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quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

E amanhã há mais Marcelo

Novo artigo em Aventar


por João Mendes

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Cartoon de António Jorge Gonçalves

Por volta das 21h, alguns órgãos de comunicação social deram conta de um motim no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Um motim à portuguesa, apesar dos colchões à arder, ao qual o Grupo de Intervenção de Segurança Prisional da GNR foi chamado, apesar de não ter chegado a entrar. É que o motim, do qual resultaram zero feridos, teve início pelas 19h e pelas 20:30h já estava concluído. Tipo aquelas manifestações que começam tarde e desmobilizam por volta da hora do jantar.

Já o presidente Marcelo, que não falha uma, terminou o jantar com o seu homólogo chinês, fez a resenha do Livro Vermelho do Mao, abandonou o Palácio da Ajuda, parou para ver as luzes de Natal e deu um salto ao Estabelecimento Prisional de Lisboa, onde se inteirou da situação, confortou pessoas, tirou selfies e deu abraços. Meio país sem saber o que se passava e já Marcelo tinha ido e regressado.

Marcelo - lapalissada alert - está mesmo em todo o lado. E tende a ser o primeiro a chegar. Na cerimónia e na tragédia, na Websummit ou no Estoril Open, Marcelo é omnipresente e, reza a lenda, ainda tem tempo para ler e dormir. Porém, há quem não aprecie o estilo. Há quem prefira aristocratas cinzentos com pulsões autoritárias. Eu, que não votei nele, e que deixei isso bem claro por estas bandas, não estou desagradado. Gosto de o ver em sítios, a conversar com pessoas e até a criar conteúdos para redes sociais. Podia ser pior, o que, nos tempos que correm, sempre dá algum conforto.

E amanhã há mais Marcelo.

Neoliberalismo, o caminho negro para o fascismo

  por estatuadesal

(Chris Hedges, in Resistir, 04/12/2018)

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O neoliberalismo como teoria económica sempre foi um absurdo. Tinha tanta validade quanto as ideologias dominantes do passado, como o direito divino dos reis   e a crença fascista no Übermensch . Nenhuma das suas alardeadas promessas era remotamente possível.

Ao concentrar a riqueza nas mãos de uma elite oligárquica global – oito famílias detêm hoje tanta riqueza quanto 50% da população mundial – enquanto procedia à demolição de controlos e regulamentações governamentais, gerou sempre maciças desigualdades de rendimento, poder dos monopólios, alimentou o extremismo político e destruiu a democracia. Não é necessário folhear as 577 páginas de Capital in the Twenty-First Century de Thomas Piketty para descobrir isso. Mas a racionalidade económica nunca foi o ponto. O ponto era a restauração do poder de classe.

Como ideologia dominante, o neoliberalismo foi um êxito brilhante. A partir dos anos 70 do século XX, os seus principais críticos keynesianos foram expulsos das universidades, instituições estatais e organizações financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial e excluídos dos media. Os cortesãos e intelectuais impostores, como Milton Friedman , foram preparados em locais como a Universidade de Chicago, foram-lhes dados lugares proeminentes e pródigos fundos de grandes empresas. Disseminaram os dogmas oficiais de teorias económicas desacreditadas, popularizadas antes por Friedrich Hayek e pela escritora de terceira categoria Ayn Rand .

Uma vez ajoelhado diante dos ditames do mercado, anulando regulamentações governamentais, reduzindo os impostos para os ricos, permitindo o fluxo de dinheiro através das fronteiras, destruindo sindicatos e assinando acordos comerciais que desviavam empregos para fábricas sem condições na China, o mundo seria mais feliz e livre, um lugar mais rico. Foi um golpe. Mas funcionou.

"É importante reconhecer as origens de classe deste projeto, que ocorreu na década de 1970, quando a classe capitalista estava em grandes dificuldades, os trabalhadores estavam bem organizados e começavam a avançar", disse David Harvey , autor de A Brief History of Neoliberalism , quando falámos em Nova York. "Como qualquer classe dominante, eles precisavam de ideias dominantes. Assim, a liberdade do mercado, as privatizações, o empreendedorismo do eu, a liberdade individual e tudo o mais deveriam ser as ideias dominantes de uma nova ordem social, e foi essa a ordem implementada nos anos 80 e anos 90".

