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segunda-feira, 5 de abril de 2021

Uma vitamina por conceber

Posted: 03 Apr 2021 04:14 AM PDT

 


«Quando os meios de comunicação social anunciaram que os habitantes da longínqua cidade de Wuhan, na China, haviam sido atacados por um vírus, tomei conhecimento da notícia, com indiferença, em Goa, longe de imaginar que rapidamente iria transformar-se em pandemia.

Soado o alarme na Índia, na Europa, na América e no mundo inteiro, os sinos tocaram a rebate e as pessoas despertaram para o perigo real que a Covid-19 representava para a humanidade.

Com a conjugação de esforços dos cientistas e utilização de alta tecnologia, sem se olhar para os custos económicos, os laboratórios aceleraram o processo da descoberta de vacinas contra o corona vírus, fazendo surgir, recentemente, uma luz ao fundo do túnel com a anunciada possibilidade de elas poderem ser produzidas e distribuídas com brevidade.

Aguardada com ansiedade, a partir do início da vacinação e apesar de estar a ser processada em escala reduzida, muitos inconscientes e irresponsáveis do mundo inteiro comportam-se como se o problema já tivesse sido solucionado, relaxam na conduta preventiva, desrespeitam o confinamento, menosprezam as consequências extremamente gravosas que daí estão a resultar, esquecendo-se que o problema é de todos nós e não são os hospitais que poderão resolvê-lo se não tiverem a colaboração efectiva de toda a humanidade.

O mundo, por sua vez, respirou de alívio e a esperança iluminou os olhares apreensivos, como se a imunização com a vacina pudesse resolver as questões mais prementes do planeta que habitamos.


Efectivamente, com mais ou menos tempo, maiores ou menores sofrimentos, alterações comportamentais, invenções e reinvenções, avanços e retrocessos, esse vírus, se não for totalmente dominado, pelo menos será contido e as pessoas poderão viver sem terem a espada de Dâmocles apontada às suas cabeças na vivência quotidiana.

Resolvido o problema de Covid-19, com a vacinação em marcha para cobrir a maior parte da população mundial, as dificuldades que afligem a humanidade, agravadas ou alteradas com a pandemia, procrastinadas pelos decisores por terem deixado de ser prioritárias, mais cedo do que tarde irão irromper em força e apresentar-se-ão à luz do dia.

Face à previsível manifestação do estado de insatisfação popular, os promotores da globalização, seus principais beneficiados, pouco se importarão com o bem-estar dos povos e tudo farão para acumular ainda mais riquezas, tal como têm vindo a fazer ao longo dos últimos tempos.

Esses verdadeiros donos do mundo, quais sejam, os dirigentes dos grandes grupos multinacionais, industriais e financeiros, assim como os chefes das poderosas instituições internacionais, muitos deles fazendo parte do Grupo de Bilderberg, munidos da poderosa força económica, financeira e política de que dispõem, irão procurar influenciar os dirigentes dos Estados soberanos, coarctando-lhes a autonomia e obrigando-os a defender os seus interesses específicos.

Em resultado das políticas desenvolvidas por muitos desses senhores, - que apontam o lucro como prioridade das prioridades, sem se preocuparem com as suas consequências nefastas-, tem havido uma aceleração do aquecimento global, gradual descongelamento dos pólos, agravamento da poluição, chuvas torrenciais, calor excessivo, inundações, tornados e desastres naturais, em conjugação com outras calamidades.

Em vez de se preocuparem com o desmantelamento dos arsenais nucleares e lutarem em benefício da paz, produzem uma diversidade de produtos, incluindo armas, cada vez mais sofisticadas, e chegam a fomentar guerras fratricidas para poderem escoar o material armazenado, ou considerado obsoleto, sem se importarem com a provocação do êxodo das populações indefesas e migrações em massa.

