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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A esquerda e a Catalunha



Catalães nas Ruas

por estatuadesal

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 28/09/2017)

boaventura

Boaventura Sousa Santos

Uma posição de esquerda sobre o referendo da Catalunha poderia consistir nos seguintes pressupostos.


O referendo da Catalunha do próximo domingo vai ficar na história da Europa, e certamente pelas piores razões. Não vou abordar aqui as questões de fundo, as quais podem ser lidas, consoante as perspectivas, como uma questão histórica, territorial, de colonialismo interno ou de autodeterminação. São estas as questões mais importantes, sem as quais não se compreendem os problemas actuais. Sobre elas tenho uma modesta opinião. Aliás, é uma opinião que muitos considerarão irrelevante porque, sendo português, tenho tendência para ter uma solidariedade especial para com a Catalunha. No mesmo ano em que Portugal se libertou dos Filipes, 1640, a Catalunha fracassou nos mesmos intentos. Claro que Portugal era um caso muito diferente, um país independente há mais de quatro séculos e com um império espalhado por todos os continentes. Mas, apesar disso, havia alguma afinidade nos objectivos e, aliás, a vitória de Portugal e o fracasso da Catalunha estão mais relacionados do que se pode pensar. Talvez seja bom lembrar que a Coroa de Espanha só reconheceu a “declaração unilateral” de independência de Portugal 26 anos depois.

Acontece que, sendo essas as questões mais importantes, não são lamentavelmente as mais urgentes neste momento. As questões mais urgentes são as questões da legalidade e da democracia. Delas me ocupo aqui por interessarem a todos os democratas da Europa e do mundo. Tal como foi decretado, o referendo é ilegal à luz da Constituição do Estado espanhol. Em si mesmo não pode decidir se o futuro da Catalunha é dentro ou fora da Espanha. O Podemos tem razão ao declarar que “não aceita uma declaração unilateral de independência”. Mas a complexidade emerge quando se reduz a relação entre o jurídico e o político a esta interpretação.

Nas sociedades capitalistas e assimétricas em que vivemos há sempre mais de uma leitura possível das relações entre o jurídico e o político. A diferença entre essas leituras é o que distingue uma posição de esquerda de uma posição de direita contra a declaração unilateral de independência. Uma posição de esquerda sobre as relações entre o jurídico e o político assentaria nos seguintes pressupostos.

Primeiro, a relação entre democracia e direito é dialéctica e não mecânica. Muito do que consideramos legalidade democrática num certo momento histórico começou por ser uma ilegalidade cometida como aspiração a uma democracia melhor e mais ampla. Os processos políticos têm de ser analisados em toda a sua dinâmica e amplitude e não podem ser reduzidos à conformidade ou não com a lei do momento.

Segundo, os governos de direita neoliberal têm pouca legitimidade para se arvorarem em defensores estritos da legalidade, porque as suas práticas assentam frequentemente em sistemáticas violações da lei e da Constituição. Não me refiro apenas à corrupção. Refiro-me, no caso espanhol, por exemplo, à violação da lei da memória (contra os crimes do franquismo), do estatuto das autonomias no que respeita às transferências financeiras e investimentos conjuntos, ou da garantia constitucional do direito à moradia. Refiro-me também à aplicação de medidas de excepção sem prévia declaração constitucional do estado de excepção. A esquerda deve ser cuidadosa em não mostrar cumplicidade com esta concepção da legalidade.

Terceiro, a desobediência civil e política é um património inalienável da esquerda. Sem ela, por exemplo, não teria sido possível há uns anos o movimento dos indignados e as perturbações na ordem pública que causou. De uma perspectiva de esquerda, também a desobediência tem de ser avaliada dialecticamente, não apenas pelo que é agora mas pelo que significa como investimento num futuro melhor. Tal avaliação não compete exclusivamente aos que desobedecem (e que normalmente pagam um alto preço por isso) mas a todos os que podem beneficiar no futuro. Ou seja, a pergunta fundamental é esta: pode o acto de desobediência contribuir com grande probabilidade para que no futuro a comunidade política no seu conjunto seja mais justa e mais democrática?

Quarto, o referendo da Catalunha configura um acto de desobediência civil e política e, como tal, não pode ter directamente os efeitos políticos que se propõe. Mas isto não quer dizer que não tenha outros efeitos políticos legítimos. Pode mesmo querer dizer que é a condição sine qua non para que os seus efeitos políticos ocorram no futuro uma vez respeitadas as necessárias mediações jurídicas e políticas. O movimento dos indignados não conseguiu realizar os seus propósitos de “democracia real já!”, mas não restam dúvidas de que, graças a ele, a Espanha é hoje um país mais democrático. A emergência do Podemos, de outros partidos de esquerda autonómicos e das Mareas (movimentos de cidadania) são uma prova, entre outras, disso.

A partir destes pressupostos, uma posição de esquerda sobre o referendo da Catalunha poderia consistir no seguinte. Primeiro, declarar inequivocamente que o referendo é ilegal e que não pode produzir os efeitos que se propõe (declaração feita). Segundo, declarar que isso não impede que o referendo seja um legítimo acto de desobediência e que, mesmo sem ter efeitos jurídicos, os catalães têm todo o direito de se manifestar livremente no referendo. E esta manifestação é, em si mesma, um acto político democrático de grande transcendência nas circunstâncias actuais (declaração omitida).

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