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domingo, 14 de julho de 2019

Sobre o Estado e os placards de bordéis

por estatuadesal

(Joseph Praetorius, 11/07/2019)

Joseph Praetorius

O facto do MP continuar a usar um conhecido placard de bordéis de Lisboa para veicular posições suas e, no caso, contra a factualidade patente e produzida à vista de todos os presentes em sessão pública, coloca o problema da responsabilidade do Estado na frustração do Direito à Informação em vários níveis;

- O Estado deve ser interpelado como responsável pela deterioração da dignidade da publicação noticiosa, ao permitir a imunidade material objectiva de pretensos jornais, que são meros pretextos para a publicação de placards pornográficos de bordéis,

-O Estado deve ser processualmente interpelado como responsável pela facilitação desta modalidade de proxenetismo pornográfico, uma vez que, ao invés da promoção penal do MP, estes editores pornógrafos recebem notas para publicação do MP que devia promover contra eles,

- O Estado deve ser processualmente interpelado como responsável pela deterioração da qualidade da informação política e judiciária, uma vez que o seu Serviço de Informações e de Segurança ousa remunerar (como agentes e informadores) pretendidos jornalistas desses universos de pornografia de indiciados lenocidas, usando-os em campanhas suas (que são as de funcionários com o freio nos dentes, insusceptíveis de controlo pelo governo, ou pelo parlamento),

- O Estado é responsável pela inoperância da ERC e pela passividade da Comissão da Carteira, que asseguram a absoluta imunidade de quaisquer campanhas ad hominem, esmagadoras, irrespondíveis, maciças - envolvendo até as famílias das vítimas, compreendendo crianças - ao mesmo tempo que os tribunais perseguem com crua ferocidade o protesto de cidadãos comuns, ao abrigo da pretensa injúria e da pretensa difamação.

- Para se ter a noção da perversão radical da liberdade de palavra, os cidadãos comuns são submetidos a perseguição menos que miserável, por pretensa injúria e difamação, a propósito do mais leve protesto, escondendo o Estado os números actuais do miserável assédio a que os cidadãos são por ele submetidos sob tais epigrafes

''enquanto os funcionários do estado (designadamente das policias, MP, e até da organização judicial) se entregam ao estimulo de campanhas de imprensa ad hominem, em violação aberrante de todos os direitos da personalidade das vítimas, mas no próprio e exclusivo interesse dos funcionários, no quadro de acordos plausívelmente delituais,

'''e o Estado esconde - também miseravelmente - os números da chacina a que os seus agentes do MP e demais estruturas judiciárias se têm entregado; assim,

''''foram proferidas no ano de 2013 (último ano de que há dados publicados, que os demais estão escondidos) 1190 condenações por injúria e difamação, simples ou agravadas (com apenas nove condenações de "crimes de imprensa")

'''''não há informação do tempo de pendência destes processos e não há dados quanto às absolvições e tempos de pendência, sendo certo que estes processos são mal em si próprio, doentio instrumento de controlo político, minagem da normal vida das pessoas que ali vivem sob constrangimento indecoroso, como eu próprio declarei ao parlamento sem desmentido ate hoje (não há aliás desmentido possível)

- A liberdade de expressão está completamente anulada neste território, ou apenas subsiste graças à blogosfera e ao FB,

-Transmutou-se numa liberdade de campanha infamatória arbitrariamente decidida por funcionários e seus cúmplices nos organismos da insolvente imprensa e na indigência dos meios audio-visuais comerciais (ainda que não possam passar os públicos por isentos, porque o não são)

-Sublinho - para se ter bem a noção do nível atingido de degenerescência - que tendo formulado há dias uma reclamação, em tribunal superior, onde sublinhava a inépcia de pretendidas manobras de vigilância fora das fronteiras, feitas por pretensos policias portugueses (que fora das fronteiras não podem fazer vigilâncias), onde notara que aqueles infelizes não tinham sequer conseguido descrever um percurso completo que houvessem feito, nem fixar o nome de estabelecimentos comerciais que queriam referir (aquilo era "um café" que ali havia, como se não houvesse vários, a caminho do qual seguiram o alvo "por várias ruas", sendo que em algum lugar terá havido uma inversão de marcha, sem que se possa saber em qual das ruas de entre as diversas) recebi para meu espanto a resposta da policia num jornal (o tribunal preferiu discutir outras coisas) e vinham dizer que tinham descrito um percurso, sim, repetindo o relatório com os mesmos problemas (que não reproduziram em depoimentos verbais);

e portanto os funcionários seguem a evolução dos seus interesses em processo (com evidente colaboração do tribunal) e respondem ou retaliam pela imprensa onde haverá sempre um avençado que "escreve muito bem" a servir-lhes as versões a um público que felizmente já não há.

