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sábado, 20 de julho de 2019

Quem convidou Donald Trump para minha casa?

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 20/07/2019)

Miguel Sousa Tavares

1 Portugal é o meu país e o meu país é a minha casa. Não tenho outra, e, em minha casa, tenho alguns direitos, não apenas o dever de pagar 48,5% de IRS sobre o que ganho com o meu trabalho e ficar sentado a ver como gastam o meu dinheiro. Entre outros, tenho o direito de me sentir representado — ou, pelo menos, de não me sentir envergonhado — com a política externa conduzida pelos responsáveis políticos do meu país, porque ela me representa também. Eu sei que, representando-me a mim e a mais outros dez milhões de portugueses, não posso ter a pretensão de exigir uma política externa que em tudo coincida com as minhas ideias e os meus valores. Mas posso exigir que coincida com as ideias e os valores consensuais a uma clara maioria de portugueses, para que não nos sintamos envergonhados por ser portugueses lá fora, como nos sentíamos no tempo do Estado Novo. Por outras palavras e chegando onde quero chegar: a política externa, a que a maior parte dos portugueses não liga coisa alguma, não é, todavia, uma questão menor — pelo menos, para aqueles que lhe dão a devida importância. Não está no livre arbítrio dos responsáveis por ela — o MNE, o PM e o PR — ocuparem-se do assunto sem terem de prestar satisfações algumas, como se estivessem num jogo de salão, entre reflexos de espelhos, brilhos de cristal de banquetes de Estado, casacas e discursos ocos, que só a eles interessa e respeita.

Pela primeira vez desde 1912, Donald J. Trump acaba de ver aprovado um voto de censura à sua Presidência pela Câmara dos Representantes, em virtude do seu discurso convidando a regressar “às suas terras de origem” as congressistas não brancas. É verdade que, além do voto unânime dos democratas, em maioria na Câmara dos Representantes, o voto teve também e apenas o apoio de quatro republicanos e um independente — o que permitiu a Trump saudar a solidariedade do seu partido para com o seu discurso sobre a supremacia branca na América. Mas fica o registo: nunca um Presidente da “terra dos homens livres” se tinha atrevido a descer tão baixo, ao nível dos tempos do segregacionismo e da escravatura. Porém, nada disto é novo e imprevisível: desde que o homem foi eleito que se sabe que menos de metade dos votantes americanos escolheram para o representar alguém que simboliza o pior que os Estados Unidos da América têm para mostrar ao mundo e para servir essa grande nação global. Eleito com o apoio de Putin, Trump tem sido ostensivo em cortejar os inimigos, os ditadores e os facínoras e hostilizar e humilhar os aliados e amigos — o recente episódio em que forçou a demissão do embaixador britânico em Washington, culpado de ter dito a verdade sobre si, como era seu dever, foi apenas uma demonstração de como até o mais fiel aliado pode ser tratado como um vassalo pela sua arrogância sem freio. Rasgou tratados com a assinatura dos seus antecessores, vinculando os Estados Unidos, com a mesma desfaçatez e sem-vergonha com que rasgava as notas de crédito dos seus parceiros do negócio imobiliário, tornando os Estados Unidos um país não confiável. Aliás, a sua diplomacia, fruto de uma mistura de chocante incultura, ordinarice boçal e arrogância de pato-bravo, obedece ao seu único mandamento, com o qual ganhou as eleições e voltará a ganhá-las: “America first.” First and only, porque ele nunca tem nada para dar em troca e em tudo age como dono do mundo e dos arredores. Com Trump caíram por terra todas as benévolas teorias ensaiadas por uma nova direita que pretendia justificar a sua eleição com a incapacidade da esquerda em compreender o povo e os novos tempos. Tudo é, infelizmente, mais simples: Trump representa apenas a imbecilidade do povo e os tais novos tempos assentam na ignorância e na manipulação e são sinistros. Trump enterrou qualquer respeitabilidade intelectual ou moral da direita que o pretende justificar. O homem é injustificável, infrequentável, inadmissível. É uma ameaça para o comércio mundial, para o clima, para o planeta, para a paz, para a convivência entre povos, para a civilização que conhecemos.

