OBSERVADOR
26 Janeiro 2018154
Pedro Raínho
Foi nadador-salvador em Esmoriz. Fez-se engenheiro. Investigou para a Renault. Ganhou a câmara de Ovar. Ajudou a eleger um líder do PSD. É suspeito de favorecimento. Afinal, quem é Salvador Malheiro?
“Se um dia perder isto vou fazer outra coisa qualquer! Vou ser nadador-salvador ou outra coisa qualquer, não me importo”, desabafava Salvador Malheiro, no final de uma entrevista ao Observador na Câmara Municipal de Ovar. O diretor da campanha de Rui Rio para a liderança do PSD começava a dar sinais de irritação. O tema não era fácil: suspeitas de favorecimento. Uma parte da conversa tinha sido sobre os contratos-programa de 2,2 milhões de euros que a autarquia estabeleceu com os clubes da terra, quase todos adjudicados à Safina, uma empresa de Pedro Coelho, líder da concelhia do PSD e posteriormente vereador no executivo do próprio Salvador Malheiro.
Naquele dia, sexta-feira, 19 de janeiro, o presidente da câmara ainda não sabia que o Ministério Público de Aveiro tinha aberto um inquérito ao caso dos relvados sintéticos, depois de uma denúncia anónima que o visava, ao seu vereador Pedro Coelho e a um adjunto da câmara, Henrique Araújo — que foi um dos operacionais na organização da campanha interna de Rui Rio. A denúncia relaciona o alegado favorecimento com o financiamento de campanhas eleitorais. O Observador sabe que Rui Rio — que se apresentou a dizer que a política precisa de um “banho de ética” — tem estado preocupado com este assunto.
Salvador Malheiro podia dizer que se deixasse a política voltaria a exercer engenharia, que lhe deu dinheiro e prestígio académico, antes de ser presidente de uma câmara. Mas preferiu dramatizar com o regresso à praia como nadador-salvador. Por trás da secretária a que o autarca está sentado, no seu gabinete, um quadro mostra dois pescadores num plano apertado, abraçados. “É do anterior presidente e eu deixei-o ficar”, explica Salvador Malheiro. Camisa branca apertada até ao último botão, gravata escura, às pintas brancas: à primeira vista, só os longos cabelos disfarçadamente penteados revelam a figura que, ainda adolescente, passava o verão de olhos postos no mar de Esmoriz, atento aos banhistas. Foi ali, como nadador-salvador, que se lançou à vida.
No seu conjunto, o percurso de Salvador Malheiro é pouco habitual na classe política atual: vem de uma família numerosa e humilde, formou-se em engenharia, doutorou-se e deu aulas em universidades, chegou a fazer investigação em França, tinha uma profissão onde ganhava bom dinheiro como consultor, e só depois decidiu dedicar-se à causa pública. Foi uma paixão tardia. Não frequentou a escola de caciques das jotas. Mas teve de aprender os truques todos quando a ambição cresceu. Nas eleições internas do PSD, que deram a vitória a Rui Rio, teve ao seu serviço a carrinha de uma associação recreativa — financiada pela autarquia — para transportar militantes de um bairro pobre à mesa de voto. O resultado esmagador de quem joga em casa ficou evidente ao fim da noite: dos 476 votantes do PSD de