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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O colapso climático contado pelo capitalismo europeu

por estatuadesal

(João Camargo, in Expresso Diário, 22/09/2020)

A apresentação do Estado da União da presidente da Comissão Europeia na semana passada, apesar de aclamada por muitos euroingénuos, não provocou em Portugal grandes reacções. De quem esperava um plano, o famoso “European Green Deal”, que respondesse à crise climática, apareceu o que é costume: optimismo tecnológico irrestrito, ilusionismo e contas erradas. Cantar vitória no campo da crise climática quando as contas são cortar 55% das emissões de 1999 até 2030 é rejeitar a ciência.

Não é seguramente fácil ter de fazer o diagnóstico calamitoso da economia capitalista europeia (mundial na verdade), da degradação ambiental, social e política e, ainda assim, anunciar uma sucessão de iniciativas que vão ultrapassar estas as dificuldades e fazer florescer o lucro de privados sem destruir os estados sociais, quem trabalha e o ambiente do qual dependemos. No entanto, foi esse jogo de luzes que Ursula von de Leyden teve que montar na semana passada, para prometer aquela que foi chamada de “ambiciosa” agenda para o pós-COVID europeu. Sendo um longo discurso, muito de interessante foi dito, como o pedido em 2020 que todos os Estados passem a ter salários mínimos, a esperança que no futuro os Estados cumpram leis (apesar das várias experiências fascizantes) ou a promessa da União dos Mercados de Capitais e a União Bancária para transformar a União Europeia no casino capitalista agora, quando os Estados terão de resgatar a quase totalidade da actividade económica. Cada vez mais o discurso público político europeu é expressão de alienação absoluta, mas é de destacar a audácia do pensamento irracional no que diz respeito ao combate às alterações climáticas.

Segundo van der Leyden, “temos mais provas de que o é bom para o clima é bom para os negócios e é bom para nós todos”. A frase, uma sucessão de absurdos, é a formulação necessária para conseguir chegar ao fim do discurso historicamente alienado. É uma frase que faz tanto sentido como dizer que “temos mais provas de que o que é bom para um condenado à morte é bom para um carrasco e para a multidão que assiste à execução”.

A presidente da Comissão afirmou que o Negócio Verde Europeu é o plano para a transformação necessária para ter mais espaços verdes, ar limpo e saúde mental e física. No entanto, o aprofundar da explicação tornou bastante claro que, em termos climáticos, o plano não responde sequer ao previsto no Acordo de Paris: travar o aumento de temperatura abaixo de 2ªC, idealmente nos 1,5ºC, até 2100.

As contas são relativamente simples: segundo relatório de 2018 do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas, é necessário cortar 50% das emissões globais de gases com efeito de estufa até 2030, comparando com o ano de 2018. O que nos propõe então van der Leyden?

- Neutralidade de carbono até 2050. Porquê focar em cortar emissões, quando se pode criar um pacote em que os sumidouros de carbono aparecem magicamente para “anular” as emissões (através da tecnologia de captura e armazenamento de carbono que não funciona, de plantações florestais por todo o lado como se os incêndios não cubrissem cada vez maiores áreas e até - isto foi mesmo dito no discurso - a construção civil tornar-se num sumidouro de carbono), e até 2050, porque as datas não contam para nada e 2050 é mais bonito que 2030.

- Cortar 55% das emissões de gases com efeito de estufa na União Europeia até 2030. Este parecia ser o grande trunfo, e até parece à primeira vista ser mais ambicioso do que a ciência exige. No entanto, há malabarismo. A UE promete cortar 55% das emissões usando como ano base 1990 e não 2018 ou 2020. Como as emissões internas baixaram 25% desde 1990, o truque só serve para enganar quem quer ser enganado. Usar percentagens em vez de valores concretos de emissões é uma excelente maneira de criar as confusões necessárias para não travar o colapso. Em 2030 a União Europeia deve poder emitir perto de 0,9MT de dióxido de carbono equivalente, mas a proposta de van der Leyden é emitir 2,5MT, uma erro de 170% e a composição química da atmosfera não terá flexibilidade política para negociações. Além disso, se justiça histórica significasse alguma coisa para a Comissão Europeia, teriam de ser cortadas muito mais do que os 50%, já que a responsabilidade histórica da Europa pela emissão de gases com efeito de estufa é muito superior à da grande maioria dos países do mundo.