Decerto que gente decente não convidaria um tipo destes para jantar em sua casa, seja ele Presidente dos Estados Unidos ou não. Mas Marcelo convidou-o para jantar — em nossa casa. Em nosso nome e sem nos dizer nada nem justificar porquê. Convidou-o apenas porque gosta de ser visto e fotografado ao lado dos grandes do mundo. Só por isso, e isso é muito pouco para a ofensa que representa convidar Donald Trump para uma visita de Estado a Portugal. Eu sinto-me ofendido, como português, com este convite.

Sinto-me ofendido que o nosso Presidente, de boina na mão, aproveite as cerimónias do Armistício de 14-18, em França, para entredentes sussurrar ao ouvido de Trump se ele não quereria visitar um verdadeiro aliado e amigo. Sinto-me ofendido que o outro esteja há nove meses a ponderar se se dá ou não ao trabalho de vir cá dizer meia dúzia de vulgaridades do género “it’s terrific to be here!” e depois ir para o Twitter confundir o Marcelo com o Matteo (Salvini) ou Portugal com Porto Rico. E sinto-me ofendido em pensar que um só euro dos meus impostos vai ser gasto em servir um banquete de Estado a este feirante, enquanto o nosso Presidente lhe tenta vender Sines entre os brindes, sugerindo que, se não vendermos a eles, vendemos aos chineses. Não vale a pena invocar o interesse nacional em manter boas relações com este personagem porque, como escreveu o embaixador inglês, Trump não é fiável nem previsível, apenas caprichoso e intempestivo: o que prometer hoje, esquecerá amanhã, o que assinar aqui, rasgará lá. Se tudo correr bem, já será uma sorte se não vier cá ofender-nos com a sua ignorância e a sua falta de educação.

Pela parte que me toca, Donald Trump não é bem-vindo.

2 A tese de que na escolha do novo presidente da Comissão Europeia, o Conselho Europeu (a quem cabe a escolha, depois sendo ratificada ou não pelo Parlamento) traiu o princípio dos Spitzenkandidaten teria alguma razão de ser se tivesse havido acordo sobre eles no Conselho e, sobretudo, se os eleitores europeus que votaram em 19 de maio soubessem quem eram e o que representavam os Spitzenkandidaten. Mas porventura os nossos votantes no PS sabiam que estavam a votar também no holandês Frans Timmermans ou os do CDS no alemão Manfred Weber? E saberiam os do PCP quem era o seu Spitzenkandidat? Assim, falhado esse louvável e teórico princípio (federalista, por sinal), o plano B, congeminado por Macron, era o mais lógico e democrático: presidente do grupo centro-direita (o mais representado no Parlamento) e dois vice-presidentes dos dois grupos maioritários seguintes, sociais-democratas e liberais. Por sinal, dois excelentes candidatos: Timmermans e Margrethe Vestager, que teve um magnífico desempenho na pasta da Concorrência. Quanto à Presidente, ser mulher e mãe de sete filhos é um sinal, mas não o mais importante: o importante é ser alguém com um currículo brilhante na vida civil, com qualificações evidentes, europeísta de convicção e cultura e com um programa mobilizador. Achei um brilhante momento de ironia ouvir o nosso eurodeputado do PCP, João Ferreira, acusar os socialistas de se terem “aliado à direita” para elegerem a candidata desta área. É que justamente o PCP, como o BE e o deputado do PAN, votaram ao lado da mais sinistra direita e do patético Nigel Farrage, do ‘Brexit’, contra a solução encontrada. Votaram ao lado dos que queriam ver a UE paralisada, de acordo com o seu antigo e imutável programa político em Bruxelas: ser o cavalo de Troia contra a ideia de uma Europa unida para fazer frente aos grandes blocos, Rússia, EUA, China, que tanto a querem ver domesticada e irrelevante. Com a eleição de Ursula van der Leyen, esse programa, felizmente, falhou.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Quando a política pensa com o penteado

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/07/2019)

Como faltam as ideias, vota-se no penteado...

Em 1995, a popular jornalista sueca Stina Dabrowski, que já entrevistou Nelson Mandela, Yasser Arafat, Hillary Clinton ou Madonna, fez uma entrevista de meia hora com Margaret Thatcher. No fim, a entrevistadora fez uma proposta à já então ex-primeira-ministra. Queria que ela desse um saltinho no estúdio. Sim, isso mesmo, um saltinho no estúdio. “Um saltinho? Nunca sonharia em fazer tal coisa. Porque o haveria de fazer? Eu dei grandes saltos para o futuro, não dou saltinhos em estúdios.” Mas Stina não desistiu. Queria que a senhora mostrasse o seu lado humano. Thatcher foi clara: “Isso apenas mostra que queremos ser vistos como pessoas normais e ser populares e eu não preciso disso. Não quero perder o respeito das pessoas que me respeitam há tantos anos fazendo uma coisa dessas”.

