por estatuadesal
(Por Estátua de Sal, 27/11/2017)
Estive a ver o debate na Assembleia da República que culminou com a aprovação do Orçamento de Estado para 2018. Uma tragicomédia modernista. Tragédia porque revelou em muitos pontos as restrições de soberania a que o país está sujeito. Comédia porque a direita anda perdida entre o programa que deixou de poder cumprir e o programa que o PS cumpre e que, em parte, é o seu.
Desse modo, a direita umas vezes critica o PS por não ter abandonado a austeridade e propõe medidas despesistas, outras vezes critica o PS por ser gastador e perdulário. E mais, critica o PCP e o BE por apoiarem um orçamento que dizem ser de austeridade.
Curiosamente, eu concordo com a direita. Eles têm razão. O PS ou qualquer governo que se quede amarrado ao cumprimento escrupuloso das regras do Euro e do Tratado orçamental, só pode fazer um orçamento de austeridade e de míngua nos serviços e no investimento público.
E então surge a comédia, a anedota ao vivo de ver Passos Coelho, o campeão dos cortes no Estado e no investimento, a acusar o PS de não reduzir a despesa pública. Parece contraditório? Só o é na aparência. Quer dizer, o PS é acusado de apresentar um orçamento de austeridade e ao mesmo tempo também é acusado de não reduzir a despesa pública? É isso que a direita diz porque, quando fala em aumentos da despesa pública, o que está a referir é a despesa com salários e prestações sociais. Logo, nessa área o PS é perdulário e despesista porque os rendimentos dos trabalhadores sempre foram o alvo dos cortes da direita.
Depois vem outras críticas. Que não há reformas e que não há visão de futuro. As reformas da direita já se sabe quais são. Cortar direitos aos trabalhadores, reduzir a força dos sindicatos, desequilibrar a legislação laboral a favor do patronato, aumentar impostos sobre o rendimento das pessoas e reduzir a tributação sobre as empresas. Reduzir e privatizar serviços púbicos e funções sociais do Estado. É evidente que um governo com o apoio desta maioria parlamentar nunca pode levar avante tal agenda.
Depois, que não há visão do futuro. Eu também acho. Para que o país possa continuar a existir e ser bem-sucedido no médio-longo prazo, tal tem que passar necessariamente por uma renegociação da dívida e de alteração das regras do Euro. Claro que tal problemática não afeta só Portugal mas todos os países periféricos da União Europeia e só num contexto multinacional alargado, mais cedo ou mais tarde, terá que ser discutida. Mas não é esse o debate que a direita exige. A direita não vê qualquer peia nas regras do Euro ou no peso dos juros. Quem acha que pode cortar sem limite nos salários e nas prestações sociais, não considerando isso um ónus mas uma vantagem competitiva para a economia, não considerando isso uma malfeitoria mas uma inevitável normalidade, não tem qualquer problema com as restrições orçamentais desde que sejam os trabalhadores os alvos das mesmas.
Na parte da tragédia há pirueta que o PS teve que fazer relativamente ao recuo numa taxa que o Estado iria lançar em 2018 sobre o setor elétrico, e que tinha já sido aprovada na especialidade, sob proposta do BE. Sem qualquer explicação, sem qualquer defesa consistente. Logo, deve ler-se que interesses poderosos se perfilaram para impedir a medida. Provavelmente pressões vindas da Europa, que o PS não é capaz de desafiar. Essa é a parte triste e trágica. A nossa soberania não vale dez reis de mel coado. E neste assunto, só me resta também dar razão ao BE, e trazer a debate as falhas recentes da atuação do primeiro-ministro. Assim não, António Costa, isso não é palavra dada palavra honrada, como gostas de te gabar ter por lema. E mais, António Costa, devias ter tido a frontalidade de ter esclarecido as razões desse inexplicável recuo de fim de semana, uma enorme falta de respeito pelos teus parceiros parlamentares. Não foi bonito e ficámos todos sem te perceber, já que as reais motivações de tão estranha atitude ficaram ocultas. E, mesmo que a ferida na confiança dos teus parceiros possa não ser mortal, as feridas, mesmo as que se curam, deixam sempre cicatrizes.
Como não te percebemos na trapalhada do Infarmed. Como já tínhamos ficado confusos no drama dos fogos e na novela das desculpas subsequentes. Como ficámos espantados com a tua precipitação no caso do Panteão.
Começam a ser falhas a mais para um profissional da política como tu és. Será que começas a preparar o terreno para colocar de novo o PS na navegação ao centro que só pode almejar-se satisfazendo os interesses que ao centro se perfilam? Será que estás num ponto de viragem política, entre Cila e Caribdis, e é essa contradição que vem ao de cima e te atrapalha?
Depois de teres provado que as opções do Governo de Passos, contra o mundo do trabalho e contra os mais desfavorecidos, não foram impostas pela troika mas derivaram de uma opção ideológica benquista pela direita, já que é possível pagar aos credores, baixar o deficit do Estado e aumentar os salários e as prestações sociais, além de se ter a economia a crescer em simultâneo, não havia necessidade de tanta atrapalhação.
Eu sei que as pressões são enormes. A direita lusa, chegou finamente à conclusão de que não conta com apoio da União Europeia para deitar abaixo a Geringonça, enquanto fores pagando aos credores e cumprindo as regras europeias. E começaram a trabalhar por conta própria. Puseram o país a arder, e todos os dias te metralham na comunicação social que controlam por completo, quer empolando todas as falhas que tens exibido, quer ocultando os sucessos da tua governação. É o vale tudo, desde a mentira mesmo, até à manipulação mais descarada.
E decidiram enterrar Passos Coelho, e arranjar-te outro interlocutor para te tornar o xarope mais aprazível e menos amargo.
Caro António Costa. Se o teu programa oculto é mesmo tomares o xarope Rio ou Santana, caso não possas governar sozinho, não te auguro grande futuro, nem a ti nem ao PS, e tal seria uma traição desmedida a todos aqueles a quem devolveste algum conforto e alguma esperança. E seria para o PS o princípio de um processo de decrepitude que outros partidos socialistas já conheceram por essa Europa fora -, na Grácia, na França, e mesmo na Espanha -, e que tu evitaste até ver.
Os eleitores têm o direito a, pelo menos, poderem acreditar que a democracia lhes permite escolher opções de conteúdo diferente e não opções de igual conteúdo, só diversas na aparência e nos rostos dos protagonistas.
É que, quando os eleitores deixam de acreditar na soberania das suas escolhas os sistemas políticos colapsam e desagua-se facilmente em populismos de cor incerta, como se tem visto por essa Europa fora. Só que o populismo, em si, não é a doença. É apenas um sintoma.
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