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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Com presidente eleita e candidato mais popular afastados, está consumado o golpe

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 23/01/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Já há uns meses ESCREVI sobre o processo judicial contra Lula da Silva e a sua inacreditável fragilidade. Nada, a não ser a convicção de denunciadores premiados cuja a liberdade depende da incriminação de Lula, permite corroborar que o triplex de Guarujá, em São Paulo, lhe pertencia formal ou informalmente. O facto deste mesmo apartamento ter sido aceite pela justiça brasileira como bem penhorado para que a construtora pagasse as suas dívidas é a prova final de que nem os juízes acreditam que o apartamento era do ex-Presidente. Tudo se resume, no fim, à visita do casal ao apartamento e a obras que terão sido por eles pedidas. Da real propriedade ou usufruto de qualquer espécie do imóvel não só não há provas como as que existem (a penhora) o desmentem. A maior prova da corrupção é Lula não ter pago nem discutido o preço a pagar por um apartamento que não comprou. Mudar a história do Brasil apenas com base numa visita a um apartamento revela a má-fé dos julgadores.

Como se pode impedir um cidadão de concorrer a umas eleições por ter recebido um pagamento que não só nenhuma prova diz existir como a própria justiça brasileira garante não ser seu? Quando nem sequer existe qualquer suspeita de que esse apartamento tivesse servido para pagar favores? Palavras do juiz Sérgio Mouro: “Este juízo jamais afirmou na sentença ou em lugar algum que os valores obtidos pela construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram usados para o pagamento de vantagem indevida para o ex-Presidente”. O pagamento que não foi recebido foi feito em troca de nada. Sobra nada. De resto, todo o processo vive de suposições em relação ao que Lula saberia do que acontecia na Petrobrás. Mas não há qualquer prova ou indício de que Lula tenha participado ou influenciado qualquer decisão da Petrobras para beneficiar a construtora OAS. Como escrevi antes, Lula é condenado por ter favorecido uma empresa que nenhuma prova ou indício forte permite dizer que favoreceu em troca de um apartamento que comprovadamente não lhe pertence nem legal, nem informalmente. Um julgamento assim dificilmente deixaria qualquer político brasileiro, do mais sério ao mais bandido, fora da prisão. E por isso tem recebido fortes críticas de muitos juristas brasileiros. Mas com o Brasil fortemente polarizado, a culpa ou inocência de Lula parece ser a última coisa que interessa a alguém.

Para que não haja, como tende a haver por cá, confusões com o que se passa com José Sócrates, este julgamento kafkiano, enquadrado num processo judicial carregado de irregularidades e atropelos à lei, tem de ser visto em perspetiva. Antes de mais, em conjunto com o afastamento da presidente Dilma Rousseff, com base na invenção de um crime de responsabilidade (a famosa “pedalada fiscal”), risível perante o mar de lama e corrupção da política brasileira. A motivação constitucional e ética dos deputados não precisava de outra contraprova que não fosse a própria sessão de votação do “impeachment”, um momento grotesco que fica como registo mais esclarecedor da natureza antidemocrática do golpe.

Os dois acontecimentos – afastamento inconstitucional da presidente eleita e processo contra o candidato mais popular de forma a impedi-lo de ir a votos – são peças fundamental deste golpe constitucional. E as motivações ficam evidentes na atuação posterior de Michel Temer, um homem que, apesar de todas as suspeitas e acusações de corrupção, foi mantido no lugar sem qualquer receio de incoerência. E que, depois de garantir que ele próprio não enfrentava a justiça, veio dizer, em Davos, que este julgamento serena os mercados porque mostra que as instituições brasileiras funcionam.

As graves mudanças na lei laboral e na lei da previdência, reformas profundíssimas num Brasil a viver em crise social, e com um pendor neoliberal em tudo oposto à “chapa” pela qual Temer foi eleito vice, explicam porque foi tão importante afastar Dilma e impedir o regresso de Lula. Que seja um governo com popularidade de 3% e sem qualquer legitimidade política (o sistema brasileiro é presidencialista, não é semipresidencialista ou parlamentarista) a levar a cabo estas reformas mostra o grau de desespero e descaramento da elite económica brasileira. Com a queda do preço de petróleo e a crise económica brasileira, já não se está a discutir, como no tempo de Lula, a distribuição da prosperidade mas a distribuição dos sacrifícios. E, com essas coisas, a oligarquia brasileira, ainda plena dos seus tiques esclavagistas, não brinca.

É preocupante que a esquerda brasileira se tenha colocado numa situação de total dependência em relação a Lula da Silva. É extraordinário que, em 12 anos de poder num país da dimensão do Brasil e com um partido tão implantado como o PT, não tenha conseguido construir outras lideranças carismáticas. Isso fragilizou o próprio Lula, colocando-o na mira do ataque – os seus opositores sabiam que matar Lula era matar toda a esquerda brasileira. Mas mesmo que assim não tivesse acontecido talvez não houvesse fuga possível. Um dos nomes mais falados como alternativa a Lula da Silva era o antigo perfeito de São Paulo, Fernando Haddad. Mal a sua candidatura alternativa começou a ganhar maior credibilidade, sobretudo depois de ter sido escolhido como responsável do programa eleitoral de Lula, logo surgiu um indiciamento judicial, com mais nenhuma base que não seja tão vaguíssima que dá vontade de rir. Ou seja, cada nome que surja no campo do PT e que tenha, como tem Haddad, popularidade suficiente para ter alguma hipótese, passará a estar imediatamente na mira de um poder judicial que substituiu o processo pela convicção. Num país onde os magistrados tomam posições políticas públicas bastante claras e onde as carreiras política e judicial se cruzam bastantes vezes.

