(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 30/12/2017)
2017 é um ano que não me vai deixar particulares saudades. Sendo que, olhando e meditando sobre as coisas que hoje acontecem, não sei se para a frente haverá muitos anos que venham a ser melhores do que os anteriores. Não se trata de pessimismo militante nem de velhice avançante: trata-se de observar e não entender. Lá, onde eu me sento a olhar o campo e as estrelas à noite, há sinais iniludíveis de que alguma coisa de grave e estranho está a acontecer. É verdade que as ribeiras secas, as barragens vazias, o terreno gretado, podem ser apenas consequência de um ano de seca, ou mesmo dois de seguida — que os há ocasionalmente e eu já vivi vários. Mas nunca tinha assistido ao silêncio absoluto das rãs, ao desaparecimento de toda a espécie de pássaros e aves no horizonte, à morte prematura de tantas árvores, enfim, aos sinais de vida que se vão esfumando. A grande questão é saber se o clima está mesmo a mudar de vez ou se estamos apenas perante um ciclo, repetido e reversível, mas que os homens vêem sempre como ameaça de catástrofe — pois a natureza humana, essa, nunca muda e só raramente é optimista. Mas, na dúvida, seria mais prudente ser pessimista e prestar toda a atenção aos cientistas que, fundados em estatísticas e dados de medição inatacáveis, não têm dúvidas de que estamos a entrar num território desconhecido e perigoso de alterações climáticas. Justamente a pior altura para que a grande nação responsável por 25% dos gazes com efeito de estufa, os Estados Unidos da América, escolhessem para seu Presidente um croupier de casino, obcecado por espelhos dourados e afectado por gritantes problemas do foro psiquiátrico.
“Make America great again”, “Make Britain great again”, “Make Catalunha great again”, “Make Polonia, Roménia, Hungria great again”. E tantos mais. Povos, nações, países, as mais das vezes prósperos e integrados com outros por laços comerciais, tratados e acordos mutuamente vantajosos, que subitamente se querem redescobrir e afirmar grandes e únicos. É estranho que quanto mais os problemas se tornam globais e as soluções eficazes têm de ser encontradas entre todos, mais os nacionalismos e a fatal tentação do isolacionismo ganham terreno. É muito difícil construir uma nação viável, é um trabalho de séculos, que custa sangue, sofrimento, desilusões com as quais se aprende. É muito difícil construir uniões de nações e países que passaram séculos a combater-se, até perceberem que problemas comuns se resolvem melhor com soluções comuns. Mas todo este edifício, laboriosamente erguido, é muito fácil de destruir: num sopro tudo se desmorona. Basta a loucura dos povos ou a irresponsabilidade dos líderes. Quando alguém como Puigdemont passa por herói da independência da Catalunha, Theresa May passa por estadista ou Donald Trump passa por líder do “mundo livre”, devemos ter medo: a loucura dos povos aliou-se à irresponsabilidade dos líderes. E quando o génio se solta da garrafa, será que é possível levá-lo de volta lá para dentro? A nossa história recente, a história da Europa e do mundo, diz-nos que sim, que é possível. Mas vários milhões de mortos e várias catedrais destruídas depois.
Para mim, 2017 ficará sempre como o ano da morte de Mário Soares. E, na minha memória, Mário Soares será sempre único e inimitável. Com todos os seus defeitos, todo o seu abençoado mau feitio e teimosia, ele foi, de facto, o último dos homens políticos que, tantas vezes errado e enganado pelas conjunturas, nunca falhou no essencial. Sabê-lo aqui, ali ao lado, foi sempre para mim uma sensação de conforto e tranquilidade sobre a suja espuma dos dias: enquanto Soares ali estivesse, este país estaria sempre a salvo de várias malfeitorias. Tenho saudades da alegria com que saudava a vida e as amizades, com que enfrentava os perigos e as conveniências, e do crudelíssimo desprezo que votava aos que não respeitava e com quem não condescendia. Foi um homem, enquanto tantos outros apenas vestiram ou vestem calças compridas.
2017 foi também o ano em que fomos confrontados com uma devastadora verdade, que todavia estava lá para quem a quisesse ver: o Estado que construímos não presta. Os 115 mortos dos incêndios de Verão foram a prova final disso, mas o que o demonstrou eloquentemente foi o caminho até lá chegar: dinheiro e mais dinheiro injectado nos bombeiros e nos meios de combate aos incêndios, sem nenhuma verificação sobre a sua necessidade, adequação e preço; uma Protecção Civil que ao menor sopro de vento nos coloca em “estado de alerta laranja”, que no Inverno fornece recomendações tão sábias como sair à rua bem agasalhado e no Verão nos recomenda roupas frescas, chapéus e sombra, mas que, na hora da verdade, falha em toda a linha; e uma política (se assim lhe podemos chamar) de prevenção contra os incêndios que só agora descobriu que a questão do tipo de floresta que temos é determinante — mas que, aposto o que quiserem, em nada de essencial irá mudar, porque os interesses da fileira das celuloses são mais importantes e condicionantes do que 115 mortos e 500 mil hectares ardidos. Porém, não foram só os incêndios: a exemplar história da Raríssimas, apesar dos seus particulares contornos de novela venezuelana, serviu para mostrar como uma invocada boa causa chega para afastar qualquer preocupação de controlo e exigência sobre os dinheiros públicos injectados nas IPSS ou Fundações privadas, financiadas (uma originalidade portuguesa...) com dinheiros públicos. Arranjam-se umas primeiras-damas para apadrinhar, umas medalhas de comendador para certificar a excelência da causa, e siga o vira, porque ninguém se vai preocupar em olhar a coisa mais de perto. Temos excelentes intenções e excelentes e abundantes leis — para tudo e mais alguma coisa. Mas fiscalizar, controlar, pedir contas, acompanhar a execução das leis e das boas intenções — tudo aquilo que dá trabalho e não dá títulos de imprensa — isso já não faz parte dos hábitos do Estado. Até que um dia se descobre que, aqui e ali, o rei vai nu, e é o espanto geral: “rigoroso inquérito”, infalivelmente terminado sem quaisquer responsáveis, e com um debate parlamentar em que o actual Governo acusa o anterior e o anterior acusa este. Como se o Estado — que é a continuidade entre uns e outros e a garantia de que não é dependente de partidos ou maiorias circunstanciais — não existisse.
Enfim, para nós, 2017 é o ano deste século com melhores resultados económicos de que há memória: menos défice, menos juros da dívida, mais emprego, mais crescimento, mais exportações. Mas por alguma difusa razão, que eu partilho, tudo isto parece colado com cuspo e assente em variáveis que não controlamos, excepto uma: a avalanche turística. Forçosamente, teremos de olhar mais além se não queremos que o nosso destino seja o de apostarmos tudo em sermos lar de reformados europeus ou colónia chinesa. A boa conjuntura económica (que é como a saúde boa: um estado passageiro que não augura nada de bom), deveria ser uma rara oportunidade para pensarmos para a frente.
Como nos podemos preparar para anos de seca e de potenciais incêndios devastadores? Como podemos lutar contra a desertificação do país? Como nos livraremos da dívida num prazo de 20 anos? Como financiaremos os custos crescentes do envelhecimento populacional e da trágica taxa de natalidade? Como poderemos potenciar tudo aquilo que faz de Portugal um dos melhores países do mundo para viver? Se começar a servir para isso, que venha 2018!
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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