O Ocidente à deriva
João Pedro Dias, Investigador em Assuntos Europeus
A parte do mundo em que nos inserimos, o Ocidente, parece reunir todas as características para conhecer a tempestade perfeita que muitos antecipam.
Dentro de dois dias toma posse o próximo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Se a sua eleição constituiu surpresa de monta para a maioria dos analistas e observadores que se fiaram em sondagens e estudos eleitorais, já em relação às expectativas que o seu mandato suscita voltamos a encontrar uma rara unanimidade que avisa e adverte para o completo “inconseguimento” do mesmo, sujeito a uma falta de políticas conhecidas e coerentes, a uma errância que não pode deixar de preocupar e assustar, submetida sobretudo aos impulsos e humores do seu principal intérprete – mais do que a qualquer linha programática conhecida, articulada e sistematizada.
Basta, de resto, acompanhar as audições em sede do Congresso norte-americano e escutar com atenção o que tem sido dito pelos principais membros do futuro gabinete de Trump para nos apercebermos das contradições que por ali vagueiam, das faltas de sintonia entre responsáveis futuros pela defesa e pela política externa. Ou, então, estarmos atentos às querelas verbais entre o futuro ocupante da Sala Oval e as direções das principais agências federais de defesa e segurança, que Trump tem desacreditado e sistematicamente posto em causa. São apenas episódios esparsos, mas que servem para nos demonstrar, à evidência e à saciedade, o ponto crítico a que chegou uma administração que, ainda não o sendo, parece já ter sido.
Surgem-nos estes factos, sumariamente elencados, num quadro em que a potência liderante e sobrante do antigo Ocidente de Estados atravessa a sua maior crise de credibilidade desde, seguramente, o final da Segunda Guerra mundial – crise essa que se encontra em processo de contágio e expansão, parecendo alargar-se às mais diversas coordenadas desse outrora chamado Ocidente, a ponto de não sabermos, e ficarmos na dúvida, se este conceito de Ocidente ainda é um conceito operativo útil que corresponde a alguma realidade substantiva ou se, pelo contrário, é apenas e só uma reminiscência de um passado não distante que se continua a utilizar à falta de melhor definição.
A forma como se processou a transição entre as administrações norte-americanas é o exemplo acabado da crise em que os EUA se encontram mergulhados, a que se deve somar o questionamento público por parte do novo Presidente da utilidade da Aliança Atlântica, que congregava parte significativa dos aliados americanos, que foi durante mais de 50 anos um farol de esperança e de liberdade para o mundo e que venceu a Guerra Fria incorporando parte significativa dos valores e do legado histórico desse mesmo Ocidente.
Hoje em dia, todos esses factos, todas essas realidades que tínhamos como dados adquiridos, parecem estar sob escrutínio permanente e na mira dos que mais obrigação tinham de os defender e preservar. Ao questionar esse edifício institucional, que não passa apenas pela Aliança Atlântica mas deve, entre outras, englobar a própria União Europeia, também ela aparentemente em acelerado processo de desagregação, o Ocidente que nos habituámos a considerar e de que, enquanto povo e nação, fomos dos que ajudámos a formar e a definir em termos de valores humanistas e personalistas, perfila-se como estando à deriva, sem bússola e sem norte, com os seus principais expoentes envoltos em crise que lhes retira, cada vez mais, a possibilidade de serem úteis e ativos neste mundo globalizado e de grandes espaços. A ponto de, entre a literatura mais recente, não faltar quem se interrogue sobre se esse mesmo Ocidente ainda existe ou, dito de outro modo, se ainda faz sentido falar em Ocidente.
Com os EUA na situação anómala que se conhece, o Reino Unido a distanciar-se das suas solidariedades europeias, os nacionalismos e os populismos extremistas a proclamarem que devem ser mais os Estados a abandonar o projeto europeu, com a Aliança Atlântica a ser declarada obsoleta pelo Presidente dos EUA, a Rússia de Putin a recordar hábitos e princípios da “grande mãe Rússia”, reforçando o seu poder e a sua esfera de influência, e os EUA liderados por um pirómano sem experiência política ou de governação pública – a parte do mundo em que nos inserimos parece reunir todas as características para conhecer a tempestade perfeita que muitos antecipam. No mínimo, o Ocidente anda à deriva e em busca de rumo. Que parece difícil de encontrar.
Post-scriptum. Theresa May: um perfeito case study! Fez campanha pelo “remain” no referendo britânico sobre a saída da UE. Apesar disso aceitou a incumbência de liderar o governo britânico encarregado da mais complexa tarefa política dos últimos anos: retirar o Reino da União. Como se não bastasse, podendo escolher a via da separação que lhe aprouvesse, optou pelo chamado “hard brexit”. Quer cortar todos os laços do Reino com a União, incluindo a pertença ao mercado único e a livre circulação de pessoas. O que, além de reforçar a incoerência, vai tornar o processo de separação muito mais doloroso, longo e moroso para ambas as partes. Uma particularidade não pode deixar de ser referida: este anúncio surge precisamente um dia após o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, o inenarrável Boris Johnson, ter declarado, em Bruxelas, que via com muito bons olhos o reforço da parceria económica e comercial entre Londres e a administração Trump. Em política internacional não há coincidências. E se o que tivermos pela frente for uma parceria entre Trump e Johnson, as razões para estarmos tranquilos são nenhumas.
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