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sábado, 11 de novembro de 2017

Webslavery

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 11/11/2017)

Daniel

Daniel Oliveira

Mais do que investimento externo, a Web Summit ajudará a mudar as mentalidades, oferecendo aos jovens uma nova “narrativa” para que percebam que no “mercado de trabalho do futuro” vão ser eles “a criar os seus próprios empregos”. Carlos Moedas falava para a TSF e foi com estas palavras que juntou a sua excitação à excitação de governantes, jornalistas e muitos parolos. Falemos então dessa “narrativa” onde não cabe o comissário europeu, que preferiu continuar no velho mundo em que o seu trabalho é criado pelo Estado e lhe dará uma reforma confortável. Falemos desse maravilhoso futuro em que todos seremos empreendedores.

Quando se fala desta nova realidade muitos se imaginarão com um destino semelhante ao de Mark Zuckerberg, Steve Jobs ou Jeff Bezos. Mas o mais provável é que acabem a consultar a página do “Mechanical Turk”. O “turco mecânico” foi criado pelo escritor e inventor húngaro Wolfgang von Kempelen. Era um boneco que jogava e ganhava partidas de xadrez. Mas a inteligência artificial desta máquina era uma aldrabice. Ela tinha uma pessoa lá dentro. A Amazon inspirou-se nesta fraude para criar uma plataforma a que deu o irónico nome de “Mechanical Turk” com uma não menos bem humorada assinatura: “Artificial Artificial Intelligence”. A página, que é apenas uma entre muitas do género, serve para procura e oferta de “Human Intelligence Tasks” (HITs), minúsculos trabalhos na internet, feitos a partir de casa. Tarefas como identificar pormenores em imagens, escrever descrições de fotografias, colocar informação em bases de dados, colocar tags e likes, fazer transcrições ou buscas em redes sociais. O trabalho ultrafragmentado pode durar cinco minutos e ser apenas parcialmente executado. Os fornecedores (esqueçam os colaboradores, como esqueceram os trabalhadores) são complementares às máquinas e recebem cêntimos por cada pequena tarefa numa produção absolutamente alienada e sem qualquer tipo de vínculo, direito, horário ou proteção. Como os que se plantavam às portas das fábricas na esperança de serem escolhidos para o trabalho à jorna, cada um criará, de facto, o seu emprego. Empregos que duram minutos.

A globalização associada à tecnologia conseguiu romper as amarras com que o Estado e a lei seguravam o capitalismo. E é com esta nova “liberdade” que o século XXI nos transporta para o século XIX. Estranho é que as mesmas pessoas que celebram sem qualquer perspetiva política o espírito do Web Summit se indignem com os Paradise Papers. Uma coisa é a outra.

“Mechanical Turk” e offshore prosperam num mundo globalizado onde a tecnologia permite contornar todas as formas de regulação. É essa, e não a velha possibilidade de usar o telefone para chamar um táxi, a grande vantagem concorrencial da Uber. É essa, e não a capacidade de vender pequenos trabalhos a quem os procura, a grande vantagem concorrencial do “Mechanical Turk”. Não sou um ludista pronto para destruir as máquinas. Mas o papel dos políticos ou dos eurocratas que capturaram os seus poderes não é impor novas “narrativas” para que aceitemos como natural a selva que nos reserva o futuro. É criar os instrumentos regulatórios para que a tecnologia sirva para nos libertar e não para nos escravizar. Histórias como as dos Paradise Papers explicam-nos porque não o fazem: não é para nós que trabalham.

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