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quarta-feira, 4 de outubro de 2017

PCP na geringonça: se correr o bicho pega se ficar o bicho come

Estátua de Sal


por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 04/10/2017) 

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A brutal derrota do PSD nas autárquicas do último fim de semana não consegue esconder uma nova fonte de problemas para a “geringonça": o desgaste autárquico do PCP. Pior: a transferência de votos dos comunistas fez-se quase exclusivamente para os socialistas. Enquanto se pensou que eram umas câmaras no Alentejo, tudo não passaria de um incómodo. Quando ficou claro que Beja e Berreiro também seriam perdidos a coisa piorou. Quando se descobriu, com estupefação, que Almada estava entre as nove autarquias perdidas para o PS percebeu-se que o problema era mais grave. Há uma tendência consistente e não localizada de transferência de voto da CDU para o PS.

Tenho as minhas ideias sobre o assunto. O eleitorado comunista está, socialmente, entre os principais beneficiários das medidas de reposição de rendimentos deste governo. O PCP pode, como fez Jerónimo de Sousa, puxar a brasa à sua sardinha e atribuir aos comunistas muitas das medidas tomadas. Mas a ideia não passa. O que quer dizer que o PCP suporta um governo que, também graças ao seu apoio, está a tomar as medidas que tiram votos aos comunistas. Não porque as pessoas estejam descontentes com a geringonça, mas porque estão satisfeitas. Isto só não se sentiu de forma tão aguda com o Bloco porque ele tem pouca relevância autárquica e porque há um eleitorado mais jovem do BE que ainda está muito longe de ver grande parte das suas aspirações respondidas. E porque o Bloco sabe surfar melhor neste tipo de situações.

A tentação dos comunistas pode ser a de começar a pôr fim a este entendimento, criando-lhe dificuldades e alimentado, para fins partidários, uma conflitualidade social crescente. Os sinais saídos do Comité Central não são os mais animadores. Mas não podem e não devem fazê-lo. Não podem porque quem roer a corda à “geringonça" será fortemente penalizado pelo seu eleitorado. Não devem porque, para além de muito do que tem sido conquistado ser a razão de ser um partido de esquerda, a travagem do processo de liberalização do mercado de trabalho e de privatização das funções do Estado é condição para sobrevivência do próprio PCP. Se os comunistas apoiam o governo o PS fica-lhes com os louros, mas se os comunistas desapoiam o PS fica-lhes com o descontentamento.

O Bloco de Esquerda irá aproveitar o desconforto do PCP para ganhar protagonismo como aquele aliado que ajuda a construir a maioria à esquerda. Já o começou a fazer. Horas depois do PCP se mostrar indisponível para construir uma maioria em Lisboa, Catarina Martins veio dizer o oposto, mostrando mais arrojo e autonomia em relação aos comunistas do que é habitual. Uma estratégia inteligente que tenta impedir que os efeitos que se estão a sentir no PCP cheguem ao Bloco.

Na realidade, o problema está a montante. PCP e BE ficaram de fora de governo para não serem responsabilizados pelas suas derrotas. Consequentemente, não estão a ser responsabilizados pelas suas vitórias. É uma ingenuidade pensar que se pode estar fora para o que é mau e dentro para o que é bom. A situação piorou quando os acordos assinados foram quase totalmente cumpridos. Antes disso os dois partidos ainda podiam chamar a si medidas concretas, como, aliás, Jerónimo de Sousa fez no seu discurso de derrota. A navegar à vista resta a comunistas e bloquistas dizer aquilo que impediram, passando grande parte do tempo a explicar que este não é o seu governo (Jerónimo até nega a existência de um acordo parlamentar) apesar de o apoiarem. É curto, confuso e pouco mobilizador. Deviam ser os primeiros a querer um novo acordo, com novas medidas que ultrapassem a restituição de rendimentos. E deviam ter conseguido isto antes do PS se ter reforçado eleitoralmente.

Depois deste resultado, António Costa será tentado a fazer o que quer e a confiar que comunistas e bloquistas não podem roer a corda. Até fará juras inconsequentes de novo casamento para atrair o voto de eleitores comunistas e bloquistas enamorados com a sua abertura à esquerda. De outro lado, haverá mesmo quem, mais excitado, comece a dizer que o PS não precisa do PCP para nada. Nem do Bloco. Seria cauteloso com a condescendência e com a arrogância. O PSD vai passar por meses difíceis mas, lá para janeiro, deverá ter uma nova liderança. Boa ou má, virá mais fresca e sem o peso dos anos da troika. Com um PCP acabrunhado e os laços da geringonça menos firmes será fácil explorar todas as contradições desta frágil solução de governo. Daqui a dois anos nunca se sabe o que acontecerá. Também Passos descorou as autárquicas, convencido que por esta altura o governo estaria nas lonas. Enganou-se redondamente.

A “geringonça" tem meio ano para garantir que esta soma é boa para todos. Para começar, PCP e BE têm de assumir a “geringonça" como sua em vez de passarem o tempo a dizer que o governo é de outros. E ganhar a iniciativa negocial. Para acabar, o PS tem de perceber que o sonho de uma maioria absoluta é isso mesmo: um sonho.

O problema, se o PCP e BE concluírem que só perdem com esta solução, será o que Costa identificou há mais de dois anos e regressará mal o PSD se recomponha: os socialistas ficam condenados a ter de conquistar maioria absoluta se não quiserem depender do PSD para governar. E o que se desfaça agora dificilmente se refará no futuro.

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