- Que o combate às alterações climáticas se torne um hub para todos os entusiasmos tecnopositivistas (partilhados pelo governo português), com tecnologias como o hidrogénio a ser apresentadas como panaceias de que é possível manter o capitalismo e travar o colapso climático. Como apogeu, descobrimos que uma fatia do dinheiro do Negócio Verde Europeu, cujo principal objectivo é a descarbonização, irá para o gás, outro combustível fóssil que recebe uma linha de crédito público para acelerar ainda mais a corrida para o precipício.

A Comissão Europeia confirma uma vez mais que usa a acção climática como ferramenta de propaganda política para agradar a progressistas distraídos e cativar novos empreendedores e investidores. As meias medidas na crise climática são inúteis e, uma vez mais, a Comissão Europeia mostra como as instituições da elite do capitalismo mundial são o maior entrave à acção climática e à justiça social que podem travar o colapso climático. Por isso mesmo, importa recordar que dia 25 de Setembro as greves climáticas voltarão às ruas por todo o mundo, contestando esta impotência e contrapondo a sua força social, que no dia 5 de Outubro, em Portugal, os Anticorpos organizam uma acção de desobediência civil de massas e que, em Novembro será assinado na Escócia e por todo o mundo o Acordo de Glasgow, que pretende levar o movimento global pela justiça climática para uma nova etapa organizativa. Outra história tem de ser contada.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Liberdade vigiada ou o "novo normal"

Posted: 21 Sep 2020 03:59 AM PDT

Liberdade vigiada ou o "novo normal" «Nesses dias, quando ligávamos a televisão, surgia no canto superior ou em rodapé a injunção maior: Fique em casa! Qualquer que fosse a dimensão do nosso medo, para aqueles que tinham habitação com condições mínimas de vida e trabalho não essencial à sobrevivência comum abria-se um tempo diferente dentro do tempo.

Essa suspensão da ordem do tempo, da sua regulação e das suas rotinas, das suas imposições e da sua previsibilidade, trouxe-nos um sentimento que acompanha os grandes momentos de crise, as guerras como as catástrofes, a angústia de perder as referências do quotidiano e ficar de repente sozinho em frente de si próprio. O famoso paradoxo de Sartre "nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã" descreve essa situação em que, num mundo que não oferece mais qualquer segura referência que nos enquadre, somos obrigados nós próprios a assumir a liberdade das nossas escolhas de vida e a plena responsabilidade por essas escolhas. Há nesses momentos uma angústia pela perda de identidade misturada com uma estranha sensação de férias.

Muitos tiveram de viver com o seu núcleo familiar numa coexistência estranha, porque permanente e incontornável; muitos tiveram de enfrentar a mais dura e desumana solidão. A subsistência para muitos estava longe de estar assegurada. A vida endurecia dia após dia.

Nesse momento tornou-se evidente para todos que não era a mão invisível dos mercados que nos ia salvar, mas que era antes o Estado, o mais frio de todos os monstros frios, no dizer de Nietzsche, que poderia fazer alguma coisa por nós.

E fez. Bem ou mal, convictos ou em negação, muitas vezes mais em cacofonia do que em solidariedade, os Estados foram assumindo responsabilidades e construindo respostas. Até a União Europeia conseguiu moderar temporariamente o apetite voraz dos chamados "frugais" pelos juros da dívida futura e abrir caminho para a criação de novos mecanismos de cooperação. Como em todas as grandes crises, não foi através da fábula das abelhas de Mandeville (cada um prossegue o seu interesse privado e é na conjugação desses interesses que se estabelece o interesse comum) que se pôde enfrentar a situação, mas sim através dos meios, militares ou financeiros, materiais ou humanos, de que um Estado ou um conjunto de Estados possa dispor.

