A sociedade moderna está doente, porque constrói bonecos para rapidamente os destruir, pontapear e esmagá-los sem piedade.
Quem ler apenas o título vai pensar que eu estou a tornar-me um “colaboracionista” com a mediocridade, pois ao citar estes nomes estou a promovê-los. Se calhar é o pecado deste meu artigo, assumo, “mea culpa”, mas quem é racional tem de alertar para o folclore em torno destas criaturas e para o vazio das sociedades contemporâneas.
Na semana passada, o “El País” escrevia que a marca Kim Kardashian «caía a pique». Até 2016 ocupava o 42º lugar das celebridades mais bem pagas, liderava o ranking das estrelas de “reality shows” com 49 milhões de euros, cobrava 286 mil por post e 478 mil por presenças em festas. Isto porquê? Porque é uma celebridade promovida pelas redes sociais, uma profissional de “selfies” que saltou para a televisão e que casou com outra estrela, Kanye West. Tem algum talento? Não.
Por cá, mais modesta, uma senhora de nome Maria Leal tornou-se em 2016 uma “celebridade” porque apareceu num programa matinal a cantar e a dançar mal. As redes sociais partilharam as imagens, fizeram-na motivo de chacota nacional, mas com isso ganhou presenças e algum dinheiro, virou notícia de jornal e a sua alcova também se tornou de domínio público. Tem algum talento? Não.
Sobre a monumental trilogia dos sentimentos (“A Aventura”, “A Noite” e “O Eclipse), o seu genial criador, Michelangelo Antonioni, dizia que procurava «vestígios de sentimentos». Porque o mestre italiano antevia a sua desaparição nas sociedades frias e sem alma do presente e do futuro. O problema é que os maus instintos, o “voyeurismo”, o deplorável gozo em achincalhar o ridículo se sobrepôs à cultura, ao respeito pelo talento.
Assistimos, inexoravelmente, à morte dos sentimentos. Como em “O Eclipse”, quando um corretor da Bolsa morre e se guarda um minuto de silêncio, mas que um segundo depois a azáfama volta e já ninguém se lembra que o homem existiu. A sociedade moderna está doente, porque constrói bonecos para rapidamente os destruir, pontapear e esmagá-los sem piedade. Só espera que algum imperador lhes pergunte se os salvam ou não como nos circos romanos.
Uma sociedade doente que venera inúteis, entroniza analfabetos funcionais, lhes pede autógrafos, dá contratos e paga “cachets”. Kim Kardashian e Maria Leal são apenas dois rostos, mas há tantos mais que o universo mediático promove sem qualquer retorno útil para a comunidade. Tanto talento que existe e as pessoas não conhecem. Quantos, por exemplo, já viram um filme de Antonioni, quem já viu Alain Delon e Monica Vitti, soberbos, em “O Eclipse”? Pois não viram, mas sabem quem é a Kardashian e a Leal, e isso é que é pena.
George Bernard Shaw dizia que «há duas tragédias na vida. A primeira é não obter o que o seu coração mais deseja. A segunda é obter». As duas citadas conseguiram os seus 15 minutos de fama. E há quem as elogie porque tiveram a esperteza de ganhar com isso. Conquistaram-no pelo vazio, pelo bizarro, pelo grotesco. A sociedade bate-lhes palmas, ri delas, vilipendia em seguida. A sociedade está entretida. Que doente está a sociedade.
Rui Calafate - ECO.pt
Ovar, 5 de janeiro de 2017
Álvaro Teixeira
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