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segunda-feira, 18 de março de 2024

 

 A esquerda, as eleições e a guerra na Ucrânia

estatuadesal

17 de Março de

(Whale project, in Estátua de Sal, 16/03/2024, revisão da Estátua)


(Este artigo resulta de um comentário a um texto que publicámos, de Miguel Castelo Branco, sobre o envio de 100 milhões de euros para a Ucrânia, (ver aqui). Pela sua atualidade resolvi dar-lhe destaque.

Estátua de Sal, 17/03/2024)


Se as eleições tivessem sido em Março, ou em Abril de 2022, tinha sido pior ainda.

O Bloco de Esquerda, após a Guerra do Iraque, tratou de arrepiar caminho e engolir todas as narrativas do Natostão.

Foi assim na campanha de destruição da Líbia, foi assim na Síria, foi assim até com uma certa justificação do acho meio tresloucado do Trump ao assassinar o General iraniano Qasem Soleimani. Afinal de contas, garantiam os bloquistas, o homem não tinha feito nada pela democracia. Presumo que isso justificaria alguém ser assassinado. A esse título, metade da população mundial poderia ser morta.

Na guerra da Ucrânia trataram de manifestar, desde a primeira hora, a solidariedade sem reservas aos pobres ucranianos e a condenação total da Rússia.

Foi assim que conseguiram evitar os ataques cerrados dos comentadeiros a soldo da hierarquia e manter o seu eleitorado. Afinal, não vem mal ao mundo num partido que defende os pobrezinhos e uns salários mais decentes, mas não toca nas grandes narrativas dominantes.

Ora, o que o Partido Comunista disse acabou por não ser muito diferente do que disse o Papa Francisco, quando referiu que, talvez isto não tivesse acontecido, se a NATO não andasse a ladrar às portas da Rússia. E tratou de ressalvar que em nada se identifica com o regime oligárquico de Putin, mas que era preciso reconhecer que havia forças sinistras na Ucrânia - nomeadamente nazis -, e que um país como a Rússia - que muitas vidas perdeu para o nazismo -, devia sentir-se ameaçado, já que a NATO tudo fez para que a guerra acontecesse. Em nenhum momento o PCP deu qualquer apoio expresso ou tácito à invasão russa, apenas disse que a dita não nasceu do nada, mas sim de um processo de provocação que começou, pelo menos em 2014.

Claro que, como esse partido é uma verdadeira pedra no sapato da oligarquia que nos faz perder direitos todos os dias, a nossa comunicação social, detida pelos nossos oligarcas, tratou logo de arregimentar os comentadeiros para fazer a colagem e criar a identidade, comunistas = putinistas. E, tal era tanto a verdade e ficava provado, por o Partido Comunista Russo ter apoiado a invasão. A sério, houve quem dissesse isso.

O que não deixa de ser caricato. A invasão russa foi-nos vendida como um ato solitário e tresloucado de um homem que se sabia à beira da morte por cancro, e queria, de algum modo, ficar na História. Mas depois já os comunistas portugueses deviam pagar porque os comunistas russos tinham apoiado a suposta decisão tresloucada e solitária de Putin. Aí, já não era suposto, até terem tido medo de serem mortos por aquele temível envenenador.

Ora, no caso dos comunistas russos, e de todos os outros partidos com assento na Duma, em Fevereiro de 2022 toda a gente sabia que haveria uma grande invasão ao Donbass. Dirigentes banderistas prometiam o massacre de pelo menos um milhão de pessoas e a expulsão das restantes para a Rússia.

E, desde 16 de Fevereiro de 2022, a coisa estava bem encaminhada. A artilharia começou a atacar forte e feio e as explosões chegaram a ser reportadas pelos nossos media como festejos com fogo-de-artifício, pelo facto de Putin finalmente ter reconhecido a independência daquelas regiões da Ucrânia.