Por essa razão, milhares de homens, mulheres e crianças são forçados a abandonar os seus lares, a galgar fronteiras e morrer à fome, perante a incapacidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas de pôr termo aos conflitos e o alheamento da grande parte dos concidadãos do mundo.

Nessas contingências específicas, criam-se condições perfeitas para o florescimento do racismo e xenofobia nos países de acolhimento.

Acontece também que, devido à degradação das condições de vida e à própria natureza humana, no plano do relacionamento individual e familiar, muitas vezes prevalece a ambição e o egoísmo em vez da fraternidade. Daí resulta o esfriamento de relações matrimoniais, seguido de incompreensão mútua por ausência de espírito de tolerância, chegando ao ponto de tornar insuportável a convivência dentro de casa e culminando as desavenças com violência doméstica e até assassinatos.

No plano social, como os ricos querem ser cada vez mais ricos, sem se importarem com a multiplicação do exército dos pobres, os seus cúmplices no poder procuram travar o levantamento dos esfomeados, distribuindo migalhas e confundindo solidariedade com esmola.

Dessa maneira, no plano político, a democracia, a liberdade, a igualdade e a fraternidade tendem a tornarem-se palavras ocas e vazias de conteúdo, contudo a democracia, apesar dos seus elevados custos, numerosos defeitos e contradições chocantes , continua a ser o melhor sistema político até hoje praticado.

Se esses e muitos outros males necessitam de um rol de vacinas preventivas e de medicamentos apropriados para casos patológicos, seria bom que a Índia, - grande produtora e exportadora de vacinas contra Covid-19, considerada a "farmácia do mundo" -, sozinha ou em aliança com os donos do mundo concebessem ao menos uma vitamina que possibilitasse a resolução de conflitos através da política de não-violência, como conseguiu Mahatma Gandhi, perdoar os carcereiros, como fez Nelson Mandela, trabalhar em prol do bem comum, como pede o Papa Francisco, e amar o próximo como ensina Jesus Cristo.»

sábado, 3 de abril de 2021

 

António Costa está mais forte e aumenta distância para Rui Rio

por estatuadesal

(Rafael Barbosa, in Jornal de Notícias, 03/04/2021)

Líder socialista bate o social-democrata por larga margem na adesão à personalidade e às políticas. Na avaliação de desempenho, António Costa tem 40 pontos de saldo positivo, enquanto Rui Rio está em terreno negativo. Na confiança para primeiro-ministro, vale o triplo do adversário à Direita, revela sondagem da Aximage para o JN, DN e TSF.


Três meses depois de um primeiro frente a frente, António Costa está mais forte, enquanto Rui Rio estagnou. O líder socialista não só passa incólume pela terceira vaga da pandemia, como amplia a vantagem para o social-democrata, de acordo com o barómetro da Aximage para o JN, DN e TSF. É assim em todos os parâmetros: na adesão dos portugueses à personalidade e às políticas de cada um; na avaliação ao desempenho enquanto líderes partidários; e, finalmente, quanto à confiança para primeiro-ministro, com Costa a acumular 36 pontos de vantagem sobre Rio.

Foi em dezembro que o barómetro ensaiou um primeiro teste alargado à popularidade dos líderes dos dois maiores partidos. E já então a diferença entre Costa e Rio era significativa. Três meses depois, o fosso alarga-se, graças à popularidade acrescida do atual primeiro-ministro.

Quando se mede o gosto pelos líderes e pelas suas políticas, o socialista solidifica a sua base (ou seja, a resposta com maior número de escolhas): são agora 40% os que apreciam simultaneamente a personagem e as suas ideias (mais três pontos do que em dezembro).

O crescimento é ainda maior quando se mede os que apreciam a pessoa, independentemente das políticas - são agora 61% (mais sete pontos). Mas cresce também a adesão às políticas, independentemente da avaliação pessoal - são 50% (mais dois pontos).

RIO COM BASE SOMBRIA

A exemplo de dezembro do ano passado, a base do social-democrata é mais sombria: 35% não gostam nem do líder nem das ideias que defende, um pouco mais do dobro dos que manifestam uma adesão total (16%).

