais não podem ter “direitos” equiparados aos direitos humanos, mas faz parte de uma sociedade humana que valorize a ética e combata todas as formas de violência olhar para os animais com um sentimento de especial proximidade que está para além da domesticidade.

Os movimentos a favor dos animais, ou melhor, os movimentos contra a crueldade com os animais, fazem parte da tradição humanista dos séculos XIX e XX. A ideia central era que o modo como tratamos os animais era um sinal de como tratávamos os homens, a crueldade contra os animais era um sinal de uma violência institucionalizada que não se limitava aos animais, mas se estendia aos homens, mulheres e crianças.

Não me estou a referir a nenhuma das variantes radicais modernas dos direitos dos animais que fazem parte da moda dos nossos dias. Não é isso, não tem que ver com aviários, nem com matadouros, nem com as mil e uma formas de industrialização da produção de alimentos, algumas das quais ganhavam em ser menos cruéis. Nem com a caça. A caça tem um valor económico, e tem um papel no controlo das espécies, e é cada vez mais moldada pela lei de modo a que o seu carácter lúdico seja subordinado a estas necessidades.

Tem que ver com as touradas. Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a exibição pública da tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das touradas de morte — que todos os defensores das touradas desejavam poder ter sem limitações —, ser morto. As touradas vivem do sangue, da dilaceração da carne, do cansaço até ao limite e da morte. Podem ter todos os rituais possíveis, ter toda a “arte” de saracotear à volta de um bicho, mas as touradas não são uma arte, são a exibição circense de um combate desigual entre homens e animais, cuja essência é a sua tortura para gáudio colectivo.

Não é um combate de iguais. Na verdade, os combates de cães e de galos — proibidos não se sabe porquê à luz da permissão das touradas — são muito mais um combate entre iguais do que o homem de faca e o touro sem armas a não ser os chifres, que muitas vezes são embolados. Mas é o sangue e a morte que fazem o espectáculo e, ao serem um espectáculo, são um sinal de barbárie.

O argumento da tradição também não é argumento. Se há coisas que a tradição encobre é um vasto conjunto de práticas que felizmente hoje são consideradas inaceitáveis, desde a violência doméstica à discriminação dos homossexuais, à excisão feminina, à pena de morte, à legitimação da tortura. Se aceitamos que a “tradição” por si só legitima a violência e crueldade, então podemos voltar ao “cá em casa manda ela e quem manda nela sou eu” e toca de lhe bater.

Os argumentos dos defensores das touradas são a versão portuguesa dos argumentos da National Rifle Association nos EUA, que também se identifica como uma “associação de direitos civis” e usa o argumento da tradição para justificar uma sociedade banhada de armas e em que a violência dos massacres é sempre culpa de outra coisa que não sejam as armas.

As histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros” (sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem” perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização.

O mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.

Entre as brumas da memória


Pobre Brasil…

Posted: 16 Nov 2018 01:01 PM PST

Brazil's new foreign minister believes climate change is a Marxist plot.

«Brazil’s president-elect Jair Bolsonaro has chosen a new foreign minister who believes climate change is part of a plot by “cultural Marxists” to stifle western economies and promote the growth of China.»

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Dica (826)

Posted: 16 Nov 2018 10:06 AM PST

Electoral Authoritarianism, Elective Dictatorship (Javier López)

«Jair Bolsonaro will be President of Brazil. A homophobic soldier with authoritarian excesses, who has scorned democratic mechanisms and threatened his political rivals, will lead the greatest regional power in Latin America that is now a global giant. In fact, his profile, a caricature of a third-rate dictator, would be comical if it weren’t for the fact that he amassed more than 50m votes. His election, with incalculable consequences, is the latest in a long line highlighting the battered fragility of democracy. What is happening to our societies when voters decide to put their destiny in the hands of eccentric authoritarians, while the influence of the far-right multiplies election after election all over the planet?»

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As nossas democracias vão acabar?

Posted: 16 Nov 2018 02:25 AM PST

«Ditaduras houve que delapidaram as riquezas do país, outras que construíram em poucos anos um poder económico difícil de obter quando se respeitam as regras e os direitos humanos.

