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sábado, 20 de janeiro de 2018

A máquina de lavar roupa

Ladrões de Bicicletas


Posted: 20 Jan 2018 01:18 AM PST

No debate quinzenal de 9/1/2018, o primeiro-ministro desvalorizou uma pergunta do Bloco de Esquerda sobre a qualidade de emprego que está a ser criado (36'30'') e, baseando-se nos dados do INE, questionou uma análise feita pelo Observatório sobre Crises e Alternativas, em duas publicações (aqui e aqui), com larga projecção mediatica, porque baseada numa "metodologia" que empola os números da precariedade. Disse ele:

"Os números do INE não consentem duas interpretações. 70% dos novos contratos de trabalho são contratos sem termo, não são contratos precários, são contratos de trabalho definitivos. O estudo que cita é um estudo que deve ser analisado, primeiro porque não se refere apenas ao período destes dois anos, mas mais extenso; e segundo pela metodologia própria com que trabalha que é uma metodologia onde não identifica contratos de trabalho, mas trabalhadores [aqui alterei o que o primeiro-ministro disse porque, obviamente, não era isso que ele queria dizer] e em que, por isso, há porventura um empolamento daquilo que são os contratos precários por via da multiplicação de contratos na mesma pessoa. Agora, os dados oficiais, formais, do INE dizem que, nestes dois anos, são 76%. E mais: tem vindo a melhorar porque os dados de 2017 já dizem que 78% do emprego existente em Portugal é sem ser contrato a termo e, portanto, emprego com maior qualidade.

Mas não é inteiramente assim. Vamos por partes.

1) "70% dos novos contratos são contratos sem termo, não são precários, são (...) definitivos": A ideia do primeiro-ministro baseia-se nos valores do INE relativas à criação liquida de emprego.

Fonte: INE, Inquérito ao Emprego

Na verdade, no mandato de 2016/17 foram criados 242 mil novos empregos, dos quais 264 mil postos de trabalho por conta de outrem (TPCO). E destes 193 mil com contratos sem termo (73%), 62 mil com contratos com termo (23%) e 9 mil com outro tipo de contratos (4%). Mas serão eles "definitivos"?
Olhando para a imagem ao lado, dir-se-ia que a criação de postos de trabalho TPCO segue uma evolução contínua e progressivamente positiva. Tudo estaria a correr bem e cada vez melhor. Mas a realidade é bem mais complexa. Para que se tenham criado aqueles postos de trabalho, esse foi o resultado de um fluxo contínuo de pessoas que se deslocaram entre o emprego, o desemprego e a inactividade. As pessoas que conseguem um emprego, não o mantêm definitivamente. O mundo do trabalho de trabalho vive presentemente ciclos contínuos de criação e destruição de postos de trabalho, que geram precariedade e instabilidade social e pessoal, demográfica e migratória, com impactos nas contas públicas, na saúde pública e na estabilidade da Segurança Social. E para esse retrato, os números do INE ilustram bem o que se passa.

Fonte: INE, Inquérito ao Emprego

O gráfico mostra que a criação líquida de empregos é apenas uma pequeníssima parte do volume de emprego criado, que por sua vez é igualmente destruído. Quanto desse emprego eram contratos de trabalho sem termo? Quantos eram postos de trabalho a prazo? Nunca se saberá. Por isso, é um pouco arriscado dizer que a criação de emprego que esta a ser feita é maioritariamente de contratos permanentes. E afirmar categoricamente que os postos de trabalho criados (do ponto de vista líquido) são mesmo "definitivos" é uma aventura oratória que,  a prazo, se arrisca a pagar cara.
2) "O estudo que cita é um estudo (...) em que, por isso, há porventura um empolamento daquilo que são os contratos precários": De que estudo fala o primeiro-ministro? Trata-se como é visível no link acima mencionado de uma análise aos dados do Fundo de Compensação do Trabalho (FCT) e do Fundo de Garantia de Compensação do Trabalho (FGCT), criados em 2013 para pagar metade das indemnizações por despedimento. Esses dados, é verdade, não estão construídos para seguir o trajecto dos trabalhadores assalariados, mas quantificam e qualificam os contratos que foram criados desde finais de 2013, durante o período da retoma. Ou seja, um mesmo trabalhador pode ter vários contratos de trabalho desde 2013 e, por isso, não se trata de uma medida eficaz de criação de emprego. Mas é-o quanto ao tipo de contratos que se estão a criar. Porquê? Porque os FCT/FGCT quantificam o número de contratos que foram criados desde finais de 2013 e que se mantêm vigentes a cada data de avaliação. Assim, em Outubro de 2017, havia 1.282.471 contratos em vigor criados desde finais 2013. E desses, apenas 430 mil eram contratos sem termo. Como é possível que se tenham criado 1,3 milhões de contratos quando - segundo o INE - apenas se criaram, em termos líquidos, 193 mil postos de trabalho? Porque o que se verifica é que a enorme rotação de contratos que está a atingir aquelas pessoas que supostamente estariam "protegidas" com os supostos "contratos definitivos" anteriores à retoma. Ao contrário da teoria oficial (Centeno inclusive defende-a), não há uma real segmentação do mercado de trabalho, entre "protegidos" e "desprotegidos": todos estão desprotegidos como esses números revelam. O que se verifica no mundo do Trabalho é uma imensa mortandade entre os contratos assinados. Veja-se os dados do FCT/FGCT relativos a Abril de 2017:

Fonte: FCT/FGCT

Como é visível, este tipo de evolução cíclica assemelha-se muito ao ritmo de passagem entre emprego, desemprego e inactividade estimados pelo INE. E caso houvesse dados personalizados por trabalhador dos FCT/FGCT, muito provavelmente se teria uma avaliação condizente.
3) "Os números do INE não consentem duas interpretações": Como se viu, os números do INE não têm apenas uma interpretação; apenas tem uma interpretação se o analista olhar apenas para um dos números do INE. Mas assim nunca se fará uma análise realista do que se passa. Se o primeiro-ministro olhar apenas para a criação líquida de emprego, tem razões para ficar contente; se olhar para a criação bruta de emprego, verificará que o mundo é muito diferente. Claro que é possível verificar que o ritmo de criação e destruição de postos de trabalho está a abrandar face aos anos anteriores e isso é positivo, mas está longe de ser um mundo pacificado. E mais: os números do INE, quando têm em consideração a criação e destruição de postos de trabalho, assemelham-se muito dos dados da metodologia que - erradamente - o primeiro-ministro desvalorizou.
4) Os números têm "vindo a melhorar porque os dados de 2017 já dizem que 78% do emprego existente em Portugal é sem ser contrato a termo".Será que é assim? Mesmo olhando para a estrutura do emprego que está a ser criado do ponto de vista líquido, verifica-se que 2017 pode não ter sido um ano que prolongou uma tendência positiva.

Fonte: INE, Inquérito ao Emprego

Fonte: INE, Inquérito ao Emprego

Em 2016, o peso dos contratos sem termo foi de 79.1% face aos postos  TPCO criados. E em 2017 foi menor: 69,5%. Porquê? Talvez porque o ritmo de criação de postos com contrato a prazo tenha sido anormalmente baixo (2,6%). Porquê? Não se sabe, talvez porque houve decisões de investimento adiadas pelo pânico gerado por um governo de esquerda. A Direita terá assustado bem os empresários? Não se sabe. O certo é que o peso dos contratos de trabalho sem termo gerados pela retoma, está abaixo do valor da estrutura do emprego quando analisados do ponto de vista do stock de emprego, e não apenas dos criados durante 2016/17. Veja-se o gráfico ao lado para verificar que, do ponto de vista da estrutura do emprego, nada tem mudado e o peso dos contratos sem termo está acima dos gerados pela retoma 77-78% contra ao redor dos 70%). E estamos a falar de dados do INE...

5) Os números têm vindo a mostrar que o emprego gerado é "emprego com maior qualidade". Como se viu, esta afirmação é um pouco ousada, mas toda a gente sabe que os debates no Parlamento não primam pela capacidade de análise das estruturas. O combate de trincheira apenas gera mais defesa de trincheira... Na realidade, o emprego gerado não só é mais precário como essa precariedade tem gerado condições contratuais mais recuadas. A nível salarial, revela-se que os contratos permanentes - seguindo os dados do FCT/FGCT - têm vindo a perder terreno na sua remuneração média, o que é condizente com a progressiva penetração em ofensiva dos novos contratos naquilo que se dizia ser o quadro protegido dos trabalhadores com contratos sem termo. Um turbilhão que vai se alasstrando a cada vez mais trabalhadores, contribuindo para a redução salarial, tal como era objectivo da desvalorização salarial defendida pelo PSD/CDS e a troika. Se os valores dos anos de 2013 e 2014 poderão ser relativizados (tratava-se do início da base de dados), já em 2016 essa não é a situação.

Fonte: FCT/FGCT

Mais recentemente os valores dos contratos sem termo têm registado uma possível muito sensível melhoria, mas nada que se compare com a verificada nos contratos a prazo (mais de 100 euros). Em termos gerais, os dados contabilizados pelo Ministério do Trabalho, a partir dos descontos feitos para Segurança Social, revelam que, não só o valor médios dos salários globais pouco tem subido (uns 20 euros em vários anos), como do ponto de vista real (descontada a inflação), eles estão mesmo estagnados.

Ou seja, apesar da retoma económica e da subida do valor criado, a participação dos salários nesse criado deve estar a reduzir, contribuindo para maiores desigualdades.
Algo que não é de estranhar, uma vez que este governo manteve, grosso modo, todo o edifício legal do mundo laboral, não se podendo esperar que gere resultados muito diferentes. O mundo do Trabalho tem vivido - e continua a viver - em algo parecido como uma máquina de lavar roupa, usando a expressão feliz de José Castro Caldas para uma realidade insustentável no futuro.
Se o governo socialista quer ter resultados diferentes, terá de mudar esse edifício. Aqui, sim, é que não há lugar a duas interpretações. 

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