Quando se somam as parcelas que permitem medir o apoio às políticas, independentemente da personalidade, o resultado de Rui Rio também é baixo: 28% (igual a dezembro). No caso do gosto pela pessoa, e independentemente das políticas, a situação é um pouco melhor: 41% (mais um ponto percentual).

Em qualquer dos ângulos de análise - preponderância na imagem pessoal ou nas políticas - o líder do PSD tem sempre saldo negativo. Mas há algumas exceções, quando se decompõem os segmentos da amostra: o saldo pessoal é positivo no Norte e na Área Metropolitana do Porto; entre os homens; e nos que têm 65 ou mais anos. Já no que diz respeito às políticas, só os eleitores do PSD lhe garantem um saldo positivo.

COSTA FRACO À DIREITA

No caso de António Costa, a norma é averbar um saldo positivo, tanto na adesão à personalidade, como às políticas, ainda que neste caso a margem seja estreita. Aliás, é apenas neste ângulo de análise que se encontram duas exceções negativas: entre os que vivem na região Centro; e os que estão no topo da escala social.

Quando se tem em conta as preferências partidárias, a história é outra. Entre os socialistas, a personalidade e as políticas de Costa têm um apoio quase unânime, sendo igualmente elevado à Esquerda. À Direita o cenário é mais sombrio, em particular entre os eleitores do Chega e da Iniciativa Liberal. O saldo é também negativo entre os apoiantes do PSD (mas pelo menos um em cada três apreciam as políticas do socialista).

Uma das características que se mantém, de dezembro para março, no caso de Costa como no de Rio, é que os portugueses mostram-se bastante mais generosos na avaliação das qualidades pessoais do que na adesão às políticas. Uma das notáveis exceções é o grupo de portugueses mais pobres que, tanto na avaliação ao socialista, como ao social-democrata, mostram mais apreço pelas políticas do que pelas personagens. No caso do líder do PSD, juntam-se os inquiridos com 18 a 34 anos.

AVALIAÇÃO MENSAL

Não é apenas na adesão à personagem e às políticas que António Costa está em vantagem sobre Rui Rio. Na avaliação ao desempenho, que o barómetro da Aximage mede todos os meses, o socialista também alarga a liderança: tem 60% de notas positivas e apenas 20% de negativas, ou seja, um saldo positivo de 40 pontos (mais onze do que em dezembro).

Ao contrário, o social-democrata permanece em terreno negativo, ainda que seja de apenas um ponto (três em dezembro): são quase tantos os que dão nota positiva (33%), como os que dão negativa (34%). Os mais generosos com Rio estão no Sul e no Norte do país. No caso de Costa são os que vivem nas áreas metropolitanas de Porto e Lisboa.

Este padrão regional de suporte a cada um dos líderes repete-se na confiança para primeiro-ministro. Mas, no resultado global, a diferença é abissal: Costa recebe o triplo (54%) dos "votos" de Rio (18%). O social-democrata tem ainda um longo e difícil caminho a percorrer, se de facto tem ambições a substituir o socialista na chefia do Governo do país.

Os mais velhos

Os cidadãos mais velhos (65 ou mais anos) são particularmente generosos na adesão às qualidades pessoais dos dois líderes - 70% para Costa e 54% para Rio. Mas também são os mais críticos das políticas do social-democrata - 73% não gostam.

Os mais pobres

Quanto mais pobres, mais os portugueses apreciam as políticas de Costa (dois terços). Ainda que num patamar mais baixo (pouco mais de um terço), são também os mais pobres os que valorizam as políticas de Rio.https://d012e0b005fe1d89d7721f09a3e8da3c.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

As mulheres

As mulheres são o ponto fraco do líder do PSD, na adesão à personalidade e na valorização das ideias: 50% não gostam da personagem, 62% contestam as políticas. No caso do líder socialista, há equilíbrio de género quanto às ideias e maior valorização das qualidades pessoais pelas mulheres.