- Depois dos indecorosos casos de José Sócrates, Frederico Carvalhão e Bruno de Carvalho, o Estado não pode deixar de ser interpelado na óptica dos interesses difusos do Direito à informação pelo facto dos cidadãos estarem sob assédio constante de uma lumpen-imprensa, materializada na propaganda de funcionários e bordéis, parecendo restringir-se a seriedade ao quase único jornal relevante em Língua Portuguesa, o El País (também havendo a edição em Língua Portuguesa do Pravda)

- A conduta reiterada dos funcionários no abuso e manipulação das liberdades da imprensa, das quais também abusam proxenetas e pornógrafos sob a indesmentível protecção funcional daqueles, assume, objectiva e materialmente, o alcance de uma conspiração contra o núcleo fundamental dos valores e instrumentos da Democracia Parlamentar, conduzida por gente que tem do Estado uma concepção onde se assinalam todas as linhas do esboço de Hauriou: o Estado de Petain, Franco e Salazar.

Aos vossos postos, se não se importam.

Vamos tratar disto.

Marcelo, consensos e maiorias

por estatuadesal

(José Gabriel, 12/07/2019)

O manobrador

Já se desenhava há muito, mas o recente discurso do Presidente da República na Fundação Gulbenkian avança por terrenos que, contenhamo-nos na adjectivação, são, no mínimo, duvidosos. O que se questiona, assuma-o o orador ou não, é a própria concepção de democracia.

A democracia pode ser concebida em várias configurações, mas estas têm em comum alguns traços fundamentais. Todos os cidadãos têm o direito de participar em plano de igualdade, de modo directo ou por representantes, na produção de leis, na governação. Idealmente, o sufrágio universal que lhe está na base deve ser tão extenso quanto possível. A autonomia política dos cidadãos implica condições culturais, sociais, económicas e exerce-se em liberdade e igualdade e sob o domínio da Lei. A deliberação em democracia assenta no apuramento das maiorias determinadas – que podem ser, de vários modos, qualificadas -, e no escrupuloso respeito pelas minorias.

Se o que se diz atrás é aceitável, todos os devaneios mais ou menos obscuros de Marcelo Rebelo de Sousa sobre os méritos e vantagens dos consensos – termo a que nunca se faz corresponder um conceito claramente definido - sobre as maiorias – chamadas, pelo orador, conjunturais – perdem todo o sentido.

Parece ao senso comum que a noção de consenso é bondosa, pelo atávico receio da clareza da oposição de convicções, opiniões, propostas políticas. No “consenso” tudo parece diluir-se num caldo morno de indefinição, num lago de águas turvas onde se pesca com facilidade. E note-se: os campeões de consenso nunca ou raramente dão conteúdo objectivo e concreto a tais fantasmas propositivos.

Não que o consenso não possa ser uma ocorrência simpática no dia a dia, em matérias onde não nos vale a pena o confronto por ser estéril o motivo. Mas em política, opor os alegados méritos do consenso aos alegados deméritos das maiorias é um gesto fundamentalmente anti-democrático. No caso de Marcelo nem há o esforço de uma formulação muito sofisticada. Consensos são as maiorias de que ele gosta; maiorias conjunturais - como se todas, em princípio, não o fossem - são as que o desgostam. Toda a retórica da necessidade de leis estruturantes é uma treta, a não ser numa formulação tão básica e abstracta que, por ausência de matéria, mereça a concordância de todos pela via do não-ser que, como ensina o mestre, não nos leva a lado nenhum.