Se, como defendia a Sra. Thatcher, não existisse such a thing as a society, o mundo seria para os vírus e não para nós.

Mas porque parece que vamos passar a viver numa liberdade condicionada a que chamam o novo normal, é preciso que os Estados não esqueçam até que ponto estão a desfigurar e a desnaturar a vida humana com a aplicação cega das regras sanitárias. A revolta decorrente dessa situação antinatural, em que só a aglomeração no trabalho é legítima e é ilícita a festa, irá constituir um perigosíssimo risco para a coesão social, que não pode ser subestimado.

Só se pode desejar que, como achava Descartes com algum otimismo, o bom senso seja realmente a qualidade mais bem partilhada pelas gentes.»

Luís Filipe Castro Mendes

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Emergência exige negociação

Posted: 20 Sep 2020 03:15 AM PDT

«No contexto da gestão dos impactos da pandemia e em nome de políticas de emergência que facilitem a reorganização das empresas e serviços - no necessário incremento da retoma de atividades - o Governo vem impondo medidas de legislação laboral que estão a empurrar os sindicatos para fora do sistema socioeconómico e a aumentar a exploração dos trabalhadores.

Muito do trabalho essencial para o normal funcionamento da sociedade não tem o mínimo de segurança e é mal remunerado, mas isso não está a provocar um combate efetivo à precariedade e aos baixos salários; reconhece-se que o trabalho é central na sociedade, mas não se promove a sua dignificação e valorização. As turbulências e impactos imediatos da pandemia estão a ser aproveitados para justificar despedimentos, em muitos casos de forma oportunista, para agravar escandalosamente desigualdades, para impor unilateralmente formas de prestação de trabalho mais desprotegidas.

O Governo andou muito mal ao avançar com um diploma que possibilita às empresas promoverem unilateralmente (a consulta prévia é um simulacro) significativas alterações nos horários e organização dos períodos de trabalho das empresas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O tempo pertence às pessoas, que têm o direito e o dever de organizar a vida em todas as suas dimensões. E o princípio da conciliação do trabalho com a vida familiar e pessoal deve ser salvaguardado.

O Governo devia ter negociado com os sindicatos o diploma e, acima de tudo, tem o dever de garantir que as alterações a introduzir, em cada setor ou empresa, sejam obrigatoriamente negociadas. Todos temos consciência de vivermos tempos que exigem medidas excecionais e por vezes urgentes. Isso não dispensa o respeito pela efetividade da negociação. Pelo contrário, é nestes tempos difíceis e propícios ao aumento de vulnerabilidades que é preciso demonstrar a importância da partilha de responsabilidades e implementar compromissos equilibrados.

Quando os sindicatos são esquecidos, desvalorizados, marginalizados na elaboração da legislação laboral e lhes é diminuído o direito à negociação coletiva, a sociedade toda perde o contributo de competências e poderes estruturais e institucionais determinantes para proteger os trabalhadores, para induzir fatores de equilíbrio na reorganização das empresas e para influenciar positivamente a gestão, até tornando-a menos permeável a compadrios e corrupção. O Governo tem a obrigação de conhecer e assumir tais factos.

O Plano de Recuperação Económica que o Governo tem de apresentar na União Europeia, e de que o país precisa, corporizará inúmeros projetos de investimento estruturantes, envolvendo empresas privadas e subsetores do Estado. Em todo este processo os sindicatos não podem deixar de ser chamados a participar e têm de preparar-se para isso. As opções quantitativas e qualitativas quanto ao emprego ou as condições sociais inerentes ao trabalho digno devem estar sobre a mesa desde o primeiro momento das discussões.