"Como projeto político, foi muito habilidoso, disse ele. "Conseguiu muito consentimento popular porque falava sobre liberdade individual e liberdade de escolha. Quando eles falavam sobre liberdade, era a liberdade do mercado. O projeto neoliberal disse à geração de 68: "Tudo bem, você quer liberdade? É Isso que o movimento estudantil pretende nós vamos dar isso a vocês, mas vai ser a liberdade do mercado. A outra coisa que você procura é justiça social – esqueça. Então, vamos dar-lhes liberdade individual, mas esqueçam a justiça social. Não se organizem". O objetivo era desmantelar as instituições, as instituições coletivas da classe trabalhadora, particularmente os sindicatos e pouco a pouco os partidos políticos que representassem algum tipo de preocupação com o bem-estar das massas".

"A grande coisa sobre a liberdade do mercado é que parece ser igualitária, mas não há nada mais desigual do que o tratamento igual dos desiguais", continuou Harvey. "Promete igualdade de tratamento, mas se você for extremamente rico, isso significa que pode ficar ainda mais rico. Se você for muito pobre, é mais provável que fique ainda mais pobre. O que Marx mostrou brilhantemente no primeiro volume de O Capital é que a liberdade de mercado produz níveis cada vez maiores de desigualdade social ".

A disseminação da ideologia do neoliberalismo foi altamente organizada por uma classe capitalista unificada. As elites capitalistas financiaram organizações como a Business Roundtable, a Câmara de Comércio e grupos de reflexão como a The Heritage Foundation para vender a ideologia ao público. Inundaram universidades com doações, desde que as universidades retribuíssem com fidelidade à ideologia dominante. Usaram a sua influência e riqueza, bem como serem donos dos media, para transformar a imprensa no seu porta-voz. Silenciaram ou dificultaram o emprego a quaisquer heréticos. O aumento dos valores das ações, em vez da produção, tornou-se a nova medida da economia. Tudo e tudos foram financiarizados e tornados mercadorias.

"O valor é fixado por qualquer que seja o preço verificado no mercado", disse Harvey. "Assim, Hillary Clinton é muito valiosa porque fez uma palestra na Goldman Sachs por 250 mil dólares. Se eu der uma palestra para um pequeno grupo no centro da cidade e receber 50 dólares, então obviamente ela vale muito mais do que eu. A valorização de uma pessoa e do seu conteúdo é avaliada por quanto consegue obter no mercado".

"Esta é a filosofia por trás do neoliberalismo", continuou. "Temos de atribuir um preço às coisas. Mesmo que não sejam realmente coisas que devam ser tratadas como mercadorias. Por exemplo, a assistência médica torna-se uma mercadoria. Habitação para todos torna-se uma mercadoria. A educação torna-se uma mercadoria. Assim, os estudantes têm de pedir emprestado para obter a educação que lhes dará um emprego no futuro. Esse é o golpe da coisa. Basicamente, diz-se que se você é um empreendedor, se se qualificar, etc, receberá a justa recompensa. Se não recebe uma justa recompensa é porque não se qualificou suficientemente. Adquiriu o tipo errado de cursos. Fez cursos de filosofia ou de clássicos em vez de aprender técnicas de gestão de como explorar mão-de-obra.

O contra do neoliberalismo é agora amplamente compreendido em todo o espectro político. É cada vez mais difícil esconder a sua natureza predatória, incluindo suas exigências de enormes subsídios públicos (a Amazon, por exemplo, recentemente solicitou e recebeu incentivos fiscais multimilionários de Nova York e Virgínia para estabelecer centros de distribuição nesses estados). Isso forçou as elites dominantes a fazerem alianças com demagogos de direita que usam as táticas cruas do racismo, islamofobia, homofobia, fanatismo e misoginia para canalizar a raiva e a crescente frustração do público para longe das elites e canaliza-la para os mais vulneráveis.