Crise? Que crise?

Posted: 02 Apr 2021 04:09 AM PDT

 


«Ao desafiar o Presidente da República e a Assembleia da República com o envio de três leis que alargavam os apoios sociais ao Tribunal Constitucional, o primeiro-ministro abriu uma página nova na política recente. Pode admitir-se que esse passo tornará mais frágil uma estabilidade já de si precária; pode considerar-se que o confronto é insólito numa governação alicerçada na arte dos expedientes, na imaginação de soluções imprevistas, nos acordos de última hora e, obviamente, na criação de mitos como o famoso “virar da página da austeridade”. Mas estamos ainda longe de poder falar numa crise política grave. O que tem de ser tem muita força e nem o Presidente, nem o PS, nem as oposições desejam moções de censura, chumbos de orçamentos ou eleições antecipadas. O que sobra então deste incidente?

Ao exigir, e bem, o cumprimento estrito das normas constitucionais, António Costa recusou apoiar um precedente, mas abriu outro. Daqui para a frente, o Governo deixa de ter moral para adiar meses a fio a aprovação da Lei de Enquadramento Orçamental. Deixa de ter legitimidade para torpedear a Lei do Orçamento do Estado com cativações. Deixa de ter margem para ludíbrios como o da lei das 35 horas na função pública prometida e anunciada como não tendo custos para o erário. Se tudo for levado à letra, a oposição deixará de ter margem para tentar governar por leis da sua iniciativa e o Presidente razões para defender a estabilidade, a negociação e o compromisso a qualquer custo.

Para nosso infortúnio, porém, nada garante que essa maior transparência, exigência, escrutínio ou equilíbrio de poderes seja possível. Ninguém está interessado nisso. Porque a política em democracia não se faz com fórmulas matemáticas, ainda mais quando no poder está um Governo minoritário. Sem improviso e navegação à vista o Governo tem os dias contados. A “geringonça” foi o que foi e é o que é porque está na sua natureza ser incapaz de andar em linha recta. Se a forçarem a esse objectivo, cai. E se há um pavor no país e na classe política é que o Governo caia.

É por isso que o incidente desta semana significa muito, mas vale pouco. A crise vai agravar-se nas palavras ou na encenação. Mas, com a pandemia em curso, o plano de recuperação à porta, a fraqueza das oposições e o desejo profundo de Marcelo em ser o Presidente-rei que dá coerência ao modelo, o Governo está para durar, cambaleando ou não. Como terá perguntado o primeiro-ministro Jim Callaghan no auge do “Inverno do descontentamento” britânico de 1979, que abriu as portas ao poder a Margaret Thatcher: “Crise? Que crise?”»

A nossa condição zombie

 


por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 02/04/2021)

António Guerreiro

Muito antes da era zoom e da instalação do teletrabalho como regra geral, na qual entrámos em corrida forçada há cerca de um ano, já estava em acção o processo que nos transforma em zombies. Esta zombificação do mundo já estava latente numa fase anterior, quando ainda se preferia utilizar uma palavra da psiquiatria do século XIX, em vez de nomes inquietantes concedidos por filmes de género, e se falava de uma hipnose geral, isto é, dos poderes hipnotizadores, alucinatórios e fantasmagóricos dos media.

Basta, aliás, declinar a palavra media no singular, e dizer medium, para que a esfera do mediúnico seja evocada e entremos assim na ZAD dos fantasmas (ZAD: zona a defender): onde começa o mundo da medialidade começa também a dança dos fantasmas e dos mortos-vivos.