Marcelo sabe que qualquer maioria, mesmo que qualificada, pode ser, tarde ou cedo, contrariada por uma outra. E pode tal nunca acontecer. É isto a democracia representativa. Mas criar “consensos”, reais ou imaginários, que sejam obstáculos à livre expressão dos representantes dos cidadãos, é uma manobra pouco clara – para dizer o mínimo. No limite, esses tais consensos teriam, para ser efectivos, de se traduzir em maiorias.

Dir-me-ão que há leis consensuais, como a Constituição da República. Não é verdade. Só a determinação de haver uma Constituição foi um momento de consenso. Logo que ela se começou a escrever, emergiram a naturais diferenças e o resultado esteve longe de ser consensual e unânime. A aprovação fez-se por significativa maioria, não por um qualquer difuso consenso. E as suas revisões por maiorias se fizeram.

Sei o que quem teve paciência para me ler até aqui pode estar a pensar: que sou ingénuo, que os consensos de Marcelo não são mais que um apelo à formação de um bloco central que, além de lhe fazer as vontades, o viesse a reeleger. Talvez tenham razão, mas isso torna tudo mais grave e nebuloso.

Vem aí a votação da Lei de Bases da Saúde. Marcelo, a quem nunca incomodou o facto de a lei vigente ter sido aprovada pela direita e ter sido – lamentavelmente – duradoura, parece agora abespinhado por a nova lei poder vir a ser aprovada pela esquerda – que, aliás, foi quem criou o SNS – a ponto de ameaçar um veto político.

Já vimos que as razões do presidente são fracas e vãs. Mas não desinteressadas. A Lei, penso eu, será votada e aprovada por significativa maioria. E Marcelo, se tiver o atrevimento de a vetar terá, desejo eu, a derrota que merece. E se, mais tarde, outra maioria alterar de novo a lei – para melhor, espero -, olhem, é a vida…

Um medo alemão

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 13/07/2019)

À quarta é de vez? A administração do Deutsche Bank (DB) promete o sucesso do plano de reestruturação, com 18 mil despedimentos e a redução da unidade de investimentos, passando a concentrar-se no retalho. As razões da emergência são os €2,8 mil milhões de prejuízo no último trimestre, com o valor das ações no nível mais baixo em 149 anos. Mas o icebergue é mais fundo, não bastou uma recapitalização recente de €30 mil milhões e um primeiro ‘banco mau’. O medo está, por isso, a instalar-se nos circuitos financeiros. O FMI não usa meias-palavras, considera o DB como o maior dos bancos que é um risco sistémico.

AS BOAS NOTÍCIAS SÃO MÁS

O Governo alemão trata o caso como um perigo soberano, mas é duvidoso que tenha os meios para salvar o banco se o pânico se instalar. Falhou tudo o que tentou, como conduzir o banco a uma fusão com um concorrente, o Commerzbank. Entretanto, dois grandes bancos, a suíça UBS e o holandês ING, indicaram que poderiam propor uma fusão, que na verdade seria comprar os restos do DB depois de desfeito — a questão é que alguém tem de pagar a conta.

A dimensão do problema não é sequer fácil de medir. O DB tem 24 milhões de clientes, um banco postal e o maior gestor de ativos da Alemanha. Teve a ambição de ser o poder alemão na globalização, salvou-se sempre e quem se lembra do resgate da Grécia sabe do que se trata. Só que tem uma dívida tóxica colossal. Por causa disso, quer criar um novo ‘banco mau’ com 74 mil milhões de euros em ativos, mais do que se supunha há poucas semanas. O caso é que a exposição real a ativos de risco será pelo menos de €288 mil milhões (o valor nacional dos seus derivados é 12 vezes maior, o triplo do PIB europeu, mas isso diz pouco sobre o valor real).

E AS MÁS SÃO PÉSSIMAS

É importante perceber como é que o banco chegou a estes valores astronómicos. Talvez o mecanismo mais importante tenha sido especializar-se em investimento especulativo com uma avalancha de liquidez em dólares, que ainda é a moeda de referência para dois terços das trocas mundiais, usando para isso vários instrumentos cada vez mais arriscados. Um deles são os produtos derivados, como os swaps cambiais: o DB assina com um outro banco um contrato para lhe assegurar o câmbio de euros por dólares a um preço fixo a longo prazo. E este banco empresta em dólares, que não tem nos seus cofres, sabendo que os pode ir buscar ao DB sempre que precisar, usando este contrato. A pirâmide vai crescendo entretanto, muitos agentes financeiros e bancos usam o mesmo procedimento e, assim, a expansão financeira e a liquidez das últimas décadas apoiou-se nesta ficção. O DB quis ser o maior banco europeu para competir com os norte-americanos jogando em câmbios e montanhas de dívida.

