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terça-feira, 14 de novembro de 2017

Legionela: não se pode ilegalizar a morte e o descaramento

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 14/11/2017) 

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O surto de legionela está certamente entre os temas que não domino. Esta semana fui aprendendo umas coisas. A primeira é que a legionela se forma com facilidade em determinadas circunstâncias atmosféricas e em águas paradas. A segunda é que bastam 24 horas para surgir, o que quer dizer que as análises, cujos resultados só conhecemos ao fim de 15 dias, não são grande segurança. A terceira é evidente: os hospitais são, pelo ambiente e pela fragilidade das vítimas, lugares especialmente propícios a todo o tipo de surtos epidémicos. E a quarta é difícil de aceitar, sobretudo para um deputado que está convencido que o governo anterior ilegalizou uma bactéria: não há risco zero. Não podemos mesmo ilegalizar a morte. Podemos apenas tentar atrasá-la o mais possível. É uma das funções que damos ao Estado.

Há coisas em que o Estado parece ter falhado. Apesar dos avisos do Ministério Público, depois do caso de Vila Franca de Xira, há três anos, continua a não haver legislação para que a legionela seja considerada, de forma quantificável, fonte de poluição. Sem essa quantificação a fiscalização torna-se inútil. Mais uma vez, há lentidão na correção de erros. Parece que há melhores alternativas do que estas chaminés, que evitem o uso de água e, com ela, a legionela e outras bactérias. E o Estado, seja por responsabilidade do Hospital ou do Ministério Público, lidou com uma extraordinária insensibilidade com o sofrimento das vítimas, na forma como se interromperam os velórios. A burocracia não justifica a falta de bom senso. O pedido de desculpas do ministro da Saúde foi saudado. Mais porque se tornou o novo mantra da política nacional do que por qualquer razão substancial. Ninguém sabe ainda quem tem responsabilidades de quê.

Mas há quem esteja, a partir desta história, a dar um salto para o debate sobre o estado de evidente degradação do nosso Serviço Nacional de Saúde. Não tenho dados para atribuir este surto aos cortes de uma década no SNS. Nem eu nem quem tem corrido o risco de criar uma relação de proximidade entre os incêndios de Pedrógão e o surto de legionela. Parece que houve cortes na fiscalização, feitos pelo governo anterior e não corrigidos por este, mas ninguém pode criar uma relação de causalidade entre a falta de fiscalização e o surto. Nem sequer é claro que a fiscalização que se fazia fosse muito eficaz.

O que me espanta é ler e ouvir pessoas que defenderam com unhas e dentes as políticas de austeridade e a necessidade de emagrecer o Estado a juntarem no mesmo saco Pedrógão e legionela para se queixarem dos efeitos dos cortes. Fica-se com a sensação que gostam do abate na fatura mas descartam-se das vítimas da poupança.

Os que tratam os funcionários públicos como “clientela” têm de ser recordados que as funções do Estado pelas quais hoje clamam são cumpridas por pessoas. Os cuidados médios e a fiscalização fazem-se com trabalhadores do Estado. Graças ao emagrecimento de que se orgulham, hoje temos uma Função Pública envelhecida (assim ditou a estúpida regra de só entrar um novo funcionário público por cada dois que saíssem) e mal paga. Se olharmos para a Saúde, só um médico abnegado e militante do SNS aceita ficar exclusivamente no público, tal é a diferença de rendimentos e tratamento entre o privado e o Estado. Estamos a pagar o preço de uma dieta e é assombroso que os mais histéricos a apontar o dedo sejam os que mais a desejaram e celebraram.

Querem ser o bom aluno europeu? Isto é só o começo da derrocada dos serviços públicos. Mas conhecemos o padrão: os mesmos que defenderam os cortes, lamentam agora a ineficiência dos serviços do Estado e é nela que encontrarão o derradeiro argumento para a sua privatização.

Dito isto, falta provar que os cortes no SNS têm qualquer relação com o surto de legionela. Pode ser o mais difícil de aceitar: que o risco não pode mesmo ser ilegalizado.

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