Fala-se muito da digitalização da economia e da Administração Pública que vai acontecer, mas esquece-se que os instrumentos de trabalho devem ser negociados quando são introduzidos. O mesmo se passa com o incremento do teletrabalho, que traz problemas novos para as relações de trabalho a necessitarem de verdadeira negociação.»

Carvalho da Silva

domingo, 20 de setembro de 2020

Mais 4 anos de Trump serão fatais para a ordem constitucional americana

Afirma no livro que os EUA e o mundo não aguentam mais quatro anos de Donald Trump. Qual é o grande problema?
Os problemas das organizações internacionais são anteriores a Trump. O que ele faz de uma maneira abrupta é esvaziá-las financeira e politicamente. Para as recuperar é preciso reinvestir e dar-lhes capital político. Joe Biden tem essa predisposição mas vai precisar de um alinhamento com as bancadas do Congresso. Diria que mais quatro anos de Trump podem ser fatais para a ordem constitucional americana. Ela já está em choque, com a arbitrariedade do poder, com um presidente que incita quase à violência, que acomoda todo o tipo de anarquia, desde milícias a entrar em parlamentos estaduais e a fazer policiamento nas ruas, não condena toda a violência, só parte. Olhamos para a Casa Branca como um sítio que em teoria faça um discurso de paz social e não da guerra. Ele é exatamente o contrário, como Bolsonaro. Essa paz social, que não existe, morre de vez com mais quatro anos. Como o Partido Republicano neste momento não existe, é um culto, se vencer outra vez e garantir o Senado implica uma prepotência e uma cegueira no sistema que vai inviabilizar pontes com os democratas, quando elas são necessárias para qualquer pacote financeiro estancar a crise que se vive. Depois, vencendo, tenderá a fazer uma caça às bruxas brutal, metendo o pé em cima das oposições, seja os media, seja parlamentares democratas. Tem um fundo de autoritarismo que, se pudesse, fazia o que outros protoditadores fazem: dar um golpe na Constituição. Não estou a dizer que tem condições para isso, mas que teria vontade, que é do mesmo calibre. Isso é que é preocupante. Para nós também há uma grande pressão nas nossas democracias, que se estão a adaptar ao novo exercício do poder, com o mesmo tipo de narrativa. As tiradas de André Ventura surgem porque há uma legitimação internacional vinda do Brasil ou dos Estados Unidos para este tipo de retórica, é uma receita de sucesso. Mas precisa ser travada porque, quanto mais não fosse, a pandemia provou que estas pessoas com este tipo de exercício de poder são nefastas. Não é por acaso que os Estados Unidos e o Brasil estão no topo das infeções e das mortes.


Bernardo Pires de Lima

A hora das verdades

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/09/2020)

1 Agora, que a segunda vaga ou coisa semelhante já começou a abater-se sobre nós, vem aí o grande teste à capacidade de resistência de todos e, em particular, dos serviços de Saúde. Independentemente de não parecer haver ainda uma estratégia clara e preparada para fazer frente a este de há muito esperado novo assalto do coronavírus — e cujo planeamento cabe ao Ministério e à DGS —, começa também a perceber-se que há hospitais, centros de saúde e lares que se estão a preparar por si e outros que estão sentados à espera de receber instruções. É claro que os primeiros se vão aguentar melhor, pois, como canta o Chico Buarque, está provado que quem espera nunca alcança.