O banco tornou-se deste modo o epicentro de tal negócio. E chegou desta forma aos €288 mil milhões. Por isso mesmo, o banco tem tentado na última década limpar esta conta, mas não o vai conseguir. Ao colocar no ‘banco mau’ uma parte do risco, quer vender esses contratos a preço de saldo, mas o truque de prestidigitação não evita ter que registar nas suas contas o prejuízo, sabendo ainda que o Governo, mesmo que o quisesse, não pode cobrir a parada, pois o buraco pode chegar a trinta anos do gigantesco superavit atual da Alemanha. É grande demais e é por isso que muita gente se lembra do Lehman Brothers. Talvez este abismo seja maior.


O caso Bonifácio

Depois de uma semana de celeuma sobre o artigo de Fátima Bonifácio que postula que “os ciganos são inassimiláveis” e “os africanos são abertamente racistas”, percebe-se que o caso em si é quase banal, a não ser pela curiosidade de Ventura ser ali enunciado em modo mais troglodita. Daniel Oliveira, Marta Mucznik ou Francisca Van Dunem, entre outros, arrumaram o assunto com elegância.

A fantasiosa reconstrução de uma história mágica (“as mulheres partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”) ou o simplismo discriminatório (“isto não se aplica a africanos nem a ciganos”, pois não “descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”) são só a triste repetição de teses racistas que marcaram a meia-noite do século XX.

Mas, como Bonifácio faz parte de uma rede de gente fina que exibe a sua deriva extremista como se fosse o superior enunciado do senso comum, a tribo, mesmo que meio envergonhada, levantou-se em sua defesa, alegando, à falta de melhor, que o direito de opinião estava em risco se o racismo não fosse tolerado. Ela própria calou-se. Falaram por ela Helena Matos (“Não interessa se concordo ou discordo (...), o que interessa, o que é grave [é que] a ditadura das causas triunfou”) e Rui Ramos, que despejou os insultos em que é tão prolixo (“repugnou-me a canalhice das calúnias e das ameaças (...) e a inspiração de um dos mais asquerosos projetos políticos do nosso tempo (...) e porque a má-fé e a estupidez dominam este debate”). Como a pessoa mais inocente compreende, se tudo é tão superlativo é porque o navio já naufragou. Ora, a senhora professora há décadas que passeia a prosápia como se fosse um modo de vida e escreve tudo o que lhe apetece, sem qualquer restrição ao seu direito de opinião.

Resumindo, o caso Bonifácio só tem um motivo de curiosidade. Revela como o nosso tempo repete a tragédia dos anos 30, com a rendição de liberais ao totalitarismo, agora fascinados por Trump e Bolsonaro ou Salvini e Orbán. A “Cristandade” como referencial político, a raça como valor civilizacional, a superioridade branca como moral... já vimos isto tudo. É esta banalidade que é perigosa. Acrescente-se um Protocolo dos Sábios do Sião e teremos o que precisamos para um frémito de orgulho guerreiro que desce dos salões até aos arruaceiros da nova direita.


Casos triviais de pilhagem de dados

Episódio um. A carta do Santander aos clientes começa assim: “Os bancos são atualmente obrigados a recolher um conjunto de informações muito vasto sobre os seus clientes, respeitantes à sua identificação e conhecimentos (disse mesmo “conhecimentos”?), com a finalidade de permitir a adequação dos produtos e serviços prestados, no respeito da legislação aplicável e de procedimentos internos definidos para o efeito”. Aqui tem um monumento de falsidade. A legislação é exigente sobre a informação que os bancos devem ter sobre os clientes, mas não para “permitir a adequação dos produtos e serviços prestados”. Trata-se de uma invocação de autoridade para assustar o cliente.