Insuspeito de gostar de Thatcher gostava deste seu lado: a secura distante que aqui só nos foi dada por Álvaro Cunhal. Os políticos até podem fazer algumas coisas descontraídas. As pessoas dançam e cantam em público, dizem piadas, não estão sempre a discursar. Não têm de ser uns cepos sem emoções. Podem mostrar outras partes de si, desde que se sintam confortáveis com isso. Mas não devem permitir que as coisas cheguem ao ponto em que se transformam em tontinhos. Parece-me evidente que Assunção Cristas está a ultrapassar essas fronteiras. Ao publicar quatro fotos com quatro penteados no Instagram, pedindo aos seus seguidores que escolham o que preferem, transforma-se numa figura de entretenimento. E ao fazê-lo diminui-se como política.

Ao publicar quatro fotos com quatro penteados no Instagram, pedindo aos seus seguidores que escolham o que preferem, Cristas transforma-se numa figura de entretenimento. As pessoas querem que quem está no poder seja como seu vizinho, amigo, primo. Mas esta proximidade é evidentemente falsa

Não tenho dúvidas de que as pessoas querem que quem está no poder seja como o seu vizinho, o seu amigo, o seu primo. E os políticos, que precisam de votos, e a comunicação social, que precisa de audiência, cedem. Até eu, sem ser político, posso já ter cedido. Mas isto está a destruir a democracia. Porque a dessacraliza, retirando-lhe autoridade sem por isso a aproximar das pessoas. Porque esta proximidade é evidentemente falsa. Cristas pergunta às pessoas que penteado deve usar, não faz grande questão em envolvê-las em orçamentos participativos. A proximidade dos cidadãos ao poder faz-se através de uma sociedade civil ativa e de um Estado aberto e com instrumentos de participação. Não se faz em conversa de cabeleireiro. Isto só esvazia a política de conteúdo. Fica a feira.

Mas há a segunda parte deste episódio: nunca os estrategas da comunicação sujeitariam Nuno Melo a uma coisa destas. Nunca fariam das escolhas sobre o seu penteado um tema de relação com os seus eleitores. Da mesma forma que nunca se pergunta a um homem como compatibiliza o papel de pai e de político.

Parece que as mulheres, para estarem na política, têm de carregar para elas o lado privado que as velhas sociedades lhes reservavam. Não era isto, se bem me lembro, que Cristas prometia à política portuguesa. Os políticos que deixam que sejam os marketeers a mandar acabam por perder o respeito de quem realmente os respeitava.

O retrato perfeito da nova extrema-direita

por João Mendes

Negam a ciência, desprezam a democracia, vivem a religião de forma fundamentalista, cultivam vários ódios de estimação e querem perseguir, espancar e, se possível, matar quem não concorda com eles. De Trump a Bolsonaro, passando pelos novos tiranetes europeus. Felizmente, aqui em Portugal, (ainda) não passam de uma coluna de opinião num projecto de extrema-direita direita disfarçado de jornal.

Sondagem revela mais distância entre PS e PSD e nova queda para CDS

19.07.2019 às 8h44

Presidente Alemão, Frank-Walter Steinmeir, a votar para as Eleições Europeias 2019.

FABRIZIO BENSCH

Partido Socialista e Partido Social Democrata estão agora separados por 13,9 pontos percentuais, de acordo com uma sondagem da Aximage para o "Jornal de Negócios" e "Correio da Manhã"

Expresso

EXPRESSO

Uma nova sondagem para as legislativas revela que Partido Socialista continua a distanciar-se nas intenções de voto, com 37,5%, enquanto o PSD cresce ligeiramente para 23,6%. Os novos dados, publicados esta manhã no “Jornal de Negócios”, foram trabalhados pela Aximage para aquele jornal e "Correio da Manhã".

O PS volta assim a engordar a distância para o principal partido da oposição, para 13,9 pontos percentuais.

