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quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O Orçamento é de esquerda. Mas deixa esquerda para o futuro?

Estátua de Sal

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/11/2017)

Daniel Oliveira

Daniel Oliveira

A oposição começou por dizer que vinha aí a desgraça. Depois os resultados foram bons e, como eram bons, só podiam resultar do que ela própria defendia. O Governo estava a fazer o mesmo que o anterior. Era uma austeridade de esquerda. De centro, mesmo. E o PCP e o BE estavam no bolso. Com o novo orçamento começou a voltar o discurso da desgraça anunciada. Apenas os incêndios, mais apetecíveis, acabaram por dispensar a retórica.

O ziguezague entre o anúncio do Diabo porque Costa cedeu ao radicalismo de esquerda e a confirmação da austeridade porque Costa meteu esquerda no bolso não retrata uma realidade em permanente mudança. É apenas o retrato de uma oposição sem discurso e a tatear oportunidades. Este orçamento é apenas a continuação de um caminho que já foi feito, coerente com as prioridades definidas pelos acordos do PS com BE e PCP.

Como os anteriores, este é um orçamento de esquerda, com políticas redistributivas. Haverá um aumento dos escalões do IRS (o que significará um desagravamento fiscal para a classe média baixa, fazendo com que o nosso sistema volte a ser mais progressivo), a sobretaxa acabará definitivamente e a isenção de pagamento de IRS subirá para os 8850 euros de rendimento anual.

Apenas para os trabalhadores com recibos verdes não há boas notícias fiscais. Mantêm-se as taxas para bens importados, sobre a banca e sobre as empresas de energias e tudo indica que o PCP conseguirá o aumento da derrama para empresas com lucros superiores a 35 milhões. As carreiras na Função Pública serão descongeladas com efeitos salariais progressivos e sem efeitos retroativos que teriam um impacto orçamental arrasador. Haverá mais aumentos das pensões com um extra de 10 euros para as mais baixas, um aumento do salário mínimo nacional para 580 euros, o fim do corte de 10% no subsídio de desemprego e a reposição dos valores do Rendimento Social de Inserção, Complemento Extraordinário para Idosos e abono de família. Se isto não é um orçamento de esquerda não sei bem o que seja a esquerda.

Mas todas estas mudanças são sobre o presente. Agora, que estamos a ultrapassar a fase de reposição da normalidade, depois de Passos e da troika, preocupa-me a marca que este governo queira deixar para o futuro. Se quer deixar a marca da esquerda de que se reclama. E não há certeza disso. Está de fora da agenda deste governo a contratação coletiva e da dos seus aliados as prioridades para o investimento público.

Assistimos, nos últimos anos, a um enorme recuo nas leis do trabalho. Sem reverter algumas das mudanças feitas o Governo não mexe em nada de estrutural. Mexe nos rendimentos dos funcionários públicos, mexe nos rendimentos dos reformados, mexe nos rendimentos dos trabalhadores mais pobres através do aumento do salário mínimo, até mexe nos rendimentos finais de todos através do sistema fiscal e dos apoios públicos. Mas a desigualdade, maior doença deste país, fica intocada. Porque é na negociação no privado que grande parte da distribuição da riqueza é determinada. De nada vale dizer que o nosso caminho não são os salários baixos e deixar a maioria dos trabalhadores entregues à sua sorte, sem nenhuma proteção legal para não serem obrigados a aceitar tudo o que lhes é imposto.

É grave a indisponibilidade do Governo em mexer na caducidade da contratação coletiva, que tem bloqueado a capacidade de negociação dos trabalhadores e dos seus sindicatos. E falta tudo o resto no sector do trabalho. Pouco mudou no combate à precariedade fora do sector público. Não foi, ao contrário do que se prometera, revogada a imposição do banco de horas individual. A Autoridade para as Condições de Trabalho continua a funcionar com pouquíssimos meios, tratada como parente pobre da fiscalização.

Quanto ao investimento público, ele finalmente virá. A questão, neste caso, é a aparente ausência dos aliados do Governo neste debate. BE e PCP têm de decidir se apenas estão presentes para saber quem consegue sacar mais ao Governo, como se de sindicatos se tratasse, ou se têm qualquer coisa a dizer sobre as grandes opções para o investimento público. Não chega falar da devolução de rendimento e de direitos, apesar do país dever aos dois partidos à esquerda muita da pressão política para que ela esteja a acontecer tão depressa. É preciso defender prioridades para o investimento, fazer propostas, contribuir para a definição de escolhas. Não dá muitos votos, mas conta muito para o futuro.




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