Prossegue a carta: atualize o seu “comprovativo de morada” e, de seguida, o “comprovativo da entidade patronal/profissão”, o que já é excessivo (uma carta da entidade patronal é condição para ter uma conta bancária?). Mas chega-se então ao essencial, o cliente é intimado a “entregar” uma “declaração de património” e uma “comprovação de património”. Ora, esta carta é enviada a clientes de conta corrente e sem qualquer crédito em curso. Aliás, é assinada por Carla Santos, da Direção de Coordenação de Marketing. Ou seja, quer estabelecer uma base de dados para o marketing do banco. Mas não ficamos por aqui. Se o cliente não enviar imediatamente a dita comprovação de património, haverá “consequências especialmente gravosas, incluindo o encerramento de contas bancárias”.

Dois meses depois, nova carta. Se o cliente não enviou os tais dados, haverá “o encerramento de contas bancárias”. Portanto, a direção de marketing do banco, querendo “adequar” a sua oferta financeira, decide assustar os clientes para obter informação sobre o seu património e “conhecimentos”. O procedimento é abusivo, a ameaça é ilegal, a base de dados é clandestina. É tudo errado.

Episódio dois. Vai renovar o cartão do passe social? No impresso, é “obrigatório” declarar o e-mail e o telemóvel. Mesmo que depois assinale os campos de rejeição de publicidade da empresa e outros spams, lá está, para ter o passe social é “obrigatório” dar à empresa aqueles dados. Mais uma vez, é uma base de dados ilegal.

Dir-me-ão que são histórias triviais do nosso tempo. São mesmo. E há uma sabedoria ancestral que diz que, se quer conhecer o vilão, basta pôr-lhe um bastão na mão. Estas empresas ameaçam com o seu bastão e pensam que ninguém repara. Chama-se pilhagem de dados.

sábado, 13 de julho de 2019

O Tribunal Europeu e o discurso de ódio

«O discurso de ódio e de discriminação racial não são protegidos pela liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Convenção). A recusa de protecção desse tipo de discurso, na prática, pode resultar de o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) considerar que o mesmo constitui um abuso de direito em relação à liberdade de expressão, o que é proibido pela Convenção que determina que nenhuma das suas disposições se pode interpretar no sentido de haver um direito a praticar actos com vista à destruição dos direitos ou liberdades consagrados na própria Convenção.

Mas o TEDH também pode recusar, em concreto, a protecção da liberdade de expressão ao discurso de ódio ou de discriminação racial, não porque entende que coloca em causa os direitos e valores fundamentais sobre os quais assenta a CEDH mas porque entende que se justificam restrições à liberdade de expressão em nome da defesa da segurança pública ou da ordem pública e a prevenção criminal, bem como a protecção da honra ou dos direitos de outrem.

Em 27 de Junho de 2017, por exemplo, o TEDH apreciou a queixa, por violação da liberdade de expressão, de Belkacem, um cidadão belga muçulmano que tinha sido condenado na pena, suspensa, de 18 meses de prisão e numa multa de 550 euros por incitamento à discriminação, à violência e ao ódio. No Youtube, Belkacem pedia aos seus apaniguados que dominassem as pessoas não-muçulmanas, lhes ensinassem uma lição e lutassem contra elas. O TEDH considerou que as declarações de Belkacem tinham um conteúdo que promovia o ódio, a discriminação e a violência contra todos os que não fossem muçulmanos. Para o TEDH, um ataque tão generalizado e veemente contradizia os valores de tolerância, paz social e não-discriminação que fundamentam a Convenção pelo que considerou que Belkacem pretendia usar o seu direito à liberdade de expressão para fins claramente contrários ao espírito da Convenção, concluindo que, de tendo em conta a proibição do abuso de direito, Belkacem não beneficiava da protecção da liberdade de expressão.

