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sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

OE, o Borda d’Água do Governo

Posted: 23 Jan 2020 03:22 AM PST

«O OE é o Borda d’Água do Governo. Nele apresentam-se prognósticos para o ano, previsões para as colheitas de impostos e informações sobre as mezinhas que vão ser utilizadas para contentar os portugueses e, sobretudo, os partidos da maioria. O OE transforma-se, assim, numa muito adocicada mousse de chocolate. Mas, lamentavelmente, e ao contrário do Borda d’Água, o OE não traz provérbios, conselhos astrológicos ou dados credíveis sobre as marés e as fases da Lua. O que o torna mais pobre. Talvez por isso o texto do OE é acusado de ser a melhor obra de ficção literária que, a cada ano, se publica em Portugal. Todos fingem lê-lo. Mas poucos, por certo, conseguem ler um romance tão desinteressante que a cada ano o sr. Mário Centeno entrega ao sr. Ferro Rodrigues. No entanto, ambos surgem saltitantes e sorridentes, com ar de quem acabou de receber o derradeiro “best-seller” do sr. José Rodrigues dos Santos, que conhecem do Telejornal, e que está em pulgas para o folhear.

Não é caso para tanto. A primeira frase do OE de 2020, numa prosa assinada pelo sr. Centeno, é a seguinte: “O Orçamento do Estado (OE) para 2020 é o primeiro exercício orçamental da responsabilidade do XXII Governo Constitucional.” Palavras de sábio. Não é o último, nem o penúltimo. Mas convém reforçar a ideia, não vá os portugueses esquecerem a coisa. Mas, como o sr. Centeno citou Fernando Pessoa na sua aula diante do Parlamento, pode ser que o OE esteja a caminho de se tornar poesia minimal repetitiva. Ou de o sr. Centeno se tornar um heterónino do poeta. Ou mesmo um heterónimo de ministro.

Seja como for, a mousse de chocolate está pronta a ser distribuída na especialidade. Terminada, pelo menos como imagem redentora, a “geringonça”, resta-nos a memória. Escutando um velho tema da Banda do Casaco, chamado exactamente “Geringonça”, de 1977, alguns percebem porquê: “Estávamos nós a contar ai as patas às ovelhas/A ver se faltava alguma/Quando aquela geringonça ai desceu lá do alto/E poisou entre molhos de caruma/Ai aquilo era coisa ai do outro mundo era”. Era, mas acabou, como se fosse o ET do filme do sr. Spielberg.

Vivem-se tempos de mudança de estação, como explicaria o Borda d’Água. Épocas de semear outras culturas. Neste contexto de mudança é estimulante ler o romance de John Williams, “Augusto”, de 1973, e editado no final do ano passado em Portugal. De forma ficcionada seguimos a vida do jovem Octavius nos tempos conturbados que se seguiram ao assassinato de Júlio César. Até que se tornou César Augusto, o imperador. Durante mais de quatro décadas estabeleceu a nova ordem. Mortos António e Cleópatra, Augusto pode espalhar a sua paz por todo o império.

Após ter visto Júlio César ser assassinado, tinha a certeza que a aparência é sempre mais importante do que a realidade. E assim foi imperador sem parecê-lo. Isso evitou que fosse assassinado. Percebeu as maquinações do poder (que não se exercitam só a nível político). Foi mestre na arte da manipulação da informação, ajudado por Gaio Mecenas (o “mecenato” nasceu dele), milionário confidente de Augusto, que atraiu muitos poetas ao círculo do poder, em particular Virgílio. Deu-lhes estabilidade financeira, tal como a Horácio. Estes criaram um mito. Tácito falou depois da podridão que se instalou com o imperador: “Augusto conquistou os soldados com presentes, a populaça com milho barato e todos os homens com as delícias do repouso, e assim se engrandeceu por etapas, enquanto concentrava em si mesmo as funções do Senado, dos magistrados e das leis.” Ganho o poder, vencida a luta das ideias, proscritos os críticos, Augusto desenhou a sua paz.

Hoje, mais comedidos, os governantes julgam que a paz dos povos se conquista com Orçamentos com superávite. E com discursos áridos. O sr. Centeno poderia sonhar ser o César Augusto destes tempos. Não o será. O Borda d’Água explica tudo: as estações sucedem-se. Há a época das sementeiras. A do crescimento. A das colheitas. E a da chuva e do vento, que prepara o renascimento. Contra este ciclo, nem César Augusto venceu.»