Aquela sondagem dá conta ainda de que o Bloco de Esquerda se vai confirmando como o terceiro partido mais importante no Parlamento, crescendo de 9% para 9,4% nas intenções de voto. PCP e Verdes, sob a coligação CDU, mantêm-se estacionados nos 6,8%.

O CDS continua a sofrer perdas na ressaca das Europeias, caindo agora para os 4,9%. O PAN segue com 4% nas intenções de voto.

As eleições legislativas estão agendadas para 6 de outubro.

Descolonizar o saber e o poder

Posted: 18 Jul 2019 01:12 PM PDT

«Os conflitos sociais têm ritmos e intensidades que variam consoante as conjunturas. Muitas vezes acirram-se para atingir objectivos que permanecem ocultos ou implícitos nos debates que suscitam. Num período pré-eleitoral em que as opções políticas sejam de espectro limitado, os conflitos estruturais são o modo de dramatizar o indramatizável.

Os conflitos estruturais do nosso tempo decorrem da articulação desigual e combinada dos três modos principais de desigualdade estrutural nas sociedades modernas. São eles, capitalismo, colonialismo e patriarcado, ou, mais precisamente, hetero-patriarcado. Esta caracterização surpreenderá aqueles que pensam que o colonialismo é coisa de passado, tendo terminado com os processos de independência. Realmente, o que terminou foi uma forma específica de colonialismo – o colonialismo histórico com ocupação territorial estrangeira. Mas o colonialismo continuou até aos nossos dias sob muitas outras formas, entre elas, o neocolonialismo, as guerras imperiais, o racismo, a xenofobia, a islamofobia, etc.

Todas estas formas têm em comum implicarem a degradação humana de quem é vítima da dominação colonial. A diferença principal entre os três modos de dominação é que, enquanto o capitalismo pressupõe a igualdade abstracta de todos os seres humanos, o colonialismo e o patriarcado pressupõem que as vítimas deles são seres sem plena dignidade humana, seres sub-humanos. Estes três modos de dominação têm actuado sempre de modo articulado ao longo dos últimos cinco séculos e as variações são tão significativas quanto a permanência subjacente. A razão fundante da articulação é que o trabalho livre entre seres humanos iguais, pressuposto pelo capitalismo, não pode garantir a sobrevivência deste sem a existência paralela de trabalho análogo ao trabalho escravo, trabalho socialmente desvalorizado e mesmo não pago. Para serem socialmente aceitáveis, estes tipos de trabalho têm de ser socialmente vistos como sendo produzidos por seres humanos desqualificados. Essa desqualificação é fornecida pelo colonialismo e patriarcado. Esta articulação faz com que as pessoas que acham desejável a desigualdade social do capitalismo tendam a desejar também a continuação do colonialismo e do patriarcado, e sejam, por isso, racistas e sexistas, mesmo que jurem não sê-lo. Esta é a verdadeira natureza dos grupos políticos de direita e de extrema-direita. Se, numa dada conjuntura, as preferências racistas e sexistas vêm ao de cima é quase sempre para expressarem a oposição ao governo do dia, sobretudo quando este é menos pró-capitalista que o desejado por tais grupos.

O drama do nosso tempo é que, enquanto os três modos de dominação moderna actuam articuladamente, a resistência contra eles é fragmentada. Muitos movimentos anticapitalistas têm sido muitas vezes racistas e sexistas, movimentos anti-racistas têm sido frequentemente pró-capitalistas e sexistas e movimentos feministas têm sido muitas vezes pró-capitalistas e racistas. Enquanto a dominação agir articuladamente e a resistência a ela agir fragmentadamente, dificilmente deixaremos de viver em sociedades capitalistas, colonialistas e homofóbicas-patriarcais. Talvez por isso, e como se tem visto ultimamente, aos jovens de muitos países seja hoje mais fácil imaginar o fim do mundo (pelo agravamento da crise ambiental) do que o fim do capitalismo. A assimetria entre a dominação articulada e a resistência fragmentada é a razão última da tendência das forças de esquerda para se dividirem em guetos sectários e das forças de direita para se promiscuírem em amálgamas ideológicas na mesma cama do poder.