Antes de Baudrillard ter designado a “sociedade dos simulacros”, antes de Vilém Flusser ter definido as “tecno-imagens”, antes de Debord ter configurado a “sociedade do espectáculo”, antes da espectrologia do nosso tempo que até produziu leituras sofisticadas de Marx, Günther Anders descreveu longamente, no seu livro de 1956 sobre o ser humano como um ser antiquado (o título original é Die Antiquiertheit des Menschen; na tradução inglesa do livro, Antiquiertheit é traduzido por Outdatedness, e na tradução francesa, por Obsolescence), o modo como os media de massa nos condenam ao estatuto de zombies. É num capítulo intitulado Considerações Filosóficas sobre a Rádio e a Televisão que Günther Anders desenhou o “mundo como fantasma” e apontou o que ele entendia ser o principal efeito mediúnico da rádio e da televisão: o de fazer de cada consumidor “um trabalhador em domicílio, não remunerado, que contribui para a produção do homem de massa”. Noutro momento, Günther Anders utiliza a expressão “eremitas de massa”.

Talvez seja conveniente apresentar Günther Anders: filósofo e ensaísta alemão que viveu entre 1902 e 1992, o verdadeiro nome deste judeu alemão é Günther Stern. Foi o primeiro marido de Hannah Arendt (entre 1929 e 1937), que conheceu quando ambos eram alunos de Heidegger. Com a ascensão do nazismo, seguiu os passos de muitos outros intelectuais judeus: fugiu da Alemanha, em 1933, para Paris (foi aí que se divorciou de Hannh Arendt) e de Paris foi para os Estados Unidos, tendo regressado à Europa em 1950. A sua obra só a partir do início deste século começou a ter uma forte projecção. O teor apocalíptico dos seus textos sobre a ameaça da bomba atómica, no tempo da guerra fria, assim como as cores negras com que pintou o progresso da civilização técnica, fizeram com que fosse muitas vezes assimilado ao pessimismo cultural que tinha tido uma forte expressão na Alemanha, após a Primeira Guerra. Mas Günther Anders não pertenceu de facto a essa constelação que também albergou alguns representantes da “revolução conservadora”, um ambiente político-cultural do qual Anders sempre esteve distante.

Lido hoje o livro mais importante da obra de Günther Anders, as suas teses e intuições parecem análises e descrições do nosso presente mais imediato. “ A nossa normalidade é uma história de fantasmas”, escreveu ele, para a seguir acrescentar: “Muitos habitantes do mundo real já foram definitivamente vencidos pelos fantasmas e são já reproduções de fantasmas”. É provável que as teses de Anders só recentemente tenham chegado ao momento em que se tornaram legíveis. A condição zombie, na época do zoom e do teletrabalho, deixou de ser um cenário especulativo. Mas entre o mundo de Anders e aquele com que estamos confrontados há uma linha de continuidade e de ascensão progressiva do zombie. No início deste século começou-se a assistir em várias cidades do Estados Unidos a marchas de indivíduos mascarados de zombies, de “corporate zombies”, que pareciam paradas carnavalescas. Numa delas, em Wall Street, os manifestantes (silenciosos, sem pronunciar qualquer mensagem) mascaram notas de banco do jogo do Monopólio, parodiando a pulsão nutritiva do capitalismo financeiro. O filme de George Romero, A Noite dos Mortos-vivos , parece ter servido de inspiração a este “povo zombie” que foi mais longe do que o simples “Occupy Wall Street”. A palavra de ordem desta massa zombie era “Occupy everything”.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Presos até quando?

Posted: 01 Apr 2021 03:53 AM PDT

 


«Há umas semanas, perguntei no Twitter por que razão os residentes dos lares de terceira idade, mesmo depois de vacinados com as duas doses, continuavam sem poder abraçar os seus familiares. Qual o motivo para a distância higiénica imposta, além de várias outras restrições? A resposta foi rápida. A vacina protegia os velhos, mas não os impedia de contaminar as visitas. Nem valia a pena argumentar que isso era problema da visita, imediatamente respondiam que se tratava de um problema de saúde pública e não individual. Ou seja, fechámos os velhos nos lares para os proteger. Agora, mantemo-los fechados para nos protegermos deles. A inversão moral, que penaliza os mais frágeis da nossa sociedade, não parece incomodar ninguém.