Fernando Sobral

Acumulação cleptocrática

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 23/01/2020)

Alexandre Abreu

A investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação em torno dos Luanda Leaks, em que o Expresso tem tido um papel importante, é um trabalho notável de jornalismo de investigação. No entanto, é bem certo, tal como foi já referido por outros nestes últimos dias, que a origem cleptocrática da fortuna de Isabel dos Santos e de outros membros da elite angolana não era segredo para ninguém.

A despeito das narrativas micromitológicas sobre fortunas construídas a vender ovos, é bem conhecida a longa história de espoliação dos recursos angolanos por boa parte da elite deste país, com destaque para a família dos Santos, através do controlo sobre processos de privatização, concessões de licenças, venda de recursos a preços privilegiados e outras formas de participação nos dois lados de negócios em que a parte pública – o povo angolano – ficou sistematicamente a perder.

Tal como há muito é bem conhecido o prolongamento em Portugal desta constelação de interesses, o papel da economia portuguesa como plataforma para exportação e branqueamento de capitais e os aliados e cúmplices desta estratégia em Portugal – alguns dos quais são agora os primeiros a procurar abandonar o navio perante a iminência do naufrágio.

Esta longa e triste história é obviamente uma parte importante da explicação para o contraste entre o nível de rendimento de Angola e os seus deploráveis indicadores de desenvolvimento humano e social. Sendo certo que têm sido feitos progressos importantes nos últimos anos em vários destes aspectos (como a mortalidade infantil, que tem caído significativamente), é também certo que a situação da população angolana é muito pior do que o nível de rendimento deste país permitiria, assim os recursos disponíveis não tivessem ao longo dos anos sido tão concentrados em tão poucas mãos.

Não sendo caso único, não deixa de ser impressionante a desfaçatez com que tudo isto – este esbulho sem freio dos recursos de milhões por uma pequena elite, os contrastes entre miséria e ostentação – foi acompanhado por uma retórica de transformação revolucionária e justiça social. E um exemplo especialmente irónico desta hipocrisia foi a forma como a elite, a partir de certa altura, recorreu a uma categoria de análise marxista – a acumulação primitiva – para justificar o seu próprio enriquecimento a partir do controlo do Estado.

Por analogia com o processo histórico de constituição de uma estrutura de classes capitalista na Europa que emergiu do feudalismo, o enriquecimento sem limites dos privilegiados na órbita do poder na Angola contemporânea foi apresentado como historicamente progressista na medida em que corresponderia à consolidação de uma burguesia local capaz de pôr em marcha dinâmicas de acumulação de capital e de desenvolvimento das forças produtivas.

Foi o caso do discurso do Estado da Nação proferido por José Eduardo dos Santos em 2013, em que este se referiu à “acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África” e à necessidade de “empresários e investidores privados nacionais fortes e eficientes para impulsionar a criação de mais riqueza e emprego” para, já então, alertar contra campanhas anti-corrupção que procurassem obstaculizar esses processos.

Em rigor, a acumulação primitiva a que Marx se referia não consistia tanto no enriquecimento original da burguesia quanto numa outra coisa: a generalização de relações de produção capitalistas na sequência da expropriação dos trabalhadores dos meios de produção (as terras dos camponeses, em particular) de modo a criar uma compulsão para a venda da força de trabalho. Para além de que a análise desse processo histórico por parte de Marx não se destinava a ser lida como um encómio ou um manual de instruções.

Sobretudo, o processo de acumulação cleptocrática que tem tido lugar nas últimas décadas em Angola, em articulação com Portugal, tem tido muito mais de rentismo do que de produtividade, muito mais de extraversão do que de dinamismo local, muito mais de parasitismo do que de progresso. Pelo que mais importante do que o materialismo histórico de José Eduardo dos Santos são as perspetivas de que, em Angola como em Portugal, as elites mais parasitárias possam ser sujeitas ao escrutínio da justiça e à democratização da economia. A vinda à luz do dia do modo como operam e a erosão de alguns dos seus pés de barro não deixam de ser passos importantes nesse sentido.