É uma possibilidade real. Este movimento civilizacional de vertigens totalitárias pode, para alguns, parecer uma coisa extraordinária numa parte do mundo que se reconhece como a mais evoluída, a herdeira dos grandes avanços do conhecimento da humanidade, em contraponto com o que se passa nas outras partes mais atrasadas. No entanto, de um ponto de vista estritamente histórico, não há nada de extraordinário. Alterações radicais e revoluções já aconteceram muitas vezes e continuarão a acontecer sempre que a raiva e o descontentamento acumulado nas populações encontram condições para pôr à prova o poder estabelecido. É que as revoluções não acontecem sempre contra regimes autoritários, mas também contra os regimes estabelecidos que deixam de ter condições para exercer o seu domínio. As ditaduras e as democracias são duas formas distintas de exercício do poder, mas são ambas formas de exercício do poder de uma minoria sobre a maioria. Se a revolução francesa é um modelo de revolução de um povo faminto contra um poder absoluto, a revolução nazi dos anos 30 na Alemanha é o exemplo de como uma democracia liberal, assente na mais sofisticada civilização, berço de filósofos, escritores e músicos, cede perante uma vaga de fundo de ódio, de irracionalidade e de selvajaria.

Porque estão hoje as democracias em crise?

Não subscrevo as teorias de que foram a emigração e as plataformas sociais que deram lugar a esta revolta que vai tomando proporções globais. Parece-me óbvio que esta vaga foi espoletada, no imediato, pelos efeitos da crise financeira global e da recessão que se seguiu, no fecho de um longo processo de desindustrialização e de deslocalização de actividades dos chamados países desenvolvidos para as emergentes economias asiáticas. Acresce que estes últimos 30 anos foram também um período de alargamento das desigualdades, em contraponto com o que vinha acontecendo desde a II Guerra Mundial. Este movimento tectónico foi com certeza um processo complexo, mas que teve como resultado um avivar de frustrações que os poderes instituídos não souberam antecipar e gerir. E quando o povo acha, com razão ou sem ela, que está a ser enganado, acontecem destas coisas.

As ditaduras são boas ou más para as economias?

Há exemplos para todos os gostos. Ditaduras houve que delapidaram as riquezas do país, outras que construíram em poucos anos um poder económico difícil de obter quando se respeitam as regras e os direitos humanos. Temos, como exemplo, a industrialização da União Soviética com Estaline, que, num curto espaço de tempo, transforma um país agrícola e medieval numa potência industrial, ou o restabelecimento do poderio industrial na Alemanha nazi, que em poucos anos lhe vai permitir assumir o domínio militar de praticamente toda a Europa. Só que nenhum destes modelos é aconselhável ou sequer bom para a saúde. As indescritíveis e vergonhosas páginas escritas na União Soviética e no império nazi, de utilização de trabalho escravo e total indiferença perante a dignidade do género humano, são exemplos do que nunca deveria ter acontecido. Mas convém também ter presente que as democracias não são más para o desenvolvimento económico. Foi em democracia que o império britânico se construiu e em democracia que os Estados Unidos ganharam hegemonia global. Os resultados não dependem pois do modelo, muito menos das mitologias ideológicas.

E em Portugal? Vamos também para uma ditadura?

Se países que são modelos históricos de democracia, como o Reino Unido ou os Estados Unidos, vacilam hoje perante o respeito de regras de convivência que aceitamos como expressão superior do desenvolvimento humano, deixando-se levar em ondas de ódio e aceitando a mentira como ingrediente da vida, o que dizer de países como o nosso onde o ADN democrático tem falhas e nem sempre produziu boas memórias. Não devemos ter ilusões de que em Portugal não estamos imunes ao aparecimento de um messias. Mas convém ter bem presente qual o resultado, em democracia, de um processo de abdicação voluntária de direitos. Porque se Hitler chegou ao poder pela via eleitoral, ainda que sem maioria, isso foi só no início pois o verdadeiro poder foi conquistado quando, pelo medo, as pessoas sucumbiram à violência das suas organizações paramilitares. Um ditador pode chegar ao poder pelo voto, mas não se perpetua pelo voto, perpetua-se pela força que consegue exercer sobre as pessoas, a quem, sucessivamente, vai retirando os direitos.

Será que é isso que queremos?

Já agora, para os lusos nacionalistas que já se entusiasmam com o que se está a passar, seria útil que tivessem consciência de que personagens como Trump, Putin, Orbán, Erdogan, Bolsonaro e outras, além do fascínio que podem provocar, têm pelo menos uma coisa em comum: nada do que fazem, nem do que gostariam de fazer, tem como objectivo proteger Portugal.

Será que não sabemos?»