Até ao momento, as vacinas da covid demonstraram ter 100% de eficácia contra casos graves. O medo propagado por tantos de que a vacina não protege contra a infeção e, consequentemente, contra o contágio não tem sustentação a não ser a paranoia de se estar sempre a pensar em tudo o que pode correr mal. Perante estes dados, é simplesmente incompreensível que a política de visitas aos residentes nos lares de terceira idade esteja, no essencial, igual ao que era há um ano.

Muito corretamente, a prioridade na vacinação foi para os lares. Neste momento, todas as pessoas que vivem ou trabalham em lares já terão sido vacinadas com duas doses. Isso quer dizer que é seguro fazer visitas. Não só não há qualquer perigo de provocar um surto seguido de mortandade num lar — a vacina tem 100% de eficácia contra casos graves, vale a pena relembrar —, como as possibilidades de as visitas serem contagiadas pelos velhos são também diminutas. As vacinas de RNA, que foram as aplicadas nos lares, mostram ter uma eficácia de 90% mesmo contra infeções ligeiras.

Como se justifica então que as regras se mantenham? Continuam as restrições à proximidade física durante as visitas e continuam as proibições relativamente a visitas das crianças. Nunca tendo eu concordado com todas estas restrições, ao menos entendia-as. Neste momento, já nem isso. Não percebo em nome de que princípio continuo sem poder tocar no meu pai há um ano. Não percebo por que motivo impedem o meu pai de ver as netas ao vivo, ficando relegadas para um ecrã de um telemóvel. E, felizmente, onde está, tem rede de internet razoável. Mas já se fez algum levantamento para saber quantos lares não têm condições tecnológicas para visitas virtuais? De que tenha conhecimento, não.

Em Portugal, convencionou-se que as pessoas estão em lares porque a família não quer saber delas, porque olham para os velhos como um encargo, porque a lufa-lufa diária não deixa tempo para manter o tecido familiar intacto. O que temos observado é o exato oposto. Há cerca de um ano que quem tem famílias em lares se queixa do regime draconiano imposto. Já foram denunciadas ene situações absurdas. Desde pessoas com demência que, por causa da falta de contacto com os familiares, veem a sua situação clínica agravada. Velhos que nem sequer podem sair para dar o tal passeio higiénico que parece essencial para tanta gente, ao ponto de estar previsto nos decretos-leis dos estados de emergência. Há precisamente seis meses, denunciei nesta coluna a situação de um homem em estado de demência avançado, cego e sem mobilidade que, no seu lar, deixara de receber visitas da filha. Deixou de o poder tirar do lar nos feriados e nos fins de semana. Nas suas palavras, era ela “que o mantinha vivo”.

Como é que as regras se mantêm quando estão todos vacinados? Qual é a lógica? Só há uma resposta: apesar de tantas denúncias dos familiares, a sociedade não quer saber. A resposta às denúncias nunca passa de um encolher de ombros e de uma declaração pesarosa: compreendo, mas tenho pena.

Quando, no Natal passado, os velhos foram obrigados a passar os dias festivos trancados nos lares — acompanhados por profissionais dedicados, sublinhe-se — , muitos familiares fizeram vídeos para serem mostrados na Consoada. Em muitos desses vídeos estava presente uma esperança: já há vacina. Daqui a pouco serão vacinados e poderemos voltar a abraçar-nos. Mas os meses passam e nem se fala no assunto.

Estamos em abril e discutimos o Plano de Recuperação e Resiliência. A reabertura das escolas. A vacinação dos profissionais do ensino. A testagem maciça. A constitucionalidade dos apoios sociais aprovados na Assembleia da República. Enquanto isso, os velhos nos lares estão esquecidos. Há assuntos mais importantes, como a criação de passaportes sanitários que nos permitam passar férias onde quisermos sem grandes engulhos.»