O dantesco cenário do congresso do CDS

David Dinis

David Dinis

Director-adjunto

24 JANEIRO 2020

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Bom dia!
Andamos há três meses a falar dos novos partidos, mas agora é tempo de falar de um dos antigos. O CDS começa amanhã um Congresso que promete ser bem quente. Já sabe o contexto: o partido ficou reduzido a cinco deputados (com a pior votação da sua história), Assunção Cristas demitiu-se e ficou praticamente remetida ao silêncio desde então, deixando o palco entregue a uma ruidosa campanha. Sim, ruidosa, com comparações a Bolsonaro e acusações de cobardia, com baldes de lixívia, decibéis e arranjinhos, com doze estratégias que vão a votos e cinco candidatos formalizados.
Como explicava ontem a Mariana Lima Cunha, os cinco do CDS estão a dois dias de entrar num dos congressos mais disputados da história do partido. E como é à moda antiga, com eleição no próprio congresso, não há ingrediente que falte: há senadores que não sabemos quem apoiam (Lobo Xavier, Pires de Lima, Nobre Guedes, Ribeiro e Castro), há um ex-líder que quer voltar mas não sabe se pode (Manuel Monteiro), há um outro que se arrisca a ver riscado todo um legado (Portas), há muitas contagens de delegados e até a hipótese de o líder sair de uma geringonça à moda centrista.
Não falta, portanto, expectativa mediática, aquela que espera momentos tão épicos como a bica de Monteiro que azedou, ou o segredo da saudosa 'Zezinha' Nogueira Pinto. Mas há também medo entre os militantes e dirigentes do CDS. Medo de desaparecer, porque o resultado do partido foi muito baixo, mas também porque à direita apareceram dois novos partidos que ameaçam rapar o tacho dos votantes daquele espaço. Foi esse medo que marcou a campanha interna - e será ele a marcar o que vamos ouvir no próximo fim de semana.
Eis a pergunta: o CDS pode morrer?
Visto de fora, a resposta não é auspiciosa: “Não é assim tão fácil um partido desaparecer, mas também não é automático que cresça. Pode cair de 4% para 3% ainda, correndo o risco de se tornar irrelevante”, explicou André Azevedo Alves, politólogo e professor da Universidade Católica. Será difícil, mas isso “acontece”, concorda António Costa Pinto, do ICS, lembrando o caso francês, num texto publicado aqui no Expresso que tem uma ameaça no título: o medo do “partido da trotinete”.
Atenção agora, aos nomes. E fique atento a dois: João Almeida, deputado, o candidato com o trauma do Belenenses; e Francisco Rodrigues dos Santos, presidente da Juventude Popular, o conservador incorreto que quer saltar da liderança dos pequeninos para a liderança dos grandes. O primeiro, moderado e mais liberal, tem um ponto fraco: fez parte da direção de Assunção Cristas, que sai derrotada; o segundo, muito (mesmo muito) conservador, tem outra: um historial de declarações que foram disfarçadas no seu programa, mas deixaram anseios entre as suas tropas.
Pelo meio, conte ainda com Nuno Melo - o eurodeputado que disse que seguramente seria candidato, mas que não é por não ter sido eleito deputado. É como a história do apostador no Euromilhões que lamenta não ter ganho o jackpot, quando nem fez qualquer aposta.
Como vê, não está famoso, o cenário do congresso. Mas, acredito eu, nem todos os cenários para o pós-congresso são iguais. Como dizia Manuela Ferreira Leite, num célebre discurso perante o Conselho Nacional do PSD, nos decisivos dias em que Barroso entregou o poder a Santana Lopes: há duas maneiras de perder, uma com honra e outra sem ela. Mas aí, claro, já estamos no domínio da opinião. A minha pode lê-la aqui: Chicão vem para fazer a guerra (depois não digam que não avisei).

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O cerco ao vírus da China e à princesa de Angola

