(Paula Cosme Pinto, in
Expresso Diário, 23/10/2017)
(Nota
breve ao texto e à notícia: Como é que atrasados mentais e
trogloditas como estes podem chegar a juízes em Portugal? Tal facto é
revelador do nosso atraso enquanto país e da nossa ausência de
instituições democráticas e progressistas. Com gente desta a aplicar
a Justiça como se estivesse na Idade da Pedra lascada, como pode o
país crescer, modernizar-se e ter futuro?
Estátua
de Sal, 23/10/2017)
Um resumo breve: uma mulher
mantém um relação extraconjugal por dois meses. Termina-a por vontade
própria e o amante começa a persegui-la e a ameaçar mostrar fotos
íntimas ao marido caso ela não mantenha relações sexuais com ele. Ela
não cede. O amante conta ao marido. O casal separa-se. O ex-marido,
despeitado e deprimido, ameaça e insulta continuadamente a mulher
após a separação. Ex-amante e ex-marido, embora sem grande
premeditação, juntam-se para se vingarem. Encurralam a mulher e
agridem-na. Esta consegue fugir e apresenta queixa. O que tem a
Justiça a considerar sobre isto? Que a imoralidade da vítima é que
levou a que isto acontecesse. Sim, em Portugal, em 2017.
O acórdão supostamente
proferido pelo Tribunal
da Relação do Porto – e digo aparentemente porque até agora ainda
ninguém o desmentiu – foi partilhado na íntegra pela plataforma
Capazes e pode ser lido aqui. Mas para vos poupar a
leitura total, deixo-vos algumas passagens, agradecendo desde já que
não se use o cliché da descontextualização para menosprezar alguns
dos excertos que aqui vou reproduzir. Desde a Bíblia, às leis de
países que punem mulheres adúlteras com lapidação e ao velhinho
Código Penal de 1886, parece que vale tudo para tentar culpar a
mulher vítima de agressão, tentando-se assim justificar o
injustificável:
-
“Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o
arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado
depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão.”
-
“Este caso está longe de ter a gravidade com que, geralmente, se
apresentam os casos de maus tratos no quadro da violência doméstica.
Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de
adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um
gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades
existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”
-
“Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a
morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de
1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o
homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”
- “A
conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela
assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à
honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher
adúltera é alvo de lapidação até à morte”
-
“Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério
da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena
fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as
adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida
pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”
Há algo que não podemos
esquecer ao ler isto: os juízes - e os Tribunais – quando falam,
falam em representação do Estado. Um Estado, aproveito para
relembrar, que por cá é laico. Este tipo de argumentação com base
religiosa e repleta de estereótipos de género, por mais que seja dada
com a justificação em jeito de “a título de exemplo”, é inaceitável
e, quer-me parecer, inconstitucional. Está carregada de moralismos,
de juízos de valor, de interpretações de comportamento de cada um dos
intervenientes totalmente enviesadas, com o género da vítima e dos
agressores a ter um papel decisivo na forma com se olha para o caso.
Como se o facto de se ser homem ou mulher tornasse a situação mais ou
menos grave. Tudo isto nos leva ao caminho da normalização da
violência, principalmente a que acontecesse em contexto de relação de
intimidade. E essa normalização é talvez a estrada mais perigosa de
todas, principalmente porque parece nunca mais ter fim.
CONTINUAMOS A DESVALORIZAR A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
EM PORTUGAL
Ainda me lembro de há uns meses
também ter acontecido uma situação do género em Évora, quando o
Tribunal da Relação anulou uma pena de violência doméstica usando
este tipo de considerações: “Não é, pois, do mero facto de o arguido
consumir bebidas alcoólicas, ou de tomar uma ou outra atitude
incorreta para com a ofendida (por exemplo, ir ‘tirar
dinheiro’ da carteira desta)” ou o facto de numa
discussão “ter agarrado o pescoço desta com uma mão, ou de, perante a
recusa sexual repetida (e assumida) da ofendida, o arguido pensar, e
verbalizar, que a mesma tinha amantes” que se pode considerar que
houve maus-tratos à vítima.
Por mais que os números
anuais sejam assustadores, ainda desvalorizamos a violência doméstica
em Portugal. Continuamo-nos a esquecer que a violência não passa
exclusivamente pelas agressões físicas e a achar que estes crimes só
são realmente crimes quando existe uma tentativa de homicídio ou
quando a desgraça fatal já aconteceu. E mesmo nesses casos, ainda
muita gente se põe a ponderar até que ponto a vítima não teve alguma
culpa pela situação. Continuamos a tentar justificar as agressões
quando devíamos, acima de tudo, questionar porque é que estas
acontecem repetidamente, e em larga escala, com o mesmo padrão de
géneros no que toca a vítimas e agressores. Se queremos analisar
comportamentos por géneros, comecemos por este, por exemplo.
Continuamos a considerar
que homens e mulheres têm obrigações e direitos distintos, já para
não falar daquilo que é esperado enquanto conduta e comportamento
social e familiar de cada um. Continuamos a achar que no toca à
liberdade sexual, por exemplo, há diferenças entre o que é aceitável
para homens e para mulheres. Continuamos a achar que o adultério
feminino é mais grave, imoral, condenável e passível de vingança
justificada do que o masculino. Continuamos a achar que as mulheres
ainda se querem “belas, recatada e do lar”.
Está na altura de tirarmos a cabeça debaixo da areia e
enfrentarmos a nossa realidade, que este acórdão do Tribunal da
Relação do Porto tão bem corrobora: ainda vivemos sob a herança
histórica de uma mentalidade patriarcal, misógina e,
consequentemente, discriminatória. Com tribunais e demais órgãos de
soberania a darem o mau exemplo.
Secretamente, confesso que
continuo à espera que surja um desmentido a dizer que isto não passa
de uma cabala da Internet. Que os nossos juízes – homens e mulheres,
porque isto do sexismo não é exclusivo a um género – não contribuem
para cenários de injustiça e discriminação como este, tendo por base
a manutenção da dignidade e da honra do sexo masculino enquanto valor
fundamental, e que pode ser ameaçado pelo comportamento feminino. Mas
ou muito me engano ou isso não vai acontecer. Veremos.
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