Esses demagogos aceleram a pilhagem pelas elites globais e, ao mesmo tempo, prometem proteger os trabalhadores e as mulheres. A administração de Donald Trump, por exemplo, aboliu numerosas regulamentações , das emissões de gases do efeito estufa [1] à neutralidade da Internet e reduziu os impostos para os indivíduos e empresas mais ricos, eliminando cerca de 1,5 milhão de milhões de dólares de receita do governo nos próximos dez anos, adotando linguagem e formas autoritárias de controlo.

O neoliberalismo gera pouca riqueza. Em vez disso, redistribui-a para as mãos das elites dominantes. Harvey chama isso de "acumulação por desapossamento".

"O principal argumento da acumulação por desapossamento baseia-se na ideia de que quando as pessoas ficam sem capacidade de produzir ou fornecer serviços, elas criam um sistema que extrai riqueza de outras pessoas", disse Harvey. "Essa extração então torna-se o centro de suas atividades. Uma das maneiras pelas quais essa extração pode ocorrer é criando mercados onde antes não existiam. Por exemplo, quando eu era mais jovem, o ensino superior na Europa era essencialmente um bem público. Cada vez mais [este e outros serviços] se tornaram uma atividade privada como os serviços de saúde. Muitas dessas áreas que você consideraria não serem mercadorias no sentido comum, tornam-se assim mercadorias. Habitação para a população de baixos rendimentos era frequentemente vista como uma obrigação social. Agora tudo tem de passar pelo mercado. Impõe-se uma lógica de mercado em áreas que não deveriam estar abertas ao mercado".

"Quando eu era criança, a água na Grã-Bretanha era fornecida como um bem público", disse Harvey. "Então, é claro, foi privatizada. Você começa a pagar taxas de água. Eles privatizaram o transporte [na Grã-Bretanha]. O sistema de autocarros é caótico. Há empresas privadas a circularem por toda parte. Não é o sistema que as pessoas realmente precisam. A mesma coisa acontece na ferrovia. Uma das coisas agora interessantes na Grã-Bretanha é que o Partido Trabalhista diz: 'Vamos trazer tudo isso de volta à propriedade pública porque a privatização é totalmente insana e tem consequências insanas, não está a funcionar devidamente. A maioria da população concorda com isto".

Sob o neoliberalismo, o processo de "acumulação por desapossamento" é acompanhado pela financiarização.

"A desregulamentação permitiu que o sistema financeiro se tornasse um dos principais centros de atividade redistributiva através da especulação, predação, fraude e roubo", escreve Harvey no seu livro, talvez o melhor e mais conciso relato da história do neoliberalismo. "Promoções de ações, esquemas Ponzi, destruição de ativos estruturados pela inflação, espoliação de ativos por meio de fusões e aquisições, promoção de níveis de endividamento que reduzem populações inteiras – mesmo nos países capitalistas avançados – à escravidão pelas dívidas. Para não falar em fraudes empresariais, desapropriação de ativos, invasão de fundos de pensão dizimados em colapsos de ações e por manipulação do crédito e do valor de ações, tudo isso se tornou uma característica central do sistema financeiro capitalista".

O neoliberalismo, exercendo um tremendo poder financeiro, é capaz de fabricar crises económicas para deprimir o valor dos ativos e depois apossar-se deles.

"Uma das maneiras pelas quais se pode engendrar uma crise é cortar o fluxo de crédito". "Isso foi feito no leste e sudeste da Ásia em 1997 e 1998. De repente, a liquidez secou. As principais instituições deixam de emprestar dinheiro. Havia um grande fluxo de capital estrangeiro para a Indonésia. Eles fecharam a torneira. O capital estrangeiro fugiu. Fecharam a torneira do crédito em parte porque, uma vez que as empresas fossem à falência, poderiam vir a ser compradas e colocadas novamente a funcionar. Vimos a mesma coisa durante a crise da habitação aqui [nos EUA]. As execuções hipotecárias das habitações deixaram muitas vazias que poderiam ser apanhadas a preços muito baixos. A Blackstone [2] apareceu, comprou todas as casas e é agora o maior senhorio dos Estados Unidos. Tem 200 mil propriedades ou algo parecido. Está à espera que o mercado dê uma volta. Quando o mercado muda, o que pode acontecer em breve, então poderá vender ou arrendar e ganhar imensos lucros com isso. Desta forma, a Blackstone ganhou uma fortuna a crise dos arrestos hipotecários, onde todos perderam. Foi uma enorme transferência de riqueza".