Raquel Moleiro

Raquel Moleiro

Coordenadora de Sociedade

23 JANEIRO 2020

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O surto perfeito começou a formar-se na primeira semana de dezembro, em Wuhan, na China. Um homem de meia-idade apareceu num hospital local com um vírus misterioso, que provocava febres altas, dificuldades respiratórias e lesões pulmonares. Até ao dia de ano novo, surgiram na mesma zona 59 casos semelhantes. Só então as autoridades alertaram a Organização Mundial de Saúde (OMS). Tinham passado 23 dias. 23 dias de contágios. Mês e meio desde o primeiro caso, estão confirmadas 17 vítimas mortais e 448 infetados, 441 em território chinês e os restantes na Tailândia, Macau, Hong Kong, Japão, Coreia do Sul e EUA.
Hoje de manhã a Organização Mundial de Saúde decide se declara emergência de saúde pública internacional, como fez nos surtos de Zika, H1N1 ou Ébola. E é fácil perceber porquê. O agente foi identificado como um novo coronavírus, em 89% semelhante ao SARS, que matou 916 pessoas em 2002 e 2003, a maioria também na China.
O “ponto zero” do contágio foi identificado num mercado em Wuhan. A primeira vítima, de 61 anos, era cliente. Mas mais do que a origem exata, é a altura do ano e o cidade que podem alimentar exponencialmente o surto.
No próximo domingo, começa na China o Festival da Primavera. Centenas de milhões de pessoas viajam para celebrar o ano novo lunar. O potencial de proliferação do vírus, que está em mutação e se transmite de pessoa para pessoa, é catastrófico.
Para piorar o cenário, a cidade de Wuhan, com os seus 11 milhões de habitantes, é uma espécie de hub de mobilidade, com ligações aos quatro pontos cardeais da China e 60 destinos internacionais através de comboios de alta velocidade e avião. Porém, à hora a que lê este Curto, já estão todos praticamente parados. Num decisão drástica para cercar e conter o vírus na origem, as autoridades locais decretaram a proibição de saída da cidade a partir das 10h de hoje (2h em Portugal Continental) e sem fim à vista.
As redes de autocarro, metro e barcos de longa distância deixaram de funcionar, e o aeroporto e as estações de comboio só acolhem viagens de chegada. Segundo o South China Morning Post, multidões tentaram sair do epicentro do vírus antes do bloqueio.
Em Portugal, mesmo antes da decisão da OMS, a Direção-Geral da Saúde ativou os dispositivos de saúde pública de prevenção. Estão em alerta o Hospital de São João, no Porto, o Curry Cabral e Estefânia. O Governo emitiu também recomendações para quem viajar para a China.
Não foi o único país a tomar medidas. Aliás, a maioria está a fazê-lo. Num surto o trabalho tem de ser conjunto, articulado, internacional, para que todos os flancos sejam cobertos, e não possa o agente nocivo passar por onde lhe é franqueada a porta. É um bocadinho como na Justiça, quando as investigações parecem ter tantas ramificações quanto os canais de transmissão de um vírus.
Desde que a investigação Luanda Leaks começou a ser revelada, o cerco à volta do universo Isabel dos Santos começou a apertar, e de vários lados. Ontem, a Procuradoria-Geral da República de Angola constituiu a empresária arguida por alegada má gestão e desvio de fundos, durante a passagem pela Sonangol, juntamente com mais quatro portugueses. Um deles, Nuno Ribeiro da Cunha, gestor do EuroBic, foi encontrado com ferimentos graves nos pulsos e no abdómen, numa casa em Vila Nova de Milfontes, no início do mês e a PJ está a investigar.
Hoje mesmo, Hélder Pitta Grós, o general que está à frente da PGR de Angola, chega a Portugal para se encontrar com a congénere portuguesa. O encontro vai decorrer em Lisboa, pelas 15h. Em entrevista ao Expresso e à SIC, o PGR angolano revelou que "se necessário" iria pedir a colaboração das autoridades portuguesas na investigação do império financeiro e admitiu emitir um mandado de captura a Isabel dos Santos.

O dominó angolano ainda mal começou a cair

Posted: 22 Jan 2020 03:30 AM PST

«O dominó começou a cair e nunca foi difícil adivinhar que viria o tempo. Durante quase quarenta anos à frente de Angola, o presidente José Eduardo dos Santos constituiu uma oligarquia que se alimentou fartamente dos recursos nacionais, mas o inevitável esgotamento do consulado, as contradições entre cleptocratas ou a pressão popular para a democracia acabaram por se impor. João Lourenço teve de afirmar o seu poder protegendo-se do clã Dos Santos, a desesperante falta de recursos em tempos de petróleo barato obrigou ao esforço de recuperação de capitais, o povo exigia medidas contra o saque e, assim, o dominó desabou. Mas, ao desfazer-se, desencadeou uma curiosa valsa de justificações em Portugal.

Com aquele gosto florentino que tem aprimorado, o ministro dos Negócios Estrangeiros, falando de si próprio na terceira pessoa, na boa tradição literária de um treinador de futebol, explicou que “talvez agora se perceba melhor a insistência do ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal - desde pelo menos dezembro de 2015 - de manter o melhor relacionamento possível com as autoridades angolanas; de manter o nível de relacionamento entre os dois Estados no mais alto dos patamares”. Maravilha da diplomacia, este “melhor relacionamento possível” foi estabelecido desde finais de 2015 mas não antes, ou seja, desde a nomeação do próprio, com a “autoridade angolana” do “mais alto dos patamares”, ou seja o próprio José Eduardo dos Santos, eventualmente na presunção futurista de que aquele seria substituído por alguém que o pusesse em causa. Nisto, o governante só peca por um menosprezo injusto pelos que estiveram nas Necessidades antes dele e que, aliás, fizeram exatamente o mesmo, o “melhor relacionamento possível” com esse “mais alto dos patamares”.