A verdade é que nenhum partido russo - por muito amante da paz que fosse, ou se afirmasse -, queria ter às costas o ónus da morte de um milhão de pessoas, violações, torturas, expulsão dos sobreviventes e todas as malfeitorias provocadas pelo modo de atuação já demonstrado pelos bandeiristas. Seria um saldo mortal para qualquer partido, e até para Putin, que talvez enfrentasse aí a revolta popular e militar que nós tentamos instilar com as sanções.

Eu queria ver o que faria o garnisé cantante Macron, o cara de pão ralo do Scholz, ou até a senhora de cabelo lambido Van der Pfizer, se se vissem ante a possibilidade de enfrentar, em tempo curto, um pelotão de fuzilamento ou o fundo da Sibéria. Talvez tratassem de renunciar e deixar a outro o pepino.

Por cá, o PCP foi logo vilipendiado e mais ainda quando, no 25 de Abril, os deputados comunistas não quiseram engolir o sapo de ouvir o que o liberticida Zelensky - que por lá, na Ucrânia, atacava os comunistas com a fúria dos nazis -, tinha a dizer na nossa casa da democracia. Justamente no dia em que festejávamos a queda de um regime, semelhante ao que ele instituiu na Ucrânia, já antes da invasão russa. Esta, deu lhe o mote para avançar mais ainda, ilegalizando tantos partidos - ao que consta, doze -, mas já antes opositores desapareciam, eram assassinados em plena rua, tinham de fugir para a Rússia ou iam malhar com os ossos na cadeia. Cadeias, que são muito más para a saúde e, onde as mortes são tantas, que é preciso cremarem os mortos.

Pois foi este traste que os deputados bloquistas ficaram a ouvir, enquanto os deputados comunistas trataram de se poupar da azia de ficar a ouvir o carrasco dos comunistas ucranianos. Mas, aos bloquistas, não fez nenhuma mossa o destino dos esquerdistas ucranianos. Já para não falar de outras minorias para eles tão queridas.

São escolhas e, temos de concluir que em termos de ganhos eleitorais, a escolha bloquista, desde a destruição da Líbia, é a mais acertada. Esta escolha contribuiu, em muito, para os comunistas serem mais uma vez os maus da fita, só faltou o comem criancinhas.

Assim, até tivemos um fascista ucraniano a pedir, em direto na televisão, a ilegalização do PCP e a perguntar como é que era possível ainda haver em Portugal um partido comunista, sem que ninguém, mesmo à esquerda, o mandasse para a senhora mal comportada que o desovou. Nas rodas de bêbados, de onde certamente saíram muitos dos votos do Chega, ouviam-se, desde pedidos da tal ilegalização, até à deportação para a Rússia de todo aquele que fosse militante comunista. Em frente a algumas sedes do PCP foram colocados verdadeiros altares em homenagem às vítimas da guerra na Ucrânia, na Ucrânia ocidental, bem entendido, as paredes pintadas com slogans de todo o tipo. E, como se viu, a campanha resultou em pleno. Claro que alguma coisa falhou na campanha comunista, que nunca conseguiu desconstruir esta narrativa aldrabona e nefasta.

Mas se o PCP ainda teve alguma votação foi mesmo porque as pessoas começam a estar fartas da Ucrânia. Sonharam com uma guerra rápida e agora veem- se perante um conflito que ninguém arrisca dizer como acabará. Estão fartas de perder dinheiro e direitos porque é preciso ajudar a Ucrânia. Não fosse isso e, talvez, tivessem tido o mesmo destino que o CDS teve nas eleições de 2022.

Destino que os comentadeiros continuam a vaticinar: "Ainda não foi desta que corremos os comunas do Parlamento, mas para a próxima é que é". A ver vamos, como diz o cego.

sábado, 16 de março de 2024

 

Mandem mais dinheiro para a Ucrânia e depois queixem-se…

estatuadesal

16 de Março de

(Miguel Castelo Branco, in Facebook 15/03/2024)

(É por estas e por outras que o descontentamento grassou no país, tendo sido habilmente explorado pela extrema-direita para alavancar a sua meteórica ascensão eleitoral. É que, se o dinheiro vai para a guerra e para fomentar a morte, não vai para o SNS, a escola pública, as estradas, os médicos, os professores, os polícias, etc. E uma dúvida: estando este governo em gestão corrente, tem competência para tirar dos bolsos dos portugueses tão choruda quantia, ainda mais para a dar a nazis corruptos?