A continuidade da dominação segrega um senso comum capitalista, racista e sexista que serve as forças de direita, até porque é reproduzido incessantemente por grande parte da opinião publicada e pelas redes sociais. Porque age na corrente, a direita pode dar-se ao luxo de ser indolente e transmitir a ideia de “estar ao corrente” e, quando tal não funciona, acciona a sua asa de extrema-direita (tão presa ao seu tronco quanto a asa de direita moderada) para dramatizar o discurso e provocar novas divisões nas esquerdas, sobretudo se estas ocupam o poder de governo e estamos em período pré-eleitoral e a ausência de alternativas credíveis salta aos olhos. Pelo contrário, as forças de esquerda estão sempre à beira do abismo da fragmentação por terem sido treinadas no mundo eurocêntrico para desconhecer ou descartar as articulações entre os três modos de dominação. As dificuldades são ainda maiores por terem de agir contra a corrente do senso comum reaccionário.

Identifico duas tarefas urgentes para superar tais dificuldades. A primeira é de curto prazo e tem um nome: pragmatismo. Se a agressividade do pensamento reaccionário, explicitamente racista e encobertamente hiper-capitalista e patriarcal, é a que se observa e ocorre num país cujos cidadãos ainda há 50 anos eram vítimas de racismo por toda a Europa dita desenvolvida e antes disso tinham sido ostracizados como brancos escuros – ou portygyes nas Caraíbas, Hawaii e EUA –, se tudo isto ocorre num país cujo poder de governo é ocupado por forças de esquerda, é fácil imaginar o que será quando voltarmos (se voltarmos) a ser governados pela direita.

O entendimento entre as forças de esquerda tem contra si forças imensas, nacionais e internacionais: capitalismo financeiro global, privatarias público-privadas, Comissão Europeia, embaixadas norte-americana e de muitos países europeus, agências da sociedade civil supostamente promotoras da democracia, Igrejas conservadoras, a razão indolente da direita infiltrada há muito no PS português contra a militância corajosa do último Mário Soares, a razão indolente do sectarismo de pequenos grupos de esquerda radical que têm sempre os dois pés no mesmo sítio para acreditarem que são firmes em vez de estáticos.

Mas o que está em jogo é muito e o pragmatismo impõe-se. Quando a direita começa a defender transportes públicos e saúde pública, a esquerda no governo deve lembrar-se do que está a esquecer. A resposta à extrema-direita racista tem de ser tanto política como jurídica e judicial. Defendo há muito que as lutas jurídicas contra o senso comum reaccionário só devem ocorrer depois de tais lutas terem adquirido forte densidade política. É, pois, imprudente determinar em abstracto a validade da via jurídico-judicial ou da via política.

A segunda tarefa é de longo prazo e consiste em descolonizar o saber científico e popular e o poder, tanto social como cultural e político. Esta tarefa é particularmente difícil em Portugal por duas razões. Em primeiro lugar, a última fase da descolonização do colonialismo português ocorreu há muito pouco tempo (1961-1975). As feridas coloniais estão ainda tão abertas e fundas que, tal como as crateras produzidas pela mineração a céu aberto, parecem parte integrante da paisagem. O longo ciclo colonial está inscrito na carne do país até ao mais íntimo tutano. Um país com tanta falsa esperança histórica sente-se agora dominado por tanto falso medo de ser menos europeu que a Europa desenvolvida que sempre recolonizou o colonialismo português para maior benefício dela. Por sua vez, os países que nasceram da luta anticolonial contra Portugal tiveram o privilégio de sofrer o menor ónus neocolonial. Todos sem excepção se afirmaram orgulhosamente socialistas e não apenas independentes. Foram, porém, rapidamente postos na ordem pelo capitalismo financeiro global. Sucederam-se lideranças que querem esquecer a violência e rapina colonialistas para melhor ocultarem a violência e a rapina que elas próprias vão exercendo contra as suas populações.

A segunda decorre do facto de os processos de independência terem ocorrido como uma dupla revolução: nas então colónias, a revolução da independência, e em Portugal, a revolução da democracia do 25 de Abril de 1974. Os mesmos militares, que sustentaram o regime colonial no seu último período, participaram na guerra dita de pacificação e certamente cometeram as atrocidades correspondentes, são também os heróis de que muito nos orgulhamos por terem aberto o caminho às independências sem peias neocoloniais e pela democracia que nos devolveram em Portugal. Passará ainda algum tempo para que as feridas se exponham, e assim possam ser eficazmente curadas.»

Boaventura Sousa Santos