José Veiga Sarmento

O teu nome, Liberdade

  por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 17/11/2018)

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“Aproveitando a tranquilidade de um voo para Berlim” (que chique que soa!), António Costa lá arranjou um tempinho para responder à carta aberta de Manuel Alegre onde este desabafava “basta do politicamente correcto”! O tom paternalista e condescendente da resposta de António Costa seria apenas deselegante e mesmo cruel, não se desse o caso, mais grave, de a sua argumentação e posterior confronto dos registos de Costa com o assunto tauromáquico revelarem antes uma arrogante superioridade que é o chão onde ele tropeça e se atasca sem bóia de salvação. Comecemos pela argumentação.

Quando se solidarizara com a sua ministra da Cultura na perseguição fiscal às touradas, invocando também a sua aversão pessoal a elas, o primeiro-ministro finge não perceber que o que está em causa na discussão é justamente a legitimidade que um governante não tem de decidir em função dos seus gostos pessoais.

Que o deputado do PAN, que foi eleito com esse programa, o queira levar avante, é inteiramente legítimo; que um ministro da Cultura invoque os seus gostos pessoais para taxar mais ou menos os espectáculos de que gosta ou não gosta ou que acha civilizados ou não, tem um nome: chama-se abuso de poder. E eu, sinceramente, não vejo aqui qualquer diferença entre esta situação e aquela em que um patético ex-secretário de Estado da Cultura excluiu um livro de Saramago de um concurso literário europeu por entender, no seu gosto pessoal, que ele ofenderia os valores civilizacionais dos portugueses. É nestas alturas que se vê como o poder pode ser perigoso... Também não pode passar em vão a sibilina ameaça que Costa deixou implícita à administração da RTP: “repugna-lhe” ver a transmissão de touradas pela empresa pública de televisão (hoje em dia creio que reduzida apenas a uma única transmissão, a da própria “Corrida RTP”, com enorme audiência — e daí o perigo que os seus opositores vêem nela). É verdade que o PM acrescentou que, apesar dessa repugnância, não lhe passa pela cabeça proibi-la, mas o simples facto de admitir que, em querendo, poderia proibi-la, leva a que alguém como eu, que já assistiu a vários “recados” destes no passado e viu as respectivas consequências acontecerem, não possa presumir a completa inocência desta frase, aparentemente inócua. Enfim, e o principal quanto à argumentação de António Costa: diz ele que “rejeita a tourada como manifestação pública de violência ou de desfrute do sofrimento animal”. E peço desculpa: esta afirmação é de má-fé intelectual, não há outra forma de a classificar. O que leva António Costa a concluir com tal segurança que o público que vai às touradas ou as vê na televisão o faz porque gosta de ver violência ou sofrimento dos animais? Eu não sou aficionado, mas há coisas nas touradas, enquanto espectáculo, que acho maravilhosas e, entre elas, não está nem a violência nem o sofrimento dos animais. Ainda há dias, António Costa foi à Luz ver o seu Benfica jogar contra o Ajax. Como seria de prever e frequentemente acontece, houve desacatos entre a claque dos holandeses e os “grupos organizados de adeptos”, a que no Benfica não se podem chamar claques, para contornar a lei em vigor — e de que, aliás, o senhor primeiro-ministro deveria ser, em última instância, o garante do respectivo cumprimento. No final, até os “grupos organizados de adeptos” do Benfica prosseguiram as cenas de violência no hotel onde estavam os holandeses. Poderei eu dizer também, aplicando a mesma regra de pensamento, que António Costa foi à Luz, não porque gosta de futebol, mas porque gosta de violência?

E, finalmente, o que tramou a eficácia da prosa produzida por António Costa, na tranquilidade do seu voo para Berlim, foi a divulgação posterior do registo histórico do seu pensamento tauromáquico. O passado, já o sabemos, raramente é tranquilo, e o dos políticos menos ainda: António Costa devia sabê-lo. Antes de se proclamar tão definitivamente repugnado pelo espectáculo taurino, o actual António Costa, primeiro-ministro, deveria ter feito um esforço de memória para se lembrar do que fizera ou dissera sobre o mesmo assunto o mesmo António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, uma dúzia de anos atrás. Eu sei, foi tudo por inerência de funções. Foi por inerência de funções que ele frequentou o Campo Pequeno, por inerência de funções que condecorou um forcado em final de carreira, louvando-o por escrito como figura que engrandeceu a cidade de Lisboa, e por inerência de funções que teceu tão rasgados elogios de gratidão ao contributo da “arte” (sim, da “arte”!) tauromáquica para a cidade de Lisboa. Concedo até que terá assinado de cruz o louvor sem sequer o ler, que terá engolido as touradas com bem disfarçada repugnância: ossos do ofício. Pois, seja. O poder é perigoso e a política é um jogo de espelhos: “Aqui estou eu agora, ocultando o que sinto, dizendo o que não penso, condecorando quem não respeito. Mas um dia serei livre para dizer e fazer tudo o que penso”. A minha legítima pergunta é: e como é que distinguiremos esse dia do dia de ontem? E do dia de amanhã?