Harvey adverte que a liberdade individual e a justiça social não são necessariamente compatíveis. A justiça social, escreve ele, requer solidariedade social e "disposição de subordinar necessidades e desejos individuais à causa de uma luta mais geral por, digamos, igualdade social e justiça ambiental". A retórica neoliberal, com ênfase em liberdades individuais pode efetivamente "separar as ideias de liberdade, identidade política, o multiculturalismo e, eventualmente, o consumismo narcisista, das forças sociais alinhadas na procura de justiça social através da conquista do poder de Estado".

O economista Karl Polanyi entendeu que existem dois tipos de liberdade. Há as más liberdades para explorar os que nos rodeiam e extrair enormes lucros sem levar em conta o bem comum, incluindo o mal que é feito ao eco-sistema e às instituições democráticas. Essas más liberdades têm origem no facto de as grandes empresas monopolizarem as tecnologias e os avanços científicos a fim de obter enormes lucros, mesmo quando, como no caso da indústria farmacêutica, um monopólio significa que as vidas daqueles que não podem pagar preços exorbitantes são colocadas em risco. As boas liberdades – liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher o seu trabalho – acabam por ser extintas pela primazia dada às más liberdades.

"Planeamento e controlo são atacados como negação da liberdade", escreveu Polanyi. "A livre iniciativa e a propriedade privada são declaradas essenciais para a liberdade. Uma sociedade construída sobre outros fundamentos é dito que não merece ser chamada de livre. A liberdade que a regulamentação cria é denunciada como falta de liberdade; a justiça, a liberdade e o bem-estar que ela oferece são denunciados como uma camuflagem da escravidão".

"A ideia de liberdade" degenera, assim, numa mera defesa da livre iniciativa, que significa "a plenitude da liberdade para aqueles cujo rendimento, lazer e segurança não precisam ser promovidos, e uma mera margem de liberdade para as pessoas que podem em vão tentar fazer uso de seus direitos democráticos para se defenderem do poder dos donos do capital", escreve Harvey, citando Polanyi. "Mas se, como é sempre o caso, "nenhuma sociedade é possível em que o poder e a compulsão estejam ausentes, nem num mundo em que a força não seja necessária", então a única maneira pela qual esta visão utópica liberal poderia ser sustentada é pela força, violência e autoritarismo. A utopia liberal ou neoliberal está condenada, na opinião de Polanyi, a ser frustrada pelo autoritarismo, ou mesmo pelo fascismo total. As boas liberdades estão perdidas, as más são assumidas.

O neoliberalismo transforma a liberdade de muitos em liberdade para alguns. O resultado lógico é o neofascismo. O neofascismo abole as liberdades civis em nome da segurança nacional e classifica grupos inteiros como traidores e inimigos do povo. É o instrumento militarizado usado pelas elites dominantes para manter o controlo, dividir e separar a sociedade e acelerar ainda mais a pilhagem e a desigualdade social. A ideologia dominante, não sendo mais crível, é substituída pela bota militar.

[1] O autor toma como boa a maior impostura científica da história da humanidade: a teoria do aquecimento global.   Ver Aquecimento global: uma impostura científica   e   Acerca da impostura global
[2] Blackstone: é o fundo abutre que em Portugal adquiriu o Novo Banco (ex-Banco Espírito Santo) por preço praticamente nulo.