2 E quem, como eu, contestou a realização da Festa do “Avante!”, embora em versão menor, nas circunstâncias actuais, não pode deixar de se espantar revoltadamente com o desplante com que, pela calada da imprensa e de todos, 50 mil peregrinos rumaram a Fátima em 13 de Setembro. E, se isto foi assim numa data que não tem tradição de multidões em Fátima, é de esperar semelhante ou pior a 13 de Outubro, data com abundante tradição de multidões. Eu sei que entre todos os poderes se cozinhou uma lei de excepção à medida dos interesses do PCP e da Igreja Católica, de forma a deixar de fora as respectivas celebrações litúrgicas. Mas há que ter algum respeito por todos nós, todos os outros que acreditam mais na ciência do que na fé e a quem todos os dias é repetido que depende do comportamento colectivo a salvaguarda de todos. Ouvir a directora-geral da Saúde dizer simplesmente “não creio” e “não é expectável” que, nestas circunstâncias, se voltem a reunir 50 mil pessoas em Fátima só pode ser um acto de fé peregrina. Anda a polícia a dispersar ajuntamentos de 15 jovens e depois vemos uma multidão de dezenas de milhares a acotovelarem-se, abençoados por uma lei de excepção e protegidos pelo temor reverencial dos políticos!

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

3 De visita ao Parlamento, o presidente do Novo Banco logo seguido pelo seu financiador encartado — o presidente do Fundo de Resolução — desembaraçaram-se, sem problemas de maior, das perguntas que uns impreparados deputados lhes quiseram fazer. É sabido, ou devia ser sabido de há muito, que os banqueiros falam uma língua diferente, que requer intérpretes qualificados e isentos e algum conhecimento daquele mundo opaco em que é tão fácil fazer passar o inexplicável pela coisa mais natural do mundo — do mundo deles. Assim, enquanto António Ramalho se limitou a justificar os inabaláveis prejuízos anuais do banco — cuja conta final há-de reverter sobre os contribuintes — com a descoberta de que os activos do “banco bom”, afinal, não valiam nada e por isso é que têm vindo a ser vendidos a preços de estarrecer, já Luís Máximo dos Santos, o supervisor das operações, declarou não ser o Sherlock Holmes para saber a quem são vendidos os activos do NB, nomeadamente, se a partes relacionadas com os seus próprios accionistas — questão esta que, como é fácil de perceber, está longe de ser despicienda. E, ao contrário do que o próprio NB faz com os seus activos, livrando-se deles a qualquer preço, numa estratégia definida como de cut loss ou “limpeza”, já ele recomenda vivamente que o Estado não se atreva a fazer o mesmo com o NB, antes pelo contrário — que continue a pagar tudo até ao fim.

Após dois dias de “esclarecimentos”, eu, que não percebo nada de banca, juntei apenas mais uma perplexidade à minha ignorância: então o NB perde dinheiro porque o património que herdou do defunto BES — casas, terrenos, fábricas — valia, afinal, muito pouco? Mas é essa a actividade principal de um banco — vender património dos clientes falidos? E, quando ele acabar, viverá de quê?

4 É perfeitamente adequada e justa a proposta de Rui Rio de mudar o Tribunal Constitucional (TC) e o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para Coimbra. Seria um passo concreto no sentido da tão falada descentralização, apoiada da boca para fora por todos. Porém, a fraqueza da proposta está na sua justificação: porque, diz ele, grande parte ou a maior parte dos juízes do TC e do STJ são de Coimbra, a “cidade dos doutores”. Logo, haveria menos um obstáculo a considerar, que seria o incómodo pessoal para os venerandos conselheiros. E, assim o justificando, Rui Rio, sem querer, põe o dedo na ferida: é aqui que reside justamente a grande resistência à descentralização administrativa do país. O que mexe o Estado português raramente são os seus interesses próprios, o interesse público que ele devia servir, mas sim os interesses particulares dos que o servem. No caso concreto, os funcionários do Estado não estão onde interessa ao Estado que eles estejam, mas onde lhes interessa a eles estar. Por isso é que, entre os muitos exemplos que se poderia arrolar, os médicos, com lugar garantido no Estado, não querem ir para o Algarve, ainda que com condições melhores do que na Grande Lisboa ou no Grande Porto e ainda que o Algarve não seja propriamente um lugar desagradável para se viver e trabalhar.