2 Escrevi as vezes que entendi necessárias sobre a investigação do caso Sócrates e os atropelos que, no meu entender, ela cometeu sobre direitos e garantias processuais de quem é investigado em processo-crime. Em nenhum momento o que escrevi — e frisei-o sempre — implicava qualquer juízo de valor sobre a culpabilidade ou inocência dos acusados (para o que me faltavam, e continuam a faltar ainda, elementos de conhecimento determinantes), mas apenas sobre aquilo que é essencial garantir num Estado de direito. Tal, porém, não evitou que para alguns Torquemadas de trazer por casa, eu fosse imediatamente classificado numa lista de “amigos de Sócrates” — logo completada pelo habitual rol de calúnias e ofensas nessas escolas de crime impune que são as redes sociais.

Pois bem, volto ao assunto para dizer que as circunstâncias em que, mais uma vez, o Ministério Público, com o aval de um juiz de Instrução, procedeu à detenção prévia para interrogatório de Bruno de Carvalho e do chefe da claque Juve Leo é inadmissível, intolerável e um espectáculo degradante para a nossa Justiça. Independentemente da questão de fundo que está em investigação, que é séria e suficientemente grave para ser levada até onde for necessário.

Mas que alguém possa estar quatro dias e quatro noites preso numa esquadra de polícia (e sem condições de detenção sequer aceitáveis) à espera que um juiz tenha tempo para o ouvir — e até à espera que tenha fim uma greve de funcionários de Justiça — é de um abuso e de um arbítrio que os magistrados verdadeiramente só entenderiam no dia que lhes coubesse o mesmo em sorte. O que, como é óbvio, jamais acontecerá.

A figura da “detenção prévia” para interrogatório não existe na lei: existe, sim, a convocatória e só se alguém se furtar a ela é que o juiz pode determinar a sua detenção para vir a interrogatório. Agora, isto que vemos é uma invenção, sem cabimento legal e, sobretudo, sem cabimento num sistema penal civilizado. Da mesma forma que é inaceitável que onde a lei diz que um detido deve ser presente em 48 horas a um juiz para que a sua detenção seja ou não validada, essa validação não pode ser substituída pela simples identificação do detido pelo juiz (para se certificar que não prenderam a pessoa errada?), após o que o mesmo regressa à cela, continuando à espera que o juiz tenha uma aberta na agenda para o ouvir. É que, além de ilegal e abusiva, esta espécie de pré-prisão preventiva tem tendência a acarretar uma consequência posterior: que é a de o juiz se ver tentado a decretar a prisão preventiva como forma de justificar a posteriori os dias que o suspeito já passou na prisão à espera de ser ouvido — muito embora não tenha sido esse o desfecho aqui. Estamos no terreno dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos face ao poder penal do Estado. É aqui que o grau de saúde democrática de um país se começa a conhecer. Mas há sempre razões muito ponderosas e necessidades de investigação muito atendíveis para ir facilitando. E, de facilidade em facilidade, vamo-nos habituando a ver como normal o que é inaceitável.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Quatro perplexidades sobre o show judicial da semana

  por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/11/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Qualquer pessoa que tenha acompanhado o que escrevo sabe o que penso sobre o último mandato de Bruno de Carvalho. E sabe o que penso das suas responsabilidades, mesmo que não criminais, em relação ao que se passou em Alcochete. E sabe o que penso sobre o que ele disse depois de Alcochete. E sabe o que penso das claques e do seu comportamento, agravado pelo facto de a Juventude Leonina ter publicado esta semana, na sua página oficial, um cartaz de solidariedade com alguém que é suspeito de participação num ato criminoso de enorme gravidade (“Musta, tens um exército a teu lado”, pode ler-se na página de Facebook da claque).

No que toca ao que o Sporting tem de fazer, espero que finalize rapidamente o processo disciplinar contra Bruno de Carvalho e ponha na ordem quem julga que pertencer a uma claque de um clube lhe garante impunidade legal e moral. Sobre tudo isto escrevi na segunda-feira. E sobre a Justiça, disse na altura: “À hora a que escrevo não é clara a razão da detenção, a um domingo, de alguém que se tinha apresentado voluntariamente. Nem a razão para se terem feito as buscas à casa da Juventude Leonina e a detenção do seu líder minutos antes do início de um jogo do Sporting.”

Com a libertação de Bruno de Carvalho e Nuno Mendes (“Mustafá”), já se podem dizer algumas coisas sobre o espetáculo a que assistimos no último fim de semana. E quase nenhuma deixa a Justiça bem vista.

Já nem vou perder tempo com as trapalhadas que nos revelam como está a funcionar a Justiça – desde um juiz que se esquece de avisar os advogados do pedido de especial complexidade de investigação a uma greve há muito marcada que atrasa o anúncio das medidas de coação, passando pela incapacidade de localizar Jorge Jesus, que toda a gente sabe onde está. Fico-me apenas por quatro perplexidades mais imediatas.

Primeira: porque se escolheu fazer uma busca na “casinha” da Juventude Leonina e a detenção do seu líder durante um jogo do Sporting, contribuindo para acicatar paixões clubísticas em vez de favorecer a serenidade deste processo? Parece que o Ministério Público continua a ter uma atração insuportável pelos holofotes. Que corresponde, como não podia deixar de ser, ao striptease, quase em direto, de toda a investigação. Estou à espera das transmissões áudio (ou mesmo vídeo) do interrogatório a Bruno de Carvalho.

Porque se escolheu fazer uma busca e detenção durante um jogo do Sporting? O que esperava a GNR encontrar na sede da claque e na casa do seu líder quase meio ano depois dos acontecimentos? Porque foram Bruno de Carvalho e Nuno Mendes detidos a um domingo, para serem ouvidos quatro dias depois? Faz algum sentido a acusação de terrorismo?

Segunda: o que esperava a GNR encontrar, na sede da claque e na casa do seu líder, quase meio ano depois dos acontecimentos? Imagino que a descoberta de 20 gramas de cocaína e algum haxixe justificam tamanho aparato policial e mediático, mas duvido seriamente que contribua para descobrir o que aconteceu em Alcochete. Nem os membros das claques são tão burros que guardem alguma prova do seu envolvimento no caso durante tanto tempo.

Terceira: porque foram Bruno de Carvalho e Nuno Mendes detidos a um domingo, quando não poderiam ser ouvidos pelo tribunal? Não havendo qualquer risco de fuga – Bruno de Carvalho já se tinha apresentado antes para depor e, como se viu, a medida de coação foi a menos gravosa de todas –, para que raio se mantêm detidos dois inocentes (é isso que são até prova em contrário) durante quatro dias? Para alimentar o espetáculo mediático?

Quarta: à luz de tudo o que sabemos sobre o caso, faz algum sentido a acusação de terrorismo? Neste assunto tenho de ser mais benevolente com a Justiça do que com o legislador. Como a lei inclui no terrorismo tudo o que corresponda a um grupo organizado para intimidar certas pessoas ou grupos de pessoas através de crimes contra a integridade física e contra a liberdade, cabe lá imensa coisa. Incluindo o que obviamente não é terrorismo. Mas o Ministério Público não deve esticar a corda para conseguir bons títulos e nenhuma condenação. O bom senso também é preciso na aplicação da lei.

Muita gente não compreende a exigência do Estado de Direito e confunde-a com cumplicidade com o crime. Ou só a compreende quando lhe dá jeito. Defendi a destituição de Bruno de Carvalho depois de Alcochete e também por causa de Alcochete. Considero que o perfil do líder da Juventude Leonina corresponde a quase tudo o que está errado nas claques e no futebol. E acho que, a serem culpados, conspiraram contra o meu clube, provocando-lhe um enorme prejuízo moral e financeiro. Espero, aliás, que o Sporting se constitua como assistente neste processo. Como fez no processo e-toupeira, mas aqui com redobradas razões. Mas nada me fará abandonar a exigência de uma Justiça eficaz, que respeite os direitos liberdade e garantias dos cidadãos e que trabalhe menos para os holofotes e mais para o cumprimento da lei. Já cansa tanto espetáculo.