Esse “relacionamento” resume-se a uma guarda pretoriana que foi recrutada em Portugal para proteger os assaltantes de Angola. Os banqueiros (no BCP, no BPI), os empresários (Amorim primeiro que todos, depois a Sonae, José de Mello e tantos outros) e os governos multiplicaram-se em vénias para atrair esses capitais e as suas alianças. O Banco de Portugal fechou os olhos às investidas de personalidades “politicamente expostas” e, salvo ter evitado na 25ª hora que Isabel dos Santos viesse a ser administradora do BIC, não opôs qualquer reserva a nenhuma das suas outras funções nem sequer à compra em saldo deste último banco.

Assim, protegida por alguma imprensa que a apresentava como a rainha do glamour, por uma câmara municipal que oferecia ao marido a medalha de ouro da cidade a troco de uma inútil promessa de um museu, pelo deslumbramento dos políticos e pela ganância dos capitais, Isabel dos Santos instalou uma rede de conivências em Portugal, com que pretendeu abrir caminhos para o reconhecimento internacional.

É cruel lembrar, mas não deixa de ser verdade, que estas aplicações do dinheiro extorquido de Angola eram barradas noutros países europeus. Nada que demovesse um ex-presidente do PSD, ex-ministros de várias cores, um ex-governador do Banco de Portugal, um ex-deputado do PS e tantos outros de trabalharem para esta rede de interesses da constelação Dos Santos e, em particular, de Isabel. Ser pago em dinheiro angolano passou a ser uma das etiquetas de muita da elite portuguesa.

E tudo se sabia. Pepetela, que conhecia cada uma dos personagens desta clique, retratou-as em vários romances em que apresenta a sua desilusão e raiva contra a corrupção e o seu regime. Rafael Marques denunciou durante anos muitos destes esquemas, com dados detalhados. O livro que Jorge Costa, João Teixeira Lopes e eu publicámos em 2014, “Os Donos Angolanos de Portugal”, resumindo muito do que nos anos anteriores já tínhamos investigado e escrito sobre a cleptocracia luandense e os seus aliados portugueses, chegou a milhares de pessoas em Angola e por cá. Incluímos nomes e gráficos com as ligações das diversas empresas. Contamos a história e revelamos de onde vinha o dinheiro. O general Kangamba alegou o direito de resposta e respondeu-me na imprensa portuguesa, não era de menos o que dele contamos no livro, as investigações judiciais internacionais sobre redes de prostituição ou automóveis com malas de dinheiro a circular pela Europa.

O “Jornal de Angola” dedicou-nos editoriais e insultos. Luaty Beirão e os seus camaradas puseram todas as denúncias na rua. Como Rafael Marques, foram presos, enquanto no Parlamento português, confrontados com votos pela liberdade de imprensa e de opinião contra a repressão pelo regime de Luanda, o PS, o PSD, o CDS e o PCP alinhavam na recusa sobranceira, com José Eduardo dos Santos ninguém se mete.

Nos congressos do MPLA desfilava uma procissão de políticos portugueses a tecer loas ao cônsul. Mesmo sendo membro da Internacional Socialista e parceiro do PS, o partido do poder procurava aliados em quase todos os quadrantes. Em 2016, de 17 a 20 de agosto, em mais um congresso de consagração de Dos Santos (e no período em que o nosso atual ministro já cuidava do “melhor relacionamento possível” com o “mais alto dos patamares”), o PS fez-se representar pela secretária-geral adjunta, Ana Catarina Mendes, e pelo presidente, Carlos César, que enfaticamente brindou os anfitriões com um “o MPLA e o PS têm trilhado um caminho comum, um continuado diálogo político e uma colaboração concreta em áreas de interesse mútuo, incluindo no âmbito da nossa família política no seio da Internacional Socialista. Estou convencido que esse caminho de proximidade será cada vez mais produtivo e a nossa presença neste congresso e a nossa saudação neste congresso é justamente para aqui testemunhar a garantia desse caminho novo de proximidade, de afetividade, de colaboração e de luta comum”.

Diz o DN, que assistiu ao congresso, que César acrescentou que “o líder do MPLA e Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, é uma figura referencial da história angolana e da emancipação africana”. Helder Amaral, em nome do CDS (Paulo Portas estava também, mas como “convidado pessoal”, e não falou), explicou que o seu partido estaria mais próximo do MPLA, com “muitos mais pontos em comum”, desejando “fortalecer essa relação”. Dois vice-presidentes do PSD, Teresa Leal Coelho e Marco António Costa, abrilhantaram a cerimónia, bem como Rui Fernandes, membro da comissão política do PCP.

Pois é. O que ninguém pode agora dizer é que não se sabia de nada. Mais se vai descobrir, mas surpresa é que não será. Foi roubo e não foi o mordomo.»

Francisco Louçã