Noutro caso, em 4 de Dezembro de 2003, o TEDH debruçou-se sobre a condenação do cidadão turco Gunduz a uma pena de dois anos de prisão e ao pagamento de uma multa no valor de 600 000 liras turcas por, num debate televisivo, ter expressado as suas ideias radicais, nomeadamente quanto à democracia e à necessidade de imposição da lei sharia, o que fora considerado pelos tribunais turcos como discurso de ódio. O TEDH, pelo seu lado, considerou que Gunduz participara activamente de uma animada discussão pública representando as ideias extremistas de sua seita e que este debate pluralista procurara apresentar a seita e suas ideias não convencionais, nomeadamente a incompatibilidade de sua concepção do Islão com os valores democráticos, um tema, sem dúvida, de interesse geral. Para o TEDH, as afirmações de Gunduz não incitavam à violência ou ao ódio com base na intolerância religiosa. O mero fato de Gunduz defender a sharia, sem exigir o seu estabelecimento através da violência, não poderia ser considerado um discurso de ódio. E a Turquia foi condenada por ter violado a liberdade de expressão de Gunduz.

Já no caso Féret contra a Bélgica, decidido em 16 de Julho de 2009, o TEDH considerou que a Bélgica não violara a liberdade de expressão consagrada na Convenção ao condenar Féret, dirigente do Partido Nacional, a uma pena de prestação de serviços comunitários de 250 horas e de ineligibilidade para cargos públicos por 10 anos, por incitamento à discriminação racial.

Féret defendia publicamente, entre outras coisas, o repatriamento dos imigrantes e pretendia “opor-se à islamização da Bélgica”, “parar a política de pseudo-integração”, “reservar para os belgas e europeus, a prioridade na assistência social “,” deixar de engordar as associações socioculturais de assistência à integração de imigrantes “ e “reservar o direito de asilo (...) a pessoas de origem europeia realmente perseguidas por razões políticas”.

Para o TEDH, as afirmações de Féret incitavam claramente à descriminação e ódio racial pelo que sua condenação pelos tribunais belgas estava justificada pela necessidade de proteger a ordem pública e os direitos de terceiros numa sociedade democrática.»

Francisco Teixeira da Mota

Nada é preto ou branco

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 13/07/2019)

Miguel Sousa Tavares

Adoramos as oportunidades para nos indignarmos em nome das boas causas. É de borla e fornece-nos uma excelente ocasião para nos exibirmos do lado justo, civilizado, politicamente correcto. Essencial é que haja alguém do lado contrário, alguém que desempenhe o papel do inimigo a exterminar com a nossa barragem de fogo enraivecido e bem intencionado, sem o que nada faria sentido. A historiadora Maria de Fátima Bonifácio pôs-se a jeito para a função, enfiando militantemente a carapuça de racista convicta — o que proporcionou a um exército de sempre atentos cidadãos-exemplares o pretexto para repudiarem, enojados, as ideias da professora Fátima Bonifácio.

A primeira coisa que me ocorre dizer é que é fácil e inodor ser-se anti-racista no Facebook ou no Twitter, proclamá-lo entre amigos ou escrevê-lo em abaixo-assinados. Já conheci várias pessoas que o fazem sem esforço algum, mas que depois só com indisfarçável esforço se comportam na prática, no dia-a-dia e nos contactos humanos como não-racistas. E isso vale para brancos como vale também para negros ou asiáticos ou ciganos: sim, Fátima Bonifácio tem razão quando escreve que também há racistas não brancos — entre si ou para com os brancos — embora não haja comparação, nem física nem intelectual, com o racismo branco para com os outros. O texto dela é, aliás, eloquentemente exemplificativo disto: é um tratado intelectual de justificação do racismo branco e, o que é ainda pior, em nome dos “valores da Cristandade” e da ”civilização cristã”. Esses mesmos valores e essa mesma civilização que invocámos há quinhentos anos para justificar a escravatura. É absolutamente impensável que alguém se possa lembrar de recuperar tal justificação para se desculpar daquilo que não passa de um defeito de carácter.

O racismo é um defeito de carácter e não há forma de o desculpar ou de o tolerar numa sociedade democrática e num Estado de direito. A lei não pode mudar o carácter das pessoas, mas pode e deve estabelecer as linhas vermelhas daquilo que é e não é tolerável na vida em sociedade. E esta é uma linha vermelha.