[*] Jornalista. Durante quase duas décadas foi correspondente estrangeiro na América Central, Médio Oriente, África e Balcãs. Fez reportagens em mais de 50 países e trabalhou para The Christian Science Monitor, National Public Radio, Dallas Morning News e The New York Times, no qual foi correspondente estrangeiro durante 15 anos.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Quando a carga fiscal se torna excessiva – II

Novo artigo em Aventar


por António de Almeida

Em boa hora o governo francês cedeu à pressão da sociedade e recuou na intenção de subir impostos sobre combustíveis. O primeiro-ministro já veio dizer que se as pessoas querem diminuir a receita fiscal, terão que repensar a despesa pública. Vale a pena recordar que nos últimos 10 anos a carga fiscal tem vindo a subir, rondando os 48% para um inacreditável nível de despesa pública perto dos 57%. Ou seja, boa parte dos franceses trabalha mais para alimentar o Estado do que a si próprios, o que além de imoral, é um atentado à Liberdade. Os governos nunca limitam gastos, mas os bolsos do contribuinte não são infinitos, algum dia o esbulho terá que parar… Ler mais deste artigo

"Coletes amarelos" em Portugal?

Ladrões de Bicicletas


Posted: 03 Dec 2018 02:47 PM PST

O que se passa em França assemelha-se cada vez mais a um movimento de revolta popular que tem por base uma acumulação de desigualdades sociais, agravadas pelas consequências de uma política orçamental associada à manutenção do euro.
Parte dessa movimentação pareceu, no início, erguer bandeiras de direita - contra uma subida dos impostos - o que já recebeu uma oportunística resposta por parte do ministro da Economia e Finanças de que era preciso reduzir os impostos e... a despesa pública. Mas o mal-estar geral parece tornar-se transversal, com críticas à esquerda ao governo Macron, pela redução dos impostos aos mais ricos e aumento dos impostos aos mais pobres. Após algumas hesitações, o movimento conta já com a participação política da população de esquerda.
Essas condições materiais para a revolta explodiram em França. Mas poderão eclodir em qualquer país. Porque a mãe de todos os populismos - como a direita gosta de lhe chamar - está na perpetuação de injustiças sociais.
Veja –se o que se passa em Portugal em termos fiscais, nomeadamente no IRS.
O IRS era suposto ser o imposto único sobre o rendimento recebido individualmente. Antes de 1989, o imposto que incidia sobre as diversas formas de rendimento tinha taxas diferenciadas. A reforma fiscal levada a cabo em 1989, era Cavaco Silva primeiro-ministro, pretendeu criar um imposto único, mas ao arrepio da comissão de reforma fiscal, o governo manteve a diferenciação de taxas e regimes, em nome da competitividade fiscal entre países. Os rendimentos de capitais não estão sujeitos à progressividade constitucional da tributação sobre o rendimento. O englobamento de todos os rendimentos não é obrigatório. O ónus da prova da veracidade das declarações fiscais apresentadas pelos contribuintes ficou do lado do Fisco.
Resultado: apenas os assalariados e pensionistas – cujos rendimentos não podiam deixar de ser declarados – declararam na totalidade os seus rendimentos. Os outros parecem mal contribuir para a sociedade.

De 2001 a 2016, os agregados familiares cujos principais rendimentos eram salariais e de pensões representaram sempre cerca de três quartos do universo de contribuintes. Quanto ao rendimento bruto declarado, detinham em 2001 cerca de 86% de rendimento bruto declarado. Mas em 2016 era já 92%!
As outras categorias de rendimento pesavam em 2016 apenas... 8% do total declarado!
Os agregados que viviam sobretudo de rendimentos empresariais e profissionais ou em regime de transparência fiscal (por exemplo, escritórios de advogados) representavam, em 2001, cerca de 10% dos agregados e pouco cresceram até 2016. Mas o peso do seu rendimento reduziu-se de 10% para 5%, o que é inverosímil.
Quanto aos detentores de rendimentos de capitais e mais valias, pouco variaram entre 2001 e 2016: situaram-se ao redor dos 5 a 6%. Mas o seu peso no rendimento bruto declarado nunca atingiu o 1% nos 16 anos analisados!
Já os rendimentos prediais chegavam, de 2001 a 2016, a cerca de 8% do universo de contribuintes. E o seu peso no rendimento global passou de 3 para 2%!