Nunca mais me esqueci de uma frase inspirada de Jorge Sampaio quando era presidente da Câmara de Lisboa e tropeçou numa discussão sobre o “centralismo do Terreiro do Paço”, enfrentando os argumentos habituais: que tudo tinha de passar por Lisboa e pelo Terreiro do Paço, sede omnipresente de todo o poder, de que Lisboa não abria mão nem por nada... E Jorge Sampaio, então a contas com o desespero de não conseguir convencer nenhum ministério a desamparar a praça mais bonita de Lisboa, abriu os braços e respondeu: “Mas querem levar daqui o Terreiro do Paço? Por favor, levem-no!”

Não é só o TC e o STJ que poderiam, sem prejuízo algum do interesse público, ser deslocados de Lisboa ou outros organismos do Estado serem igualmente deslocados do Porto. Já não estamos no tempo da mala-posta ou sequer da “carreira” — embora, de facto, em termos ferroviários, ainda estejamos no dealbar do século XX, graças à grande visão estratégica de sucessivos governos e governantes. Mas temos as tais auto-estradas, a internet, as videoconferências e agora a moda do teletrabalho. Não falando de ministérios, são inúmeros os organismos do Estado que poderiam e deveriam ser deslocados para cidades de média dimensão, cidades universitárias, cidades com pólos industriais e infraestruturas capazes: secretarias de Estado, direcções-gerais, institutos, juntas, laboratórios, oficinas e por aí fora. E porque é que não são? Porque quem lá está não se quer mudar — lembrem-se da humilhantemente falhada tentativa de mudar o Infarmed de Lisboa para... o Porto. Eu sei que os funcionários têm direitos que não podem ser ignorados e que há vidas estabelecidas num local que não podem ser mudadas sem transtorno. Mas esse não é um obstáculo intransponível, há maneiras de o contornar, desde que haja vontade política de o fazer. Desde que haja verdadeira vontade de descentralizar o país — o que eu duvido.

A Administração Pública portuguesa está montada de forma em que a ascensão profissional arrasta os funcionários para onde está o poder — para Lisboa, sobretudo, e, em parte remanescente, para o Porto, com os casos à parte das administrações regionais. Para subir na pirâmide é preciso ir-se aproximando de Lisboa e do Porto — e, uma vez lá chegado, ninguém quer voltar à terrinha, nem que seja como chefe. E, para tornar o sistema inexpugnável, o mesmo esquema é reproduzido dentro da estrutura dos partidos do poder, que gerações de nomeações partidárias tornaram a espinha dorsal dos quadros superiores da Função Pública. Uns e outros confundem-se e não querem arredar o pé de onde estão. É por isso — e apenas por isso, não se iludam — que PS, PSD e PCP (que ocupa o que resta do poder do Estado) congeminaram a tal regionalização, um embuste vendido ao país como a única “descentralização” possível.

Não é verdade, é uma grossa mentira. Descentralizar é, de facto, aquilo que Rio propõe agora, embora em versão minimalista: deslocar centros de poder. E não só: como disse Mao, não basta dar uma cana de pesca a quem tem fome, é preciso também ensiná-lo a pescar. Dar força a uma região, dar-lhe futuro, é transferir para lá centros de poder e centros de criação de riqueza: empresas, universidades, centros de investigação e capital humano qualificado. Mas não é isso que os regionalistas querem fazer. O que eles querem fazer é dar ocupação aos seus quadros partidários que não encontram lugar no Terreiro do Paço ou na Avenida dos Aliados — por isso é que o mesmo Rio e Costa já trataram de escolher entre ambos os presidentes das Comissões de Coordenação Regio­nal (embrião das sonhadas regiões) que supostamente serão depois “eleitos” pelos autarcas. Eles querem dar-lhes uma legitimidade política própria e autónoma que servirá para criar problemas onde eles não existem e, a seguir, despejar-lhes sacos de dinheiro, com o qual não saberão o que fazer. Já vimos este filme no passado: acaba mal.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia