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quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Acusação a Sócrates: de que era acusado em 21 de Novembro de 2014?

Estátua de Sal


por estatuadesal

(Por Estátua de Sal, 11/10/2017)

socrates_acusado

Saiu finalmente a acusação a José Sócrates, e dizem que são resmas e resmas de papelada. Crimes e crimes em profusão, ainda que o grosso da acusação se prenda com a existência de corrupção por favorecimento dos desígnios de Ricardo Salgado nos negócios da PT. E sendo assim, isto é muito, muito grave, e dá razão aos que sempre disseram, mormente Sócrates, que a sua prisão configurava um ataque político da direita prosseguido pelos dignatários da Justiça.

Na verdade, no dia em que foi preso, 21 de Novembro de 2014, a Justiça nada tinha em seu poder que pudesse ligar Sócrates a Ricardo Salgado que nessa altura, apesar de já ter sido destituído da Presidência do BES devido à aplicação da medida de resolução ao banco em 3 de Agosto do mesmo ano, ainda mantinha incólume o seu perfil de "dono disto tudo".

Também nada tinha que o ligasse a um eventual negócio de luvas decorrente da concessão de licenças e financiamento ao empreendimento de Vale de Lobo. Apenas tinha vagas suspeitas de que Sócrates poderia ter sido corrompido pelo Grupo Lena, tendo em conta ter detectado transferências de dinheiro de Carlos Santos Silva para José Sócrates que este sempre alegou serem empréstimos que recebera do seu amigo.

O que irá ser o desfecho do Processo Marquês, o tempo o dirá. Mas, pela ausência de provas à data da sua prisão, para já o que pode concluir-se, é que a prisão de Sócrates foi de todo forçada e, sendo um ex-primeiro ministro, foi seguramente usada como arma de arremesso político para atacar Sócrates e o PS: fugas selectivas para os jornais, quebras sistemáticas do segredo de justiça, tudo orquestrado ao milímetro e publicado no "tempo certo" e na dosagem necessária. Em suma, a pulhice institucionalizada, abrangendo uma promiscuidade mafiosa entre a política, a justiça e a comunicação social.

Vivemos, para usar a célebre classificação de Guy Debord, na sociedade do espectáculo, ou seja, e citando o autor: "Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido se esvai na fumaça da representação."

E assim se passou. Foi espectáculo a prisão de Sócrates com as televisões em directo. Foram espectáculo durante meses as visitas que recebeu na cadeia de Évora. Foi espectáculo o seu regresso a casa, é espectáculo a emissão de hoje, quase em contínuo das televisões com especialistas de todos os matizes a opinar sobre a acusação finalmente parida. Irá ser espectáculo durante meses o julgamento que se seguirá.

No meio das narrativas que nos vendem e dos espectáculos que nos encenam (e onde somos encenados, as mais das vezes sem de tal termos consciência), onde está a realidade? Onde está inocência ou a culpabilidade do arguido? A resposta é óbvia: na sociedade da actualidade, refém de uma mediatização amiúde obscena, a realidade é a imagem, a mensagem, a realidade é o espectáculo.

O Direito, o primado da lei sobre a barbárie, começou por ser uma construção lógica fundada na inteligibilidade devedora da racionalidade dos sujeitos pensantes. Mas hoje, na sociedade do espectáculo, a aplicação da justiça começa a ser mais fundada na capacidade dos magistrados encenarem a prova, usando a força mediática da comunicação social sobre os cidadãos, do que propriamente em a produzirem em juízo.

É difícil avaliar os perigos que decorrem desta deriva, deste desvio, nas sociedades livres e democráticas, mas eles são, do meu ponto de vista, enormes e só podem redundar em totalitarismos mais ou menos larvares e em situações de arbítrio kafkiano.

E pergunto de novo: onde está inocência ou a culpabilidade do arguido? Como muitos dos opinadores das televisões sugerem, a prova é sólida, e o mais espantoso é que medem a solidez da prova, que não conhecem, pela quantidade de páginas (4000) do libelo acusatório! Ou seja, o julgamento já começou também ela a ser encenado pela voz do comentariado nacional.

Já agora, deixo só algumas perplexidades em relação ao que já se conhece da acusação:

1. Provas de corrupção não existem ou não são apresentadas nem se sabe em que se fundamenta a acusação de corrupção - factos, documentos, testemunhos, ganhos provados e quantificados a favor do corruptor activo.

2. Existem fluxos financeiros que circularam entre vários dos acusados e, surge sempre a sentença lapidar que é: "O ministério público acredita, bla, bla, bla". Parece que o Ministério Público é uma entidade religiosa, que tem fé e que acredita. Qualquer um pode acreditar na Nossa Senhora, nos pastorinhos, em gambuzinos ou no Abominável Homem das Neves. Assim, somos convidados a seguir a "fé" do Ministério Público e a sermos seus reverenciais prosélitos.

3. E parece que os nossos amigos jornalistas, são todos eles homens de fé e todos eles estão ajoelhados à rezar o terço do Ministério Público.

4. Finalmente há outro crime que é imputado aos arguidos e que é ridículo. Trata-se do crime de fraude fiscal. Quer dizer, supostamente Sócrates e os outros arguidos receberam verbas ilícitas. Pois bem, são também condenados por não terem declarado essas verbas em sede de IRS e pago os impostos respectivos! Ou seja, tendo supostamente beneficiado de dinheiros ilícitos eram obrigados a denunciar-se e a pagar os impostos associados a essa ilicitude. Isto só pode ser uma acusação demencial do tal fiscal de Braga da Autoridade Tributária, que desde o início, muito discutivelmente, é um dos investigadores da dita Operação Marquês.

Finalmente, a sanha e a gana com que a direita e os seus porta-vozes estão a sublinhar o caso na comunicação social, no actual momento político,  e tendo em conta o timming - que com esta Justiça nunca é acidental e/ou inocente -, são um pouco estranhas.

A não ser que estejam a antecipar problemas com a aprovação do próximo Orçamento de Estado e a emergência de uma crise política de todo inesperada, onde explorariam o caso Sócrates até à náusea.

O PCP e o BE que se cuidem e não coloquem António Costa entre a espada e a parede, exigindo aquilo que é manifestamente impossível na actual correlação de forças a nível da Europa e tendo em conta a conjuntura económica e financeira do próprio país.

Que não façam com António Costa aquilo que fizeram com Sócrates e com o PEC IV em 2011. Seria um tiro no pé mais explosivo que um míssil intercontinental, um completo suicídio político.  Como diz o adágio, à primeira qualquer um cai, mas à segunda só cai quem quer.

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