(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 12/12/2017)
Mesmo que tenha algumas observações a apontar ao rigor da reportagem da TVI sobre a Raríssima – que se prende sobretudo com o facto de se ter perdido o bom hábito de ouvir sempre todas as pessoas envolvidas, o que já resultou num ou noutro desmentido factual –, o que lá se vê e ouve chega e sobra para ficar arrepiado. Como é possível que alguém use uma associação com aqueles fins para se instalar na vida? Claro que é possível. Como em todo o lado, basta que a oportunidade exista. A ideia que as pessoas se dedicam a este tipo de atividades são genericamente boas e generosas – a própria ideia que o mundo se divide entre pessoas boas e más – é infantil.
A história contada pela TVI poderá ser mais grave do que outras histórias que conhecemos, mas ela é, em dimensões diferentes, muito mais comum do que pensamos. A verdade é que as ONG, IPSS e associações (o terceiro sector, depois do Estado e do privado) funcionam, em Portugal e não só, com pouquíssimo escrutínio. Assumimos que este tipo de organizações se dedica a atividades altruístas, ignorando que onde há seres humanos há todas as virtudes e defeitos que podemos encontrar em qualquer lado. E isso é verdade, sem qualquer diferença, numa ONG, numa igreja, num partido político, numa empresa, num organismo do Estado. A questão é sempre saber que instrumentos de escrutínio e controlo temos para impedir que o abuso aconteça.
Na realidade, com alguma experiência política e de associativismo que levo, não encontrei ainda, com todos os seus enormes defeitos, nenhum tipo de organização tão sujeita a escrutínio como os partidos políticos. Porque, ao contrário das associações ou sindicatos, eles estão preparados para o conflito interno. Não vivem na ilusão de uma intrínseca bondade de quem lá está. É este cinismo pessimista, que tanto incomoda as pessoas, que os defende. E, mesmo assim, como tão bem sabemos, está muito longe de chegar para impedir o abuso e a corrupção. Pelo contrário, a maior parte das ONG, IPSS e associações funcionam numa lógica quase familiar, onde não existe rotatividade de dirigentes e o seu líder se confunde com a própria organização. Daí ao abuso é um passo quase inevitável.
Quando passamos isto para a escala global, com organizações que trabalham em todo o mundo e movem milhões de dólares e milhares de funcionários e colaboradores, as coisas ganham contornos assustadores. À medida que vamos conhecendo as suas perversidades, perdemos as ilusões em relação a este tipo de organizações. Mas não devemos. Assim como não devemos descrer da democracia só porque sabemos de políticos corruptos. Elas são apenas tão más ou tão boas como todas as outras.
Ao contrário do que gostamos de pensar, o trabalho feito por associações, ONG ou IPSS não garante à partida mais empenho e honestidade do que o trabalho feito por serviços do Estado. Pode ser, por uma questão de proximidade e especificidade, mais eficaz. Mas a capacidade de escrutínio será sempre menor.
O apoio público do Estado a estas associações é legítimo mas comporta sempre riscos. Porque a Raríssima não é assim tão excepcional. Porque atrás de boas intenções podem estar negócios, agendas religiosas e ideológicas, ambições pessoais. Não devemos diabolizar o associativismo, que tanta falta nos faz. Mas é bom percebermos que muitos dos pecados que atribuímos à política são apenas pecados humanos. Estão em todo o lado. E de forma especialmente aguda onde há menos mecanismos controlo.
Talvez ajude a explicar a falta de escrutínio a este tipo de organizações a reação que imediatamente se sentiu ao caso da Raríssima. A vontade de encontrar uma qualquer ligação, próxima ou distante, de políticos do PS ou do PSD à associação – incluindo quem colaborou sem qualquer contrapartida com esta associação, provavelmente movido pela mesma boa-fé que todos nós perante os seus propósitos – reflete uma ideia estranha: que o escrutínio só se justifica perante o envolvimento do poder político, que um escândalo só o merece ser se envolver deputados ou ministros, que se as coisas cheiram mal têm de ter um eleito à mistura. De repente, parece que o que nos foi relatado só nos incomoda se estiver envolvido um malandro de um político.
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