Estátua de Sal, 16/03/2024)


Portugal oferece à Ucrânia mais 100 milhões para a aquisição de munições contratadas a terceiros.

Importa lembrar que o novo grande hospital de Lisboa Oriental custará 390 milhões, um Airbus A320neo, para a renovação da frota da TAP, orça os 100 milhões, um F16, 65 milhões, um cacilheiro 25 milhões, um Canadair de combate a incêndios, 3 milhões e uma escola secundária média, construída de raiz e equipada, não ultrapassa 1.7 milhões.

Não há no Parlamento quem se erga e proteste sem titubeio pelo desbaratar da riqueza nacional angariada em impostos e sacrifícios?

Não há no Parlamento quem confronte o Governo por alienar o erário público em benefício de um Estado terceiro que não pertence à NATO, nem à UE? Este potlach tem de acabar.

 

Cães que ladram muito à porta de casa, mas…

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16 de Março de

(Carlos Matos Gomes, in Facebook 15/03/2024)

A notícia do dia em termos internacionais é a reunião de um trio europeu constituído pelo presidente francês e os primeiros-ministros da Alemanha e da Polónia para discutirem a ajuda europeia à Ucrânia para esta vencer a Rússia. A História não ensina a decidir o presente, mas pode acontecer que existam antecedentes que aconselhem cautelas. As mais fortes tentativas da Europa Ocidental ir desafiar o urso russo à sua toca foram as de Napoleão em pessoa, no século 19 e a de Hitler, através do seu marechal de campo Ernest Paulus repetirem o desastre no século 20. Napoleão, o grandioso derrotado, repousa nos Invalides, em Paris, Paulus, o triste derrotado alemão, que se rendeu e depois foi julgado em Nuremberga acabou por morrer em casa e está sepultado em Baden Baden.

Nem Macron, nem Schulz, nem Trusk são cromos repetidos. Nem querem atacar a Rússia. A Rússia e o apoio à Ucrânia para a guerra de desgaste da Rússia são apenas pretextos para cada um dos membros do trio jogar os seus interesses. A França quer disputar com a Alemanha o papel de potência líder na Europa, um papel que os Estados Unidos, o mestre do jogo, atribuiu à Alemanha e que esta, queira ou não, tem de representar. A Polónia conhece a fraqueza da França - sempre magnificamente derrotada -, que na Segunda Guerra foi incapaz de cumprir o compromisso de defender a Polónia em caso de ataque alemão. A Polónia conhece o interesse da Alemanha pelo domínio do seu território e da sua economia, e tenta compensar o apetite alemão com a França e, fundamentalmente, com o apoio dos EUA.

Os milhões de euros e os milhões de munições para a Ucrânia são fichas lançadas para a roleta em que a França e a Alemanha estão a jogar. Sendo certo que o dono do casino são os EUA.

O palavreado agressivo contra Putin e as eleições que os órgãos de propaganda utilizam são reveladores da fraqueza dos jogadores. A Europa está a dar muito mais importância à Rússia do que esta dá à Europa, que para a Rússia deixou de contar.

Em resumo, a Europa está reduzida ao papel dos cães que ladram muito à porta de casa e fogem mal são ameaçados.

Quanto aos cidadãos europeus, vão pagar munições que um dia lhes podem cair sobre a cabeça. Para já, têm conseguido enviar as suas máquinas de guerra para serem transformadas em sucata na Ucrânia... O trio dos ponta de lança da Europa quer passar a uma fase seguinte, lutando entre si, fingindo que estão a lutar contra a Rússia...

É um número arriscado para os cidadãos europeus. Os três dirigentes europeus são representantes de três grandes derrotados... Estão como a cavalaria polaca a atacar blindados com uma carga a cavalo de sabre desembainhado...

 

Golpe de Estado

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15 de Março de

(José Goulão, in AbrilAbril, 12/03/2024)

Um golpe de Estado não acontece apenas quando esbirros de um qualquer Pinochet, movidos pelos fascistas do neoliberalismo económico, instauram um regime político militarizado para que um país e o seu povo sejam despojados de vidas, bens e direitos. Golpe de Estado é também aquilo que está a acontecer em Portugal desde 2022 (...).


Não é hora de rodriguinhos, de tiradas politicamente correctas, de hipérboles linguísticas, de palavras mansas. O que aconteceu durante os últimos meses teve um desenvolvimento dramático no domingo 10 de Março, e consumou um golpe de Estado; abrem-se problemas e situações ainda mais nefastas para o povo português.

Um golpe de Estado não acontece apenas quando esbirros de um qualquer Pinochet, movidos pelos fascistas do neoliberalismo económico, instauram um regime político militarizado para que um país e o seu povo sejam despojados de vidas, bens e direitos. Golpe de Estado é também aquilo que está a acontecer em Portugal desde 2022, através de interferências desnecessárias no chamado «regime democrático». Se é ou não é plenamente democrático sabemos perfeitamente que não, mas deixemos por ora isso de lado para posteriores considerações.

Sem qualquer carga simbólica, mas porque este desfecho é perseguido há 50 anos, com rampa de lançamento em 25 de Novembro de 1975, o afilhado do último ditador abriu terreiro para que as bestas derrotadas em 25 de Abril de 1974 voltem a ter poderosas rédeas de poder em Portugal.

Em duas eleições que decidiu ordenar à revelia dos portugueses e de quaisquer normas democráticas, o venerando Chefe de Estado, espécie de Thomaz com a agravante de ter capacidade de intervenção determinante nos centros de decisão, deu asas ao fascismo lusitano permitindo a multiplicação por 27 das representações dos seus heterónimos na Assembleia da República, bastante mais semelhante agora a uma Assembleia Nacional. Se o leitor não fez as contas saiba que a IL, o salazarismo snob, cresceu oito vezes, de um para oito deputados, em 2022, mantendo agora esse grupo: o salazarismo caceteiro, tão acarinhado pelos meios de intoxicação social levando em triunfo o trauliteiro da bola reconfigurado em picareta falante sob os sorrisos babados de oligarcas e especuladores domésticos e estrangeiros, cresceu doze vezes em 2022 e quadruplicou a sua representação no passado domingo, atingindo 48 deputados. 

Entre eles vêem-se operacionais e herdeiros do banditismo de 1974 e 1975 que assassinaram democratas e destruíram bens e instalações de partidos democratas, principalmente do Partido Comunista Português, alvo principal da sua sanha e também inimigo a abater pela cáfila de comentadores e analistas, deuses infalíveis da opinião única que chocam com desvelo os ovos da besta fascista. Caceteiros, admiradores, amigos e seguidores dos envolvidos na vaga terrorista de 1974 e 1975 são agora respeitáveis «eleitos», «senhores deputados» que, por muito que haja juras de serem mantidos à margem dos círculos governamentais – diz o povo que quem mais jura mais mente – são figuras que nunca deixarão de se fazer convidadas em cada recanto por onde se move a renovada classe política. Além de integrarem a miríade de cenários políticos que a comunidade informativa, opinativa e censória vai obrar com fartura durante uma cegada que parecerá interminável.

25 de Novembro 2.0

O núcleo duro do 25 de Novembro de 1975, aqueles que queriam verdadeiramente o regresso ao passado e não impedir que Portugal caísse sob uma «ditadura comunista», deram no domingo mais um significativo passo em frente e, por muito que se esmerem nos testemunhos de gratidão, nunca conseguirão prodigalizar os agradecimentos suficientes ao chefe de Estado, Marcelo afilhado de Marcello.

