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segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Como se fossem escravos

Posted: 18 Aug 2019 02:53 AM PDT

«As atenções viram-se para Matteo Salvini, ministro do Interior de Itália: o homem que recusa receber no porto de Lampedusa um barco com 134 migrantes a bordo. Ontem, obedecendo a uma ordem do primeiro-ministro, Giuseppe Conte, não escondendo a má vontade, Salvini autorizou o desembarque de 27 menores que viajavam sem companhia. Uma atitude de pura desumanidade, mais uma do governante de extrema-direita.

Parece cómodo, todavia, voltarmos as nossas atenções unicamente para o indesculpável Matteo Salvini. É hora de se reclamar algo mais dos responsáveis políticos europeus. Não basta, pontualmente, ir aceitando receber migrantes como deverá acontecer neste caso - Portugal, França, Alemanha, Luxemburgo, Roménia e Espanha já se disponibilizaram - e depois continuar, como se nada fosse, até à próxima emergência ou tragédia.

O "Open Arms", um navio humanitário há semanas ao largo de Lampedusa com 134 migrantes salvos de um naufrágio, faz lembrar um barco negreiro, do tempo em que as embarcações portuguesas e espanholas cruzavam os mares com mão de obra escrava. A situação é explosiva, relatam os voluntários, também eles retidos num navio sob um sol escaldante, com escassos meios de subsistência e praticamente nenhumas condições de higiene.

Não podemos continuar a ver nestas pessoas o outro, como os nossos antepassados olharam para os escravos, sem qualquer gesto de humanidade - como se eles não fossem seres humanos em tudo iguais a nós.

É tempo de a União Europeia definir uma política séria de imigração. Também é tempo de colocar um ponto final na hipocrisia cúmplice: alimenta, como sabemos, conflitos que conduzem ao êxodo destas pessoas em busca, não só de uma vida não digna, mas apenas melhor. E, sobretudo, à procura de um refúgio onde as armas não substituam as palavras.»

Paula Ferreira

Até ao longo dia da Grande Cólera

por estatuadesal

(José Preto, in Jornal Tornado, 18/08/2019)

Há um conflito neurótico, dir-se-ia, na vida política e jurisdicional portuguesa.

Neste conflito, opõem-se – até à exasperação – as exigências do Estado de Direito e de uma sensibilidade social crescentemente democrática, mesmo nos seus vectores conservadores, às pulsões de um funcionalismo de formação nacional-católica, compreendendo os professores disponíveis das Faculdades de Direito (à excepção clara de Jónatas Machado e Paulo Ferreira da Cunha, que evidentemente contam para muitas coisas, mas não para aquilo que deveriam contar).

O impacto social das praxes deste funcionalismo e da sua duríssima pedagogia é fácil de medir ao olhar os modos de tratamento ali reservados aos cidadãos comuns e a proporção de empregos que a administração garante entre a população activa.

O nacional-catolicismo (materializado no Estado de Petain, Franco e Salazar) naquilo que nos ocupa aqui, pode ser designado por fascismo católico sem inconvenientes, práticos ou teóricos, de significativa relevância. O fascismo dos católicos diverge dos fascistas pelo facto de recusar a pretendida primazia ao Estado como expoente da máxima consciência dos valores éticos da sua época, papel que reivindica para a sua (deles) Igreja. Os fascistas, em todo o caso, não têm “directores de consciência” e os da Colina Vaticana, sim. Recusa esta igreja (como qualquer outra) a perspectiva hegeliana do Estado e do Direito e os fascistas assumem-na. Esta igreja (caso único entre todas) afirma a sua chefia máxima, única, e reivindica para ela a soberania universal, enquanto os fascistas não aceitam poder que ao Estado se sobreponha na ordem externa, ou a ele se iguale na ordem interna. Isto chegará para esclarecer o significado da expressão que em toda a Europa é tão clara e aqui suscita tantas dúvidas.

O nacional catolicismo subiste mais facilmente que o fascismo nas mentalidades, assente numa prática religiosa intrusiva, tendencialmente psicotizante, a enformar as deseducações sentimentais, ao abrigo do ascendente (vezes de mais efectivo) dos seus ministros do culto.

Contando com a gestão (já política, muitas vezes) dos sentimentos de culpa que estes disseminam bem e vão governando, sobre a teia das pompas e dos  pretendidos segredos “de confissão”, numa moral que institui e dissemina as taras (em obcecação doentia pela vida sexual alheia), ao ponto de transformar em problema o simples e natural acto de dar banho a uma criança, ou de comer uma banana (estou infelizmente a falar a sério).

Esta educação católica (há apesar de tudo outras) é um lastro político deplorável. E é a referência do alto funcionalismo aqui disponível olhado em plano geral, todo ele asilar e incapaz de olhar sem sobressalto qualquer manifestação de inteligência, mesmo infantil. (Os textos normativos da função pública são frequentemente verdadeiras anedotas, eriçados de “dirigentes máximos” e parvoíces congéneres que, simplesmente, não podem existir). É de levar a sério a expressão aparentemente bem humorada na qual sempre designam a inteligência de alguém como “perigo”. Quem revelar a inteligência própria está em perigo, sim. Nesta terra, a inteligência não é sequer instrumento de sedução na relação entre sexos. Aqui, as mulheres seduzem-se fazendo-as rir. (É evidentemente melhor constituir família com quem não tenha nada a ver com isto).  O parvo enternece-as. Tem as utilidades e os inconvenientes do café. Primeiro excita, dir-se-ia. Depois enerva, tanto quanto me tem ensinado a infelicidade das experiências alheias. Mas deixemos esses problemas com quem os tem, embora não sejam problemas menores.

Não é desnecessário examinar como olha a direita católica para si própria quando se confessa em público. O insuspeito testemunho de Maurras deve ser lembrado. Ele agradece à igreja da Colina Vaticana a desjudaízação do Cristianismo, ou seja (e a meus olhos) a descristianização, sem mais.

Esta “desjudaízação” comporta a neutralização de grandes incómodos, como (por exemplo) a disciplina do Contrato de Trabalho definida no Livro dos Nazirim, último livro da Torah, ou ainda a exigência vétero-testamentária que a todos diz – “Não atarás a boca ao boi que faz a debulha”. Não devendo esquecer-se que a recomposição da Torah se declara concluída no séc. V,  em plena era de oiro da Patrística, com a fixação de boa parte do Credo e designadamente a deste pequeno-grande detalhe,  cuja dissimulação nunca deixou de ser tentada e boa parte das vezes conseguida: ”Creio em um só Senhor” .

Crer em um só Senhor, evidentemente, implica que a Terra só tem um Senhor e isso é indiscutível à luz da caracterização identitária da Ortodoxia da Fé. Todos os outros senhores, se acaso existirem, são inteiramente discutíveis. “Creio em um só Senhor” significa crer que a Terra é usufruto universal de todos os homens. Podemos discutir e ajustar a regulação desse usufruto. Mas isso é tudo.

Diderot notara já, na divindade de quem lhe falava o clero, uma realidade indigna da maiúscula que lhe cabe – ”Elargissez Dieu”. Deuses com minúscula, homens providenciais, senhores que não pode haver, nunca esquecendo o “dirigente máximo” e o “chefe supremo”, parecem-me bem tratados na recusa radical do movimento operário, quando canta a sua Internacional. Bem sei que não é habitual olhar para as coisas assim. Mas os hábitos não são tudo.

Olhar para as coisas desta forma tão pouco habitual permite iluminar inteiramente o agradecimento de Maurras. Faz isto lembrar Salazar e o seu agradecimento ao seminário menor de Viseu (é Cunha Leal quem o recorda e cita nas suas memórias) ”(…) ainda que houvesse perdido a fé em que ali me educaram (…)” certo –  a ambiguidade da conjugação verbal é notável –  pode ter perdido aquela fé, mas não perdeu outras coisas, designadamente nunca conseguiu relacionar-se normalmente com uma mulher durante a sua inteira existência. Não pode dizer-se que seja pouco (louvado seja Deus).

Isto arrasta e preserva modelos de “autoridade” e exercício do poder nocivos em si mesmos, da família à escola e à direcção de pessoal, ou, mais despersonalizadamente, “de recursos humanos”. Esta corja está já emboscada e a olhar a vivacidade intelectual dos adolescentes na Escola, ou dos jovens nas Faculdades. E já a fazer cálculos, a gizar bloqueios e a imaginar perigos. Parece-lhes mal a alegria de descobrir, o entusiasmo de investigar e preocupa-os qualquer solidez em qualquer conclusão, qualquer independência de reflexão, qualquer clareza de estilo, ou vivacidade de expressão. A elegância literária na expressão escrita deixa-os doentes. É lixo tóxico, esta gente. E os  efeitos práticos desta acção devem ser examinados, mesmo do ponto de vista do Direito Criminal, já que vivemos num dos raros lugares onde esse exame nunca ocorreu.

Mesmo Francisco de Roma se tem multiplicado em exautorações a estes fenómenos. O pequeno passo a que parece ter ficado o episcopado chileno da demissão do estado clerical  e a bela bastonada nos malteses são dois bons exemplos, sem esquecer o puxão de orelhas dado por Ratzinger, ele próprio, na inteira clerezia portuguesa. O importante, aqui, não são estas ocorrências, mas a evidência de nada mudar apesar delas. Ocorreram, portanto, apenas para se poder dizer que aconteceram. E nisso se esgota a sua utilidade no plano da diplomacia eclesiástica.

Mas todas as perspectivas religiosas se desdobram em perspectivas políticas. Esta também. É para isso que serve, aliás. E por isso é tão generosamente subvencionada num constante e miserável desvio bem agenciado de recursos públicos no plano da educação, claro, como poderia ser outro?

Tal gente é lastro de resistência a qualquer salubridade. É isto a extrema-direita portuguesa. Ela não vem aí. Não há fascistas a chegar. Esta gente sempre aqui esteve. Medra a expensas do Estado, agarrada ao tronco como hera, já confundindo a sua folhagem com a da árvore parasitada. E ameaça matá-la por asfixia e inanição.

E é de tal modo assim que um amigo com boa formação filosófica me dizia, há dias, ter visto um texto de Rebelo de Sousa (Marcelo) e ter concluído que ali não havia a menor ideia do que seja o Estado de Direito. – “Eles acham que o Estado de Direito é o Estado onde se governa pela publicação de Leis”. Pois acham. Nunca passaram do positivismo voluntarista. No quadro de convicções não confessadas em que o sufrágio universal é expressão de mero poder de assentimento, até acham que podem alterar quaisquer leis por simples incomodidade circunstancial, o que dá este caos legiferante, incompatível, evidentemente, com qualquer Estado de Direito, uma vez que nem se garante a segurança jurídica. Isto é assim, porque, claro, acima do “dirigente máximo” não está nunca o Direito, mas um deus. Invocar um direito em oposição ao dirigente máximo é sedição, motim, caso de anátema. A segurança jurídica seria forma de oposição com alcance político aos desígnios do arbítrio. O regime faz-se nomoclasta.

Uma greve chegou para os fazer admitir ser o horário de trabalho meramente indicativo, por exemplo. Sim, pouco interessa o modo como publicamente se identificam. O que os identifica é o que dizem do Direito, não o que dizem sobre eles próprios.

Nem pela cabeça lhes passa que no Estado de Direito governa-se em submissão ao Direito e que não é sequer o Estado o interprete privilegiado da norma, antes lhe incumbindo garantir a imparcialidade dos organismos encarregados da sua aplicação, passada ao crivo do debate livre de juristas profissionalmente independentes e ali chamados, diante dos pressupostos estruturantes de uma sociedade democrática, que não pode deixar de encontrar, nesses próprios organismos jurisdicionais, uma afinadíssima expressão.

Governar nos limites do Estado de Direito é evidentemente tarefa a exigir muitas qualidades, bastante reflexão, intuição afinada, clara linha de rumo. Para a imposição do arbítrio qualquer “poseur” é suficiente, qualquer besta é conveniente e qualquer curso errático é imponível.

Até ao longo dia da grande cólera.

O excecional sistema político português

por estatuadesal

(Ricardo Reis, in Expresso, 17/08/2018)

Ricardo Reis

A Argentina mergulhou esta semana numa enorme crise. Nas eleições primárias, o candidato peronista, Alberto Fernández, que tem como candidato a vice-presidente a ex-presidente Cristina Kirchner, obteve 47% dos votos, contra apenas 32% do Presidente atual, Mauricio Macri. Em termos domésticos, os governos de Kirchner e do seu marido entre 2003 e 2015 foram marcados pelos escândalos de corrupção, pelas nacionalizações e pela deterioração das liberdades individuais. Internacionalmente, durante os seus governos, os Kirchners declararam bancarrota e não pagaram a dívida externa em 2001. Eles desmantelaram o instituto nacional de estatística pelo que deixou de haver dados oficiais fiáveis sobre os indicadores económicos. Eles entraram em confronto com o FMI recusando-se a pagar os empréstimos que o país recebeu até 2005.

As sondagens apontavam para uma luta renhida entre Macri e Fernández. Surpreendentemente, ganhou Fernández por muito, e isto teve um efeito dramático nos mercados: o peso caiu mais de 20%, a bolsa perdeu quase metade do seu valor, e a taxa de juro na dívida pública subiu para os 35%. Isto apesar de a Argentina estar neste momento a beneficiar do maior programa de empréstimo de sempre por parte do FMI, no valor de 57 mil milhões de dólares. Com esta perda de confiança dos investidores vai ser difícil evitar uma bancarrota em breve.

Sempre que ler análises internacionais que concluem com lições lembre-se: Portugal é diferente

Em 2015, Portugal tinha acabado de sair do programa do FMI, mas a situação das finanças públicas era frágil. Depois de a coligação governativa que implementou o programa de ajustamento ter ganho as eleições, uma aliança surpresa entre os partidos de esquerda permitiu ao PS formar governo. O novo primeiro-ministro, e vários dos ministros, tinham feito parte do governo anterior que acabou com um pedido de resgate ao FMI. As taxas de juro da dívida pública subiram ligeiramente, e o líder da oposição, Passos Coelho, previu que em breve teríamos uma crise no mercado da dívida pública, não muito diferente da vivida na Argentina esta semana. Mas Portugal foi diferente.

A Itália está em estagnação económica há 20 anos. Desde 1998, o PIB real per capita cresceu uns míseros 7,6%. São só 0,4% por ano. Entre os 36 países-membros da OCDE, desde 1970, não há nenhum país que tenha tido duas décadas tão más como os italianos. Há uma geração que entra na idade adulta hoje e tem perspetivas de futuro iguais ou piores às dos seus pais. Isto praticamente nunca aconteceu num país desenvolvido. Viver em Londres ou Paris é encontrar jovens qualificados italianos que deixaram o seu país à procura de um futuro melhor. Quem ficou em Itália tem-se virado progressivamente para o nacionalismo, para o ódio aos emigrantes, ou para culpar a União Europeia. Sem fé que qualquer opção política tradicional consiga mudar a situação, os italianos votam frequentemente em partidos de protesto ou na extrema-direita.

Olhando novamente para o crescimento económico dos países da OCDE desde 1970, no segundo lugar dos piores desempenhos está a Grécia. Até recentemente, o Governo grego vinha de um partido recente da extrema-esquerda. Em terceiro lugar nesta lista de miseráveis está Portugal nos últimos 20 anos. Em Portugal, não há extrema-direita visível (e a acreditar nas sondagens, nem sequer grande direita). Os discursos políticos anti-UE ou xenófobos têm sido humilhados nas urnas. Portugal é diferente.

Em Franca, durante décadas, os sindicatos tiveram enorme poder. Havia um tabu em enviar a polícia para interromper manifestações, e as greves tinham quase sempre como resultado a conquista das reivindicações por parte dos trabalhadores. Qualquer reforma do mercado de trabalho, ou que pudesse prejudicar algum grupo sindical mais poderoso, era impossível. As greves nos sectores dos transportes paravam todo o país. Nas eleições de 2017, Emmanuel Macron surgiu com um novo partido assumidamente liberal e reformista. Uma das suas prioridades foi reformar o código de trabalho e mudar o clima sindical no país para que haja mais cooperação entre sindicatos e patronato.

O excecionalismo português é que, apesar das convulsões económicas, resistem os mesmos no poder

Em Portugal, a crise de representação e de legitimidade da UGT e CGTP tem levado à criação e crescimento de novos sindicatos. Mas não de novos partidos. Livre, Iniciativa Liberal ou Aliança tiveram poucos votos nas eleições europeias e, de acordo com as sondagens, as legislativas não serão muito diferentes. Mesmo o crescimento de um partido ecologista como o PAN vem com 20 anos de atraso em relação a outros países europeus, e tem pouco que ver com o estado da economia portuguesa.

Comum a todas estas experiências, no resto do mundo, choques económicos levam a convulsões políticas. Para melhor ou para pior, estes casos e muitos outros levaram ao lema “é a economia, estúpido” para explicar a política. O excecionalismo português é que apesar de todas as convulsões económicas, resistem as mesmas caras e partidos perto do poder. Talvez isto seja sinal da robustez da nossa República. Talvez seja a calma antes da tempestade. Mas sempre que ler análises de política internacional que concluem com lições para o nosso país lembre-se: Portugal é diferente.

domingo, 18 de agosto de 2019

Cinco notas sobre a greve dos motoristas

Posted: 17 Aug 2019 10:22 AM PDT

1. Uma das distorções das nossas representações sobre o que nos rodeia assenta na invisibilidade de grande parte do trabalho humano, seja na esfera da produção mercantil, seja na esfera doméstica. Quando vemos as ruas limpas – ou as escolas limpas, os hospitais o comboio ou a agência bancária – quantas vezes pensamos nos lixeiros e nos varredores que as limparam durante a noite, quantas vezes vemos, quando entramos nesses lugares, o trabalho já feito das mulheres que, para os limpar, ganham uma miséria? Quando pisamos um passeio, conseguimos ver debaixo dos nossos pés o trabalho de quem cortou a pedra e o de quem a colocou ali? Quando escolhemos os alimentos na prateleira do supermercado, conseguimos ver o trabalho, tão desconsiderado, de quem os produziu e transportou? Os exemplos são incontáveis. Há demasiados trabalhos em que só reparamos quando estão por fazer, cujo valor só consideramos quando nos confrontamos com as consequências de não terem sido feitos.

O primeiro mérito de uma greve – e desta greve dos motoristas de matérias perigosas também – é este. Obrigar-nos a apercebermo-nos da importância de um trabalho de que ninguém falava, mas que é afinal tão essencial para que a sociedade funcione. Sem greve, quem teria essa consciência, além dos próprios? Ao longo dos anos, sem greves, alguém falou da centralidade deste trabalho e das condições penosas em que é feito?

2. O objetivo de uma greve é sempre perturbar o normal funcionamento do quotidiano da produção e da circulação mercantil. Mostrar que, se os trabalhadores pararem, o mundo pára. Não há verdadeiro exercício do direito à greve se ela não se fizer sentir, em primeiro lugar, nos bolsos dos patrões que precisam do trabalho para o seu negócio e para obterem os seus lucros; e também, secundariamente, no funcionamento da sociedade, que toma com a greve a consciência da falta que aquele trabalho faz. Isto nunca quis dizer, evidentemente, que o exercício do direito à greve seja absoluto. Toda a gente concorda que, mesmo havendo uma greve, as ambulâncias têm de continuar a ser abastecidas e a comida tem de continuar a chegar aos supermercados, por exemplo. Por isso, toda a gente concorda e a lei prevê que, em cada greve, se deve definir serviços mínimos capazes de garantir que a greve se compatibiliza com outros princípios fundamentais da nossa vida coletiva. Nisso, não há polémica: os serviços mínimos existem desde que a Constituição consagrou o próprio direito à greve. Se não há acordo entre patrões e trabalhadores na sua previsão, intervém o Estado, cabendo ao Governo defini-los. Mas também é óbvio que se a definição de serviços mínimos é de tal modo maximalista que torna potencialmente nulos os efeitos de uma greve, isso é uma forma objetiva de esvaziar esse direito. Fez bem o Governo em fixar serviços mínimos nesta greve dos motoristas – e é compreensível que, em alguns casos especiais, eles sejam muito exigentes (exemplo óbvio: para emergências na saúde ou no combate aos fogos...). Mas fez muito mal em abusar dessa prorrogativa para fixar verdadeiros “serviços máximos” em áreas que não são, objetivamente, “necessidades sociais impreteríveis”, que é o termo da lei (desde quando é que, por um exemplo, um vôo comercial Porto-Lisboa pode alguma vez caber no conceito de “necessidade social impreterível”?). Têm inteira razão os sindicatos e os partidos de esquerda que acusaram o Governo de ter aproveitado – com o aplauso e o entusiasmo dos patrões e da Direita – a má condução desta greve para fazer um ataque não apenas aos motoristas, mas ao próprio direito à greve e a todas as futuras lutas em que o problema se coloque. Se se aceita o princípio de que pode haver “serviços mínimos” para todas as situações com percentagens de 75% a 100%, o que restará no futuro do impacto de uma greve, por exemplo, dos estivadores, dos motoristas dos transportes públicos ou das trabalhadoras da limpeza? Há linhas que não devem e não podem ser transpostas. E o Governo quis transpô-las.

3. As greves fazem-se para conquistar melhores condições de trabalho, ou para que um determinado trabalho seja reconhecido. Na disputa de uma greve conta a capacidade de dar corpo a dois princípios fundamentais do movimento sindical: a unidade e a solidariedade. Também por isso, uma greve disputa a relação de forças na própria sociedade. Uma greve de um setor particular é tanto mais forte quanto consegue ganhar apoio em toda a classe (por exemplo, em todos os motoristas e não apenas num subsector) e na maioria da sociedade, que é composta por quem vive do seu trabalho (e que é por isso potencialmente sensível à injustiça da situação e à justiça da reivindicação). Uma greve que se deixa deliberadamente isolar é uma greve condenada a perder, a menos que quem a conduz queira ganhar outra coisa que não direitos para quem trabalha. Já uma greve que tem a solidariedade dos outros trabalhadores tem uma força imparável na sociedade. Para vencer, uma greve – que é um sacrifício do presente e do salário, em nome do salário e do futuro – tem de olhar para além do seu umbigo, tem de dialogar com a sociedade e procurar apoios e solidariedade. Não faltam exemplos recentes de greves que o fizeram com enorme sensibilidade e sucesso. Querem um? Os estivadores.

4. A luta dos motoristas de matérias perigosas tinha boas condições para ter o apoio da sociedade. As condições de exploração impostas pelos patrões são uma vergonha. Horários prolongados até ao limite não prejudicam apenas quem os faz, mas a segurança de todos nós. Pagamentos feitos fora do salário prejudicam os trabalhadores, mas também toda a sociedade, porque são formas de os patrões contornarem as suas obrigações contributivas com a Segurança Social e o pagamento de impostos, perpetuando salários-base muito baixos. A lei da selva que parece imperar neste setor é muito mais que um embaraço público: é a expressão da prolongada ineficácia e complacência do Governo e das autoridades inspetivas para com práticas empresariais que são inaceitáveis – e que, no entanto, parecem ter sido aceites ao longo de décadas.

Há por isso reivindicações inquestionavelmente justas que têm sido prejudicadas pela forma como todo o processo foi conduzido. O Governo geriu esta greve a pensar na demonstração exuberante da autoridade do Estado e na maioria absoluta que pode resultar da sedução do eleitorado conservador. E o porta-voz sindical geriu-a a pensar essencialmente na publicidade oportunista ao seu escritório de advogados e na sua eleição para o Parlamento. As vítimas foram os motoristas.

5. Voltar às negociações e conseguir um acordo capaz de satisfazer os trabalhadores é o único caminho razoável e ainda bem que ele parece ter-se agora imposto. Mas greve e negociação não são antíteses, como sugere o Governo e gritam os patrões. São elementos do mesmo processo. Em relações de força desiguais, como aquela em que decorre qualquer negociação de um contrato coletivo de trabalho, a arma da greve não é um objeto externo às negociações. É um dos instrumentos mais importantes para equilibrar essas negociações para o lado dos trabalhadores. Uma greve ilimitada e que não abre caminhos negociais é uma greve que já fracassou, porque o único caminho que propõe aos trabalhadores é a derrota. Mas uma negociação que não faça valer a disponibilidade de luta dos trabalhadores também está condenada a ter um fraco resultado, porque é sempre a vontade dos patrões que vinga.

Compreendem-se pois os apelos a que se retomem as negociações. Já não é aceitável que eles só valham para uma das partes, e que poupem precisamente as associações patronais que dizem que, enquanto uma luta decorre, não negoceiam. Quando o Governo canaliza a sua pressão apenas para uma das partes, torna-se não um mediador em busca de equilíbrio, mas um mero eco das posições patronais.

O que quero dizer é isto: haver um memorando para um acordo entre alguns sindicatos e a parte patronal é um bom sinal, que deve ser aproveitado de imediato por todos os sindicatos. Ao mesmo tempo, que ninguém esqueça ou omita que este acordo agora anunciado não existiria sem que tivesse havido uma greve com a força que ela teve entre os motoristas de matérias perigosas. Ou seja, este acordo é, por mais que isto possa parecer paradoxal, produto desta greve. O que é matéria de reflexão para todos, para o conjunto do movimento sindical e é um fator que justifica, desde logo, que os ganhos que ele possa conter se alarguem a todos os trabalhadores.»

José Soeiro

Tudo o que perdemos com a privatização da Galp

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 17/08/2019)

A cenografia inicial em torno da greve dos motoristas foi perfeita. A estratégia era simples: conseguir evitar que a greve fosse evitada; assustar o país; mostrar o Governo como uma autoridade implacável que aqueça o coração do eleitorado de direita. Tudo nesta montagem estava subordinado às eleições (até o advogado e vice-presidente do sindicato veio confirmar a regra, saltando para a cartola de um partido de circunstância). Creio que essas jogadas estão em vias de falharem.

O ATAQUE AO DIREITO À GREVE

A consequência mais duradoura e importante deste conflito, qualquer que venha a ser o seu desenvolvimento, é a banalização de um precedente grave contra o direito à greve: o efeito social foi invocado pelo Governo para impor serviços mínimos maximizados e, logo na primeira oportunidade, com menos de 100 motoristas em greve, determinou a requisição civil, mobilizando as Forças Armadas para substituir grevistas. Este tríptico legal destroça o direito de greve. Mesmo sem considerar a prévia promoção de alarmismo, medida ao milímetro pelos estrategos eleitorais, estas regras impedem as greves e mobilizam meios do Estado, desde o poder legal até à tropa, para apoiar o patronato na disputa. Há aqui uma violenta marca histórica, vinda de um partido que reclamava a tradição democrática.

Para criar este precedente e ganhar a autoridade pública de que o Governo se quer revestir, era preciso que a greve não fosse evitada e que as partes se acirrassem. Ora, se tivessem ficado fixados calendários de negociação ao longo dos últimos meses, se o pré-acordo de maio tivesse sido generoso, se o patronato não tivesse sentido desde logo que tinha a mão do Governo e se tivesse sido concluído o arrastadíssimo processo negocial com o maior sindicato do sector, cujas linhas gerais foram anunciadas na quarta-feira de noite, a querela deveria ser sido resolvida.

Para os motoristas, fartos de uma situação de vulnerabilidade, com um salário-base baixo e com pagamentos dependentes da discricionariedade patronal, era justiça elementar que se chegasse a um novo contrato coletivo. Quem trabalha no privado sabe bem como funciona este truque do salário de referência ser insignificante e ficar na mão dos subsídios vários.

PERDER ANTES DE COMEÇAR

Mas, como um dos sindicatos é representado por um vice-presidente que não é sindicalista, antes se anuncia com alguma pompa excessiva como o dono de um dos maiores escritórios de advogados do país, os motoristas entraram logo a perder na disputa da opinião pública.

Ainda para mais, e antecipando a greve, o Governo preparou a sua campanha meticulosamente. Tudo estava no seu lugar. Houve recibos de salários, bem selecionados, para serem exibidos nos telejornais: os motoristas ganham muito mesmo que ganhem pouco. Houve o anúncio da escassez, para lançar as pessoas para as filas desde uns dias antes da greve. Houve a contagem decrescente, como se se tratasse de um furacão anunciado. Houve a escalada de ministros em declarações sucessivas, mas tentando que não se note a consequência da sequência. Houve mesmo três ministros, um em cada telejornal, não fosse alguém não perceber. E todos delicados, nada de empolgamentos, tão pesarosos como o professor primário do antigamente que aplicava reguadas às crianças, todos recitaram bem o seu papel.

GASTAR AS EMOÇÕES

O país, diga-se, não se assustou por demasia e uma grande parte das bombas de combustível foi funcionando tranquilamente. Só que o plano tinha que ser cumprido. Talvez por isso, foi logo forçado em demasia: a requisição civil logo no primeiro dia foi precipitação. Ou pôr tropas a conduzir camiões passadas poucas horas. As fardas eram para ser notícia grandiosa, quando Portugal inteiro suspirasse pela autoridade de galões. Era para quando o país se declarasse nas últimas (curiosamente, é isso que conclui a assustada imprensa internacional). Mas o Governo quis comprometer o Presidente da República e, por isso, requisitou logo a tropa. Sempre dá boas imagens de televisão.

Percebe-se a aceleração do plano, os patrões gritavam por requisição e perceberam que a eles não lhes é pedido que cumpram a lei dos serviços mínimos, ao passo que o Governo aspirava a chegar a este momento culminante, foi para ele que trabalhou, e nestas coisas os conselheiros eleitorais têm sempre pressa, não se pode deixar voar o pássaro que temos na mão. E assim se antecipou o momento épico para segunda-feira, as fardas na rua. Só que a partir daqui sobrou a repetição.

LEMBRA-SE DA GALP?

Entretanto, quem no Governo trabalha para soluções e não para encenações terá feito a pressão no lugar certo: fechar o acordo para o novo contrato coletivo. No momento em que escrevo, ainda não se conhecem pormenores do contrato, que a ANTRAM sempre quis que fosse pouco ou nada. Mesmo antecipando que se trate de um pequeno passo, a rejeição de uma frente sindical unida pelo sindicato dos motoristas das matérias perigosas é um erro. Há poucos motoristas em greve e a defesa que lhes sobra é o horário das oito horas. Mas precisam de chegar a uma vitória com um acordo. E só podem consegui-lo em conjugação com todos os sindicatos.

Pela sua parte, o Governo parece temer a própria radicalização. Entusiasmou-se com os primeiros dias e gastou demasiados cartuchos de emoção. Já não sobra nada, a não ser choques e provocações que disfarcem este cheiro a calculismo e cinismo e, para a parte do Governo que joga com o tremendismo antigrevista, o acordo com a Fectrans é má notícia. Fica sem agenda dramática perante uma greve esvaziada.

Resta a única questão fundamental: se a refinação e distribuição de combustível é estratégica para o país, a ponto de se chamar a tropa para conduzir os camiões, porque raio é que se privatizou a Galp? A resposta, para quem quer uma solução de tranquilidade para Portugal, é que se renacionalize a Galp e a sua distribuição.


O marxismo-leninismo-privatismo

A história de Angola e do MPLA tem episódios extraordinários, como a convergência inicial dos nacionalistas angolanos ou a vitória militar na grande batalha de Cuito Cuanavale contra o exército sul-africano, em que as forças cubanas foram decisivas. Num país que sofreu uma guerra colonial e uma guerra civil, reconstruir o Estado e organizar a vida nunca seria fácil, mas a referência de gerações de luta poderia ter ajudado a criar uma cultura democrática. Mas quem triunfou foi um grupo dirigente que foi usando em seu proveito o poder, desde o massacre de 27 de maio de 1977 até ao enriquecimento pessoal. Assim, num dia o partido era “marxista-leninista”, noutro dia ocupava a vice-presidência da Internacional Socialista; num dia convidava o PCP para o seu congresso, mas noutro o “convidado especial” era Paulo Portas.

Passada a ideologia, que a tudo se adapta, chegou o tempo da consolidação. Assim, o ex-Presidente José Eduardo dos Santos (foto) explicou a teoria da acumulação de capital como uma ação nacionalista: “Neste processo de luta contra a corrupção, há uma confusão deliberada feita por organizações de países ocidentais para intimidar os africanos que pretendem constituir ativos e ter acesso à riqueza, porque de um modo geral se cria a imagem de que o homem africano rico é corrupto ou suspeito de corrupção. Não há razão para nos deixarmos intimidar. A acumulação primitiva do capital nos países ocidentais ocorreu há centenas de anos e nessa altura as suas regras de jogo eram outras. A acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África deve ser adequada à nossa realidade” (16 de outubro de 2013).

A acumulação primitiva durou mais do que os seus primeiros beneficiários. João Lourenço, que há pouco substituiu Eduardo dos Santos e entrou em guerra com a família deste, anunciou agora a privatização de 195 empresas públicas angolanas até 2022, 80 das quais já até ao fim deste ano. A lista inclui a Sonangol, a transportadora área TAAG, os Correios, a Angola Telecom, os bancos e empresas de seguros, a Endiama, as telecomunicações (Unitel), a cimenteira Nova Cimangola e até a Bolsa de Valores.

A promessa é de um processo à russa, que reforce as fortunas feitas, crie novos oligarcas e faça alianças com o capital estrangeiro. Neste capítulo, João Lourenço é mais ousado do que Bolsonaro, vende-se tudo. Foi a isto que os acumuladores angolanos chegaram.