(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/11/2017)
Daniel Oliveira
Comprar um disco ou um filme é já quase um luxo de colecionistas. E sendo colecionistas, é provável que regressem ao vinil. De resto, o consumo de massas faz-se através do pagamento pelo acesso à música, que fica armazenada no telemóvel. Não, já nem é assim. O que hoje se paga é o acesso a plataformas que nos permitem ouvir música que nunca chegam a estar armazenadas em algo que seja nosso. Nem sequer guardamos o que consumimos. E mesmo serviços de streaming de música, podcast e vídeo como o Spotify já são a pré-história de tudo isto. A desmaterialização de muitos dos nossos bens de consumo transformou a propriedade em acesso.
Esta é a parte fácil. Acontece que esta lógica está a passar para grande parte dos consumos. Lisboa já está repleta de motos elétricas que são alugadas à empresa eCooltra, que se limitou a seguir a lógica que há muito domina o uso das bicicletas nas grandes cidades europeias e que, por uma enorme resistência conservadora, demorou bastante tempo a chegar a Lisboa. E chegou, claro, por um privado, que se fará pagar bastante bem - e não, como deveria acontecer com um serviço que será monopolista, através de um serviço público. Apanha-se onde se quer, deixa-se onde se quer, paga-se o tempo que se andou. Este serviço surgirá muito brevemente para automóveis. Isto é o futuro nas grandes cidades: em vez de ter carro aluga-se o carro. Seja o serviço de táxis transvestido de aluguer, como é o caso da Uber que temos, seja pelo aluguer de carros sem motorista, seja pela utilização de carros autoguiados, que estará muito próximo.
Assim como as novas formas de consumir música, cinema e televisão mudaram radicalmente as indústrias do entretenimento e os nossos hábitos culturais, as novas modalidades de aluguer de curtíssima duração de veículos mudarão radicalmente a indústria automóvel e a mobilidade nas cidades. E apesar da crise que vivemos no mercado de arrendamento, é bem provável que mesmo esse mercado venha a ganhar nova centralidade.
O meu título é obviamente provocador. A propriedade não vai acabar. Mas usar em vez de ter – carros, música, filmes, casas, tudo – é o futuro. Como sempre, isso terá consequências negativas e positivas. A minha insistência contra o deslumbramento em relação às tecnologias pretende que nunca se ignore os seus efeitos perversos para os tentar minorar.
As consequências positivas são óbvias e poderosas. Antes de tudo, ambientais. Menos produção material é menos desperdício e poluição e mais reutilização. No caso da mobilidade, é menos poluição e menos engarrafamentos. Tem vantagens económicas, sobretudo para países como Portugal: a ausência de compra permite menos endividamento das famílias, um dos maiores problemas do nosso tempo. Acabam as prestações do carro, o crédito ao consumo e, se o arrendamento imobiliário renascer, menos crédito à habitação.
Depois há o outro lado da moeda. Esta nova forma de consumo tenderá a acentuar a crise no sector industrial, transferido cada vez mais recursos para os fornecedores e cada vez menos para a produção. Quem quiser fazer previsões não precisa: basta olhar para a indústria do entretenimento e da informação para perceber o que irá acontecer na distribuição de recursos e de poder. Paradoxalmente, tenderá a pôr em crise os transportes coletivos, o que acaba por nos devolver alguns problemas ambientais e de qualidade de vida urbana. Mas o mais importante, desafiante e perigoso é o que nos parece, à primeira vista, melhor: o fim da propriedade. Perigoso porque a propriedade não acaba. Ela concentra-se.
Sim, há imensos aspetos positivos na transformação da compra em aluguer e o mais importante é o que mais nos deve mobilizar: a preservação deste planeta. Mas isso implica que as famílias de classe média deixarão cada vez mais de acumular património, o que, apesar de tudo, sempre foi uma fonte de segurança e de mobilidade social.
Ou seja, esta nova forma de consumo tende a concentrar a propriedade em grandes empresas – incluindo a propriedade dos carros que usamos, das casas onde vivemos e de quase tudo o que precisamos no nosso quotidiano. O que resultará em três processos concentracionários: a concentração empresarial, a concentração de poder e a concentração da riqueza. Aumenta a desigualdade. Este é o lado negro do que pode salvar o planeta. A não ser, claro, que abandonemos os preconceitos em relação ao papel do Estado na economia e ele desempenhe algum papel nesta história para maximizar as vantagens e minimizar os efeitos perversos. Não está com ar disso.
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