Em 25 de Novembro aglutinaram-se os que não quiseram acompanhar a dinâmica revolucionária e os que desejavam à viva força erradicar o 25 de Abril como se nunca tivesse existido. Um saco de gatos anticomunista manipulado pela CIA (tal como o golpe de Pinochet dois anos antes) mas dentro do espaço europeu, onde já pareceria mal fazer desaparecer pessoas ou fuzilá-las a eito num estádio.

Configurou-se então o «Centrão», o golpe brando que, através de quase 50 anos, deixou Portugal no estado em que se encontra hoje, um satélite da NATO, uma província da União Europeia sem capacidade para decidir sobre instrumentos democráticos fundamentais; um subúrbio económico esvaziado, com mecanismos públicos e sociais periclitantes, dependendo exclusivamente de uma actividade aleatória como o turismo; um pregoeiro de leilão que saldou todo o aparelho produtivo e transformou o país no mais desequilibrado e desigual da Europa, na cauda de praticamente todos os indicadores de referência. 

Em 10 de Março, exactamente um dia antes de se completarem 49 anos sobre outra tentativa de golpe, a do fascismo spinolista inspirada no modelo de Pinochet que os militares de Abril corajosamente fizeram abortar, abriu-se uma nova fase da execução do 25 de Novembro para erradicar completamente do país as referências do 25 de Abril de 1974. A jornada de luta e resistência em que se transformarão as celebrações da efeméride no próximo mês demonstrarão que o fascismo poderá ter colocado mais uma vez a carroça à frente dos bois. Nesse dia e, certamente, nos tempos que teremos pela frente, o dinamismo e a convicção popular saberão contribuir para minorar ou mesmo apagar os efeitos que a escória eleitoral resultante de um processo distorcido por um sofisticado aparelho de envenenamento e propaganda derramou sobre a sociedade. A resistência política e social, como sempre, irá separar as águas entre Abril e Novembro, demonstrando à classe política que não é dona exclusiva do poder e muito menos da democracia.

A doença do anticomunismo

Basta olhar os números eleitorais e escutar a barragem de fogo dos media corporativos – e mesmo dos públicos, que vegetam à imagem do país – para se concluir que hoje como em Novembro de 1975 o anticomunismo é a ferramenta fulcral do reaparecimento do fascismo e das elucubrações marcelistas. 

O Partido Socialista, que tanto se pôs a jeito – e ainda consegue chamar «centro democrático» à direita – deverá começar a sentir na pele que o fascismo com o peito cada vez mais inchado não irá poupá-lo, obviamente com o PSD como testa de ferro.

O Partido Comunista Português tem sido, porém, o único alvo a abater para que o 25 de Abril desapareça de vez da memória, consciência e vida dos portugueses. Digamos que o PCP é a última fronteira, a barreira que sobra para que o neoliberalismo fascista já instaurado nos planos económico e financeiro, graças ao eficiente aparelho policial de Bruxelas, tenha finalmente a sua correspondente política.

Daí que tenha valido e continue a valer tudo contra o PCP. Silenciamento do seu discurso e até da sua existência, deturpação ostensiva e constante da sua mensagem, calúnia contra as suas intenções, o seu programa e a acção dos seus dirigentes, o encorajamento e o  apoio grosseiro do divisionismo à esquerda, a censura pura e simples, a agressividade, a manipulação e desigualdade de tratamento contra a sua campanha eleitoral. 

Os exemplos recentes deste ramo essencial da estratégia golpista de inspiração fascista é o tratamento factualmente mentiroso e omisso das posições do PCP em relação ao problema ucraniano. A intoxicação mediática conseguiu o milagre de fazer crer que os comunistas portugueses estão ao lado do capitalismo oligárquico russo que, com a ajuda ocidental, arrasou a herança económica e social da União Soviética. Alcançar a quadratura do círculo é um feito só ao alcance dos que fazem da mentira, da censura, da liquidação do pluralismo e da liberdade de opinião o seu modo de vida. A defesa da paz na Ucrânia e em todo o mundo pelo PCP é interpretada como um apoio a Putin. Fazer do absurdo verdade é, desde sempre, uma trama do nazifascismo. Ao mesmo tempo, apoiar o regime golpista de Kiev é uma posição que, segundo o aparelho dominante, decorre da democracia. Isto é, a nossa democracia sustenta o nazismo, o racismo e a xenofobia dos nazi banderistas. Por estas e outras, não nos espantemos que as variantes do salazarismo somem 56 deputados no Parlamento, quase um quarto do hemiciclo.

A estratégia de fazer desaparecer o PCP da cena pública, apagando-o na comunicação social como caminho para o eliminar da política e do Parlamento, está em permanente movimento. Por ironia do destino, se o venerando chefe de Estado não tivesse inventado estas eleições – onde estão as provas das acusações ao primeiro-ministro cessante, António Costa, que espoletaram o processo? – e se não tivesse havido uma campanha eleitoral, o país ainda desconhecia praticamente que o novo secretário-geral do PCP é Paulo Raimundo e não Jerónimo de Sousa.

O apoio dado a correntes artificiais da esquerda fiéis à autocracia do europeísmo, do federalismo e de uma ecologia dolarizada à moda do Fórum Económico Mundial é outra estratégia orientada exclusivamente contra o PCP e aos seus aliados na CDU, de maneira a pulverizar votos e deputados nessa área. A mediatização, quase ao nível dos grupos fascistas, proporcionada a uma organização conduzida por indivíduos fala-baratos e sem ética política, como demonstraram anteriormente dentro de  partidos que os acolheram e promoveram, é outra manifestação da falta de princípios própria da estratégia de vale tudo no anticomunismo. Ao mesmo tempo, a classe média urbana que o poder europeísta despreza sentiu-se contente da vida por poder votar numa «esquerda» fofinha.

Desenganem-se, porém, os sectores para quem o combate do PCP e da CDU depende da dimensão da sua representação parlamentar. A sua luta política e social extravasa em muito as instalações da Assembleia da República. Em mais de metade dos seus 103 anos de existência o PCP não teve lugares no Parlamento; quando citado na propaganda do fascismo foi apenas para ser caluniado; e, contudo, nenhuma organização contribuiu tanto para fazer amadurecer as condições que derrotaram o salazarismo. Não admira, portanto, que seja o alvo a abater pelo fascismo e os seus instrumentos «democráticos». 

O PS, parte essencial do 25 de Novembro e da estratégia para apagar o país do mapa e de manter a maioria do povo em níveis de desenvolvimento muitas vezes indignos, vítima da política insultuosa e totalitária de Bruxelas, está prestes a tomar conhecimento de que a direita em bloco, falando já em revisão constitucional à sua revelia, não tenciona agradecer-lhe os serviços prestados.

Na comunicação social corporativa, entretanto, os socialistas começaram a perceber logo na noite eleitoral que a música vai tocar de maneira diferente daqui em diante. A agressividade de comentadores contra representantes do PS é um sinal que não deve ser negligenciado. E a manobra opaca e conspirativa contra António Costa diz tudo sobre a maneira como chegámos a esta situação que até um destacado membro do PSD, o presidente da Câmara Municipal de Cascais, qualifica como «um imbróglio».

Ao longo de décadas, o PS foi anulado pela NATO, tornou-se um pião do fundamentalismo federalista da União Europeia e tombou, como a maioria dos seus congéneres, para o lado do neoliberalismo e da ditadura de mercado, deixando entre parênteses ou espezinhando as referências sociais.

O quadro, porém, não é irreversível desde que haja noção da envergadura da ameaça fascista e admita que os seus inimigos principais não são os comunistas e aliados. Há um tempo para governar e um tempo não apenas para a oposição, como enfatizou o secretário-geral socialista, mas para a resistência.

O quadro político e a alteração de forças foi um tsunami e não uma picuinhice de mais ou menos um deputado, mais ou menos meia dúzia de votos. O cenário mudou completamente no domingo e o fascismo não é representado apenas pelos chegas e il’s; no interior do PSD, sem falar no CDS agora por ele engolido, acoitam-se um sem número de salazaristas que não hesitarão em dar a cara se o momento se proporcionar.

É preferível prevenir que remediar. O golpe foi dado, porém está longe de consolidado. Abril está aí e não é apenas uma efeméride, uma memória: é um instrumento. Nunca é cedo demais para resistir e para demonstrar ao fascismo, insuflado por ventos que sopram de feição, que a democracia, para o ser verdadeiramente, terá de ser antifascista.

É para restaurar essa realidade que os antifascistas devem estar disponíveis e prontos. Ainda vamos a tempo. Tornemos o próximo 25 de Abril inesquecível.

quinta-feira, 14 de março de 2024

 

Três reflexões para um futuro incerto

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13 de Março de

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 12/03/2024)

Com a mesma certeza com que rejeitou o Chega, a direita aceitou a Iniciativa Liberal, cujo programa eleitoral é muito mais assustador que o do Chega no plano social.


Os resultados das últimas eleições obrigam a uma leitura para além da espuma dos resultados. Três reflexões: a não-democracia; o não-nacional; o não-presente.

não-democracia é o conjunto factores que, não estando sujeitos ao escrutínio democrático, influenciam de modo significativo os processos políticos e, sobretudo, eleitorais. São os elefantes dentro da sala.

sistema judicial é a causa próxima de algumas crises políticas recentes. É importante averiguar se não estarão a ocorrer em Portugal casos de guerra jurídica (lawfare) à semelhança do que tem ocorrido noutros países. Trata-se do uso do sistema judicial, não para averiguar ilícitos jurídicos, mas para neutralizar adversários políticos. Esta nova arma tem sido utilizada preferencialmente contra políticos de esquerda e assenta no uso político da luta contra a corrupção.

O segundo elefante é a comunicação social. Sem pôr em causa o fundamental serviço público dos media, não podemos deixar de reconhecer que nos últimos vinte anos houve uma viragem à direita no tratamento das notícias e nos comentários políticos. O modo como foi tratado o tema da TAP nos últimos anos e o tema das urgências hospitalares nos últimos meses são exemplares a esse respeito. O repetitivo e espectacularizado esmiuçamento dos casos, mais do que esclarecer os cidadãos, visava desgastar o Governo.

O terceiro elefante são as redes sociais que foram utilizadas sobretudo pelo Chega e pela IL, para criar polarização social, transformando adversários políticos a confrontar em inimigos a destruir. Uma lógica tribal ávida de adesão e avessa à confrontação dos factos cria a voragem da destruição do que está vigente de modo dominante sem curar de saber o que (e como) se deve construir para o substituir.

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não-nacional é a componente dos interesses globalmente organizados que interferem de modo activo nos processos políticos dos diferentes países seleccionados para intervenção em função de estratégias globais. A intervenção nas redes, o financiamento de partidos de extrema-direita ou de ultradireita e de institutos supostamente de investigação, mas, de facto, think tanks e centros de comunicação estratégica são alguns dos mecanismos de interferência. O Atlas Network (anteriormente Atlas Economic Research Foundation) é um dos agentes globais mais conhecidos, uma agência não-governamental baseada nos EUA que “fornece treino, contactos e financiamento a grupos libertários, pró-mercado livre e conservadores em todo o mundo”. A internacional ultraconservadora visa transformar a Europa num aliado incondicional dos EUA, criar o pânico anti-Rússia de modo a justificar os investimentos em armas em detrimento das políticas sociais e ambientais e travar a China.