Este processo de total judicialização da política brasileira, que transforma os juízes em centro de disputa política, que pedem apoio popular, apelam a manifestações e têm como último critério da sua ação a própria lei, é um caso de estudo que merece ser olhado com toda a atenção por todos os que acreditam na democracia e no Estado de Direito. No Brasil, mas não só, ele depende de uma tríade perfeita: os grandes grupos de comunicação social, o poder económico e financeiro e juízes cada vez mais disponíveis para saltar para a ribalta mediática onde hoje se define o sucesso e relevância de cada profissional. Cavalgando a justíssima indignação popular com a corrupção e selecionando politicamente as vítimas a queimar na fogueira mediática, o poder desta tríade é avassalador. Um poder que tem a particularidade de não depender do voto. No Brasil, ele até já serve para proibir exposições “indecentes” com base em convicções religiosas de juízes (o poder dos evangélicos estende-se a todos os ramos do Estado). O populismo desbragado que move parte do poder judicial brasileiro é bem evidente na máxima mediatização de todas as demonstrações de força, de que a exibição da transferência de prisão do ex-governador Sérgio Cabral acorrentado nas mãos e nos pés é uma boa ilustração. Claro que o povo gostou da imagem. E o objetivo é esse mesmo, reforçando assim o poder simbólico dos juízes face ao poder político.

O processo que hoje teve o seu momento decisivo, cujo resultado exato foi preanunciado por várias televisões, e que teve uma gestão extraordinária de calendário para garantir que acontecia antes de Lula poder concorrer a eleições, torna a sua candidatura quase impossível. Com base numa acusação sem qualquer substância, prova ou sequer indício. Nestas circunstâncias, o afastamento do político mais popular do Brasil da corrida presidencial revela-nos que novos instrumentos podem ser usados para impedir qualquer esforço de justiça social em tempo de crise.

Houve um tempo que em que a elite brasileira usava o exército para aplacar a democracia. Agora não precisa de militares na rua. Basta ter todas as televisões do Brasil, juízes com fome de protagonismo e um exército de políticos corruptos disponíveis para queimar quem for preciso para salvar a sua própria pele.

Nunca devemos esquecer, quando analisamos o que se passa no Brasil, a natureza profundamente classista e racista da elite nacional e a afronta que significou ter, à frente dos seus destinos, um operário sem curso superior. Mas o que está em causa agora, que chega o tempo das “vacas magras”, é muito mais do que isso. Como se percebe por tudo o que o governo Temer vai apressadamente aprovando.

Claro que Lula, Dilma e PT cometeram erros graves. Fizeram depender do petróleo todas as suas reformas sociais, que tiraram da pobreza milhões de brasileiros. Bastou que o seu preço caísse para tudo ir atrás. Como aconteceu com outros países que acreditaram que podiam fazer reformas sociais sem tocar numa economia de base extrativista. O Brasil passou então a depender do endividamento externo. E depender do endividamento externo é, como nós bem o sabemos, depender dos humores de mercados pouco interessados em reformas políticas e sociais emancipadoras dos trabalhadores. O segundo pecado do PT foi, apesar das mudanças legislativas que promoveu e que tornaram todo o processo Lava-Jato possível, não ter combatido a corrupção. Pelo contrário, deixou que ela o minasse por dentro e foi fechando os olhos aos crimes cometidos por seus dirigentes e aliados. O terceiro, foi não saber refazer as suas alianças, achando que, por estar no poder, dispensava um movimento popular que pressionasse para reformas sociais e políticas mais profundas. Preferiu ficar nas mãos dos oportunistas do PMDB, mesmo quando era evidente que eles estavam, dentro do próprio governo, a preparar o golpe.

Está ainda a cometer erros, não preparando o dia seguinte a Lula, quando for evidente que o golpe antidemocrático foi, como não podia deixar de ser, bem sucedido. Continua, na resistência a este processo judicial, a pôr todas as suas fichas numa carta marcada e abatida pelas poderosíssimas forças que usaram uma justiça politizada e uma comunicação social sem grande vínculo à democracia (a Globo foi um instrumento fundamental da ditadura) para impedir que a gestão desta crise fosse feita por quem queira distribuir sacrifícios. Mas o que está a acontecer no Brasil deve ser um alerta para todos nós. A aliança entre o poder mediático e juízes populistas ávidos de notoriedade é o novo instrumento que a elite económica tem, perseguindo seletivamente ou mesmo injustamente políticos pouco cooperantes, para aplacar qualquer vontade de mudança. Um dia isto também nos vai acontecer.

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