Fonte: Números calculados com base nos dados da Autoridade Tributária

Por agregado, verifica-se a situação mais inacreditável possível depois de tudo o que se passou na última década: os rendimentos salariais e as pensões são, em média, os rendimentos mais elevados por agregado e subiram de 2001 para 2016. Ao mesmo tempo, os rendimentos empresariais e profissionais desceram, bem como os prediais. Os rendimentos de capital por agregado que eram em 2001 de 766 euros anuais, passaram em 2016 para 2319 euros anuais!  Qualquer coisa como 193 euros mensais!
Ou os rendimentos individuais passaram para a esfera empresarial; ou os assalariados e pensionistas passaram a ser os maiores beneficiários de rendimento de capitais (em contas de poupança bancária); ou verifica-se uma enorme – enormíssima, gigantesca! – evasão fiscal. Um buraco, um passadouro monumental que se torna visível naqueles regimes extraordinários de regularização tributária (RERT) de que beneficiaram por exemplo Ricardo Espírito Santo e tantos outros, que os amnistiam, limpam, branqueiam e que proíbem o Estado de os perseguir, tudo com o aval do Parlamento quando PS e PSD/CDS tinham maioria. Mais uma causa para populismos futuros.
De qualquer forma, o IRS – tal como está - não reflecte neste momento nada do que era suposto representar. Qualquer medida relativamente ao IRS atingirá apenas quem é obrigado a declarar rendimentos, tal como acontecia há duas décadas atrás. As outras categorias de rendimento mal pagam para o Orçamento de Estado e, um dia, alguém terá o desplante de os isentar de imposto porque não é eficaz tributá-los...
E tudo isso obriga a uma vasta reforma fiscal. Era isto que um governo de esquerda faria, caso quisesse mudar alguma coisa em Portugal; caso não queira passar, daqui a pouco tempo, por aquilo que está a viver-se em França.
Nessa altura, os arautos da direita falarão de populismos. Mas os populismos são gerados por desigualdades agravadas que protegem durante décadas uma minoria. A periferização da sociedade e das cidades representa uma continuada expulsão de um centro, uma ghetização social e urbana, como se escreve no The Guardian. "A classe trabalhadora e classe média baixa estão de novo visíveis e, com eles, os locais onde eles vivem". O risco é que, como nos Estados Unidos ou em Italia, possam ser cavalgadas pela extrema-direita, evitando na prática outro tipo de movimentos sociais e, no final, para que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma.
Por que será que a direita portuguesa não fala do que se passa em França?

Entre as brumas da memória


Lá chegaremos

Posted: 03 Dec 2018 02:11 PM PST

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Fernando Belo

Posted: 03 Dec 2018 08:33 AM PST

O Fernando Belo morreu hoje. Quando esta fotografia em que está com uma das suas irmãs – a Maria Belo – foi tirada, há 50 anos, éramos jovens, sim. Ele e uns tantos que nos juntámos em Paris, idos de Lisboa, de Lovaina e de Roma para festejarmos a passagem de ano de 1968 (de que outro ano podia ter sido…) num quarto de um modesto hotel do Quartier Latin.

Mas eu já conhecia o Fernando há muito tempo e tenho presente, como se tivesse acontecido há uma hora ou duas, o dia em que ele acabou o curso de engenharia no IST e anunciou que queria ser padre. E lembro-me porque estava à mesa com a sua numerosa e magnífica família.

Não esqueci esse dia, como nunca esquecerei a «Carta- Testemunho de um padre», que todos nós, os seus amigos, recebemos precisamente no Natal de 1968, quando decidiu «desligar-se da classe clerical». Carta essa que terminava assim: «A coragem é boa coisa, companheiros. E também a sua irmã, a esperança». Obrigada, Fernando, meio século depois.

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Coletes Amarelos – um excelente texto

Posted: 03 Dec 2018 06:09 AM PST

France is deeply fractured. Gilets jaunes are just a symptom

«In France, as in all western countries, we have gone in a few decades from a system that economically, politically and culturally integrates the majority into an unequal society that, by creating ever more wealth, benefits only the already wealthy.

The change is not down to a conspiracy, a wish to cast aside the poor, but to a model where employment is increasingly polarised. This comes with a new social geography: employment and wealth have become more and more concentrated in the big cities. (…)

It is in this France périphérique that the gilets jaunes movement was born. It is also in these peripheral regions that the western populist wave has its source. Peripheral America brought Trump to the White House. Peripheral Italy – mezzogiorno, rural areas and small northern industrial towns – is the source of its populist wave. (…)

The impact of the gilets jaunes, and their support in public opinion (eight out of 10 French people approve of their actions), has amazed politicians, trade unions and academics, as if they have discovered a new tribe in the Amazon. (…) This cultural revolution is a democratic and societal imperative – no system can remain if it does not integrate the majority of its poorest citizens.»

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Um dia para não esquecer

Posted: 03 Dec 2018 03:23 AM PST

«Já me emocionei muitas vezes no Parlamento Europeu. Sei bem que o lugar não é associado a tais sentimentos. Também já senti frustração, desalento, tristeza, mas deixem-me falar-vos da emoção. Esta semana que agora termina foi a semana da recusa da integração do Tratado Orçamental no direito comunitário por parte da comissão de Assuntos Económicos e Monetários. O Tratado Orçamental - ou, se quiserem, a formulação jurídica da austeridade e do empobrecimento - foi aprovado em 2012 e passou a vigorar a 1 de janeiro de 2013. Por não haver unanimidade no Conselho Europeu (o Reino Unido e a República Checa ficaram de fora) ganhou forma de tratado intergovernamental, com uma vigência de cinco anos. No final desse período deveria ser incorporado no direito comunitário, ou seja, já em janeiro deste ano.

À obsessão das regras dos 3% como limite do défice e dos 60% da dívida em relação ao PIB juntou-se o delírio do défice estrutural máximo de 1%. Delírio não apenas pelas consequências, mas também pela discricionariedade do seu cálculo e aplicação. No primeiro ano de cálculo nenhum número bateu certo. Os cálculos da Comissão Europeia para cada país não coincidiam com os cálculos de cada um dos governos, que, por sua vez, não coincidiam com os cálculos do Conselho Europeu.

O Tratado Orçamental foi na altura apelidado de Tratado Merkozy e Portugal foi o primeiro país a ratificá-lo. Como prometia, apertou-se o colete de forças da austeridade em Portugal, traduziu-se em mais cortes em salários, pensões e serviços públicos e limitou fortemente o investimento público e a criação de emprego. Já em setembro de 2010, Miguel Portas chamava a atenção para o embrião de uma possível expropriação aos parlamentos nacionais, fazendo dos deputados nacionais verbos de encher. Em abril de 2012, critiquei a atitude do governo socialista português, que se colocou na posição de aluno graxista e aceitou amputar o Parlamento nacional de uma das suas mais importantes funções: decidir sobre o Orçamento. Bati-me contra o Tratado Orçamental desde a primeira hora não por talentos de adivinhação do futuro mas por ser por demais evidente que a terrível combinação semestre europeu e Pacto de Estabilidade e Crescimento só poderia sair reforçada com o Tratado Orçamental.

Recentemente, a Comissão emitiu a comunicação para incluir o Tratado Orçamental no direito comunitário e o Parlamento Europeu foi chamado a pronunciar-se. Coube-me ser a relatora do meu grupo parlamentar para este dossiê. A posição de rejeição ao Tratado Orçamental manteve-se. Os resultados da sua aplicação foram catastróficos em muitos países e em Portugal temos memória.

A votação desta semana, que se traduziu na rejeição desta proposta, é o resultado de um longo processo e de muita gente sacrificada em toda a União. É também resultado da mudança de posição dos socialistas e dos democratas que, depois de ajudarem a criar o tratado, aceitaram os resultados desastrosos. A votação foi difícil, dividida e emotiva. O dia 27 de novembro foi, por isso, um dos dias que não se esquecem. Daqueles dias em que o tempo, a paciência e a persistência se assemelham a justiça. Desde o minuto do voto que começaram já as manobras de bastidores para ressuscitar o tratado. Já pouco me surpreende nesta casa. Se a democracia for para valer, o Tratado Orçamental começou a morrer neste voto. E que seja longa a morte ao tratado do empobrecimento.»

Marisa Matias

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