não-presente é o modo como a memória de um povo é tratada valorizada ou manipulada para produzir resultados políticos concretos. Em Portugal, essa memória assenta em três pilares, cada um deles com a sua temporalidade. O primeiro pilar é a memória da revolução do 25 de Abril de 1974, cujo quinquagésimo aniversário celebramos este ano. Os portugueses concebem o 25 de Abril como o acto fundador da modernidade em que hoje vivem. Em Portugal, a democracia ainda não é um regime formal emocionalmente neutro ou pragmaticamente descartável. Apesar de todas as suas limitações, avaliar políticos e votar é a manifestação de uma potência existencial que, apesar de muitas vezes frustrada nas expectativas, ainda não se transformou numa frustração colectiva. Estão vivos e activos alguns milhões de portugueses que votaram pela primeira vez em 1976. Essa emoção fundadora tem sido agressivamente manipulada pelo Chega, mas, contraditoriamente, o Chega alimenta-se dela, trazendo para as mesas de votos muitos cidadãos descrentes da democracia. O voto de protesto é um voto tão democrático como os outros. Os empreendedores por detrás dele é que o usam para destruir a democracia.

O segundo pilar da memória dos portugueses é a crise existencial de 2011: a tutela da troika e um governo de direita para quem a austeridade imposta externamente aos trabalhadores e à classe média não era suficiente e devia ser ainda mais agravada por iniciativa própria. Os trabalhadores e os pensionistas, os jovens e os idosos, lembram-se do que então ocorreu. O que correu para o rio da memória não foram apenas os cortes nas pensões, a perda de direitos laborais, a pobreza abrupta e a iniquidade com que o sofrimento foi distribuído entre as diferentes classes sociais. Correu sobretudo a ferida na soberania e na auto-estima de um povo que se libertara do pesadelo colonial para, pouco depois, abraçar o sonho europeu, e que via agora esse sonho convertido num novo pesadelo (muitos se lembram dos termos usados pelos jornais alemães e ingleses para se referir a Portugal e aos portugueses). Era a destruição de uma materialidade muito concreta traduzida no aumento de bem-estar que as classes populares tinham vindo a experimentar apenas há três ou quatro gerações.

As forças de direita estão coladas a essa memória e durante a campanha eleitoral fizeram tudo para a avivar (Passos Coelho na campanha). O retumbante êxito, que estava ao seu alcance, fugiu-lhes. Menos visível por agora é que a direita moderada pensou que ao respeitar a primeira memória (do 25 de Abril) podia desqualificar a memória de 2011. Com a mesma certeza com que rejeitou o Chega, aceitou a Iniciativa Liberal, cujo programa eleitoral é muito mais assustador que o do Chega no plano social. Se o Chega representa a destruição política do 25 de Abril, a IL representa a destruição socioeconómica do 25 de Abril. O seu programa é uma versão do paradigma ultraliberal de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, ridicularizado nos anos de 1930 e reabilitado quarenta anos depois no Chile do ditador Augusto Pinochet (1973). O programa da IL significa a privatização de tudo o que se move e pode dar lucro.

Os dirigentes e eleitores da IL professam a democracia, mas talvez nem se dêem conta de que o seu programa é inaplicável em democracia. Já o mesmo não se pode dizer dos seus mentores. Hayek admitia o colapso da democracia como um dano colateral das suas políticas económicas, cuja implementação era de longe o mais importante. Escreveu ao diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung em 1977 a protestar contra a crítica injusta feita no periódico contra o regime de Pinochet no Chile; considerava o Chile de Pinochet como um milagre político e económico e invectivava contra a Amnistia Internacional, considerando-a “uma arma de difamação da política internacional”.

O terceiro pilar da memória dos portugueses diz respeito ao desempenho do Governo durante a pandemia do coronavírus. Foi um excelente desempenho enquanto uma articulação exemplar entre políticos, profissionais de saúde e cidadãos conscientes da seriedade da emergência de saúde pública. Pouparam-se vidas que noutros mais países mais ricos se perderam. Esta memória foi desvalorizada e o Governo que a tornou possível desbaratou o capital de confiança que granjeara ao não saber compensar adequadamente os enormes sacrifícios do SNS num contexto em que a saúde privada desapareceu como que por encanto. Se o Governo, no dia seguinte a dar por finda a pandemia, tivesse aumentado em 100% os salários de todos os profissionais do SNS, o povo português teria aplaudido de pé. Lamentavelmente, as contas certas não acertaram com o país.