Tudo o resto das questões levantadas pelo texto de Fátima Bonifácio, ou a propósito dele, já não é tão a preto e branco. A começar pela questão das quotas a favor das minorias étnicas no acesso às universidades, o ponto de partida do texto dela. A questão das quotas — a favor de sexos, de etnias, de religiões — suscita-me muitas dúvidas sobre a sua justiça e ainda mais sobre os seus resultados práticos. Quanto à justiça, porque na sua base está sempre alguém que ascende, não por mérito, mas por decisão política e sobrepondo-se a alguém de mérito superior; quanto aos resultados práticos, porque nada me garante, por exemplo, que uma mulher seja melhor na política que um homem — não é por ser mulher que Merkel se revelou dos melhores, ou dos menos maus, governantes europeus entre a desgraçada geração actual de governantes homens, assim como não é por ser mulher que Theresa May se revelou um desastre como primeira-ministra britânica. Porém a tese de Fátima Bonifácio assenta num contorcionismo extraordinário: ela é a favor das quotas para mulheres que provaram bem; mas não para negros ou ciganos, porque, não fazendo parte da Cristandade, serão seres inferiores. Isto, vindo de uma historiadora é arrepiante. E não é preciso ir aos exemplos extremos da História para medirmos o alcance da perigosidade de qualquer tese assente na superioridade de uma raça, uma etnia, uma religião ou uma civilização sobre as outras: todos os extermínios de povos assentaram nisso.

Contudo, não é menos verdade que nem todos os povos coincidem no grau de desenvolvimento ou naquilo a que chamamos civilização. E nem todos, aliás legitimamente, estão interessados em evoluir para aquilo a que chamamos padrões civilizados. O maior problema de África é o incivismo, a ganância, a corrupção dos seus dirigentes: não por serem negros, mas por ausência de padrões de organização democrática das sociedades. Os ciganos, não vale a pena seremos hipócritas, têm regras de conduta entre si que nós não toleramos nem no Código Civil nem no Código Penal, recusam-se a tratar as mulheres como seres iguais em direitos aos homens, recusam integrar-se no que são os padrões de vida comum em sociedade, mas não abdicam de reivindicar todos e cada um dos direitos e benefícios que o Estado lhes dá. Não podendo ser integrados à força, são um problema, jurídico e social. Nada disto pode ser negado, como fazem os indignados prontos a assinar. Mas também não pode ser generalizado, sob pena de se entrar no campo da discriminação étnica e da defesa assumida do racismo, como faz Fátima Bonifácio.

Estas foram as questões essenciais levantadas pelo seu texto. A mim, em nada me incomodaram elas e ele. Pelo contrário, quanto mais opostas às minhas são as ideias de alguém melhor é a oportunidade para eu testar as minhas e os respectivos fundamentos. Vejo a publicação do texto de Fátima Bonifácio no “Público” como um exercício banal do confronto de ideias num jornal aberto de um país democrático. Uma colaboradora externa publica um texto que toda a gente sabe que não reflecte a linha editorial do jornal e, se calhar até, ofende o seu Estatuto Editorial, mas, qual seria a alternativa — censurá-la? A avaliar pela avalanche de reacções havidas, inclusive do próprio director a declarar-se arrependido da publicação, parece que sim, parece que era isso que tantas consciências ofendidas defendiam. Confesso que isso me choca tanto ou mais que o próprio texto da autora. Queiram ou não — até como se viu pelas reacções contrárias — as ideias de Fátima Bonifácio encontram eco naquilo que muitos outros portugueses pensam, se calhar sem o dizerem abertamente. E, como eu vejo as coisas, em democracia essa gente também tem direito a ter voz e é até melhor que a tenha assim, publicamente, do que andar a votar à socapa no Salazar como o maior português de sempre. Assim, podem expor as suas ideias e serem confrontados e contraditados, de outro modo seriam apenas silenciados, como Salazar fazia com os que dele discordavam.

Na verdade, ver gente a pedir um processo-crime a Fátima Bonifácio (por delito de opinião!), ver outros a pedir o seu silenciamento e afastamento do jornal, ver uma lista de “notáveis” a pedir a sua cabeça (entre os quais, pelo menos dois que julgo recordar terem pedido também o fuzilamento dos implicados no 11 de Março de 1975), traz-me à memória tiques salazarentos de persistente duração. Lendo o texto de Fátima Bonifácio e as desbragadas reacções a ele da esquerda-pronta-a-saltar, só me ocorre uma pergunta: quantos anos serão precisos para apagar de vez os vícios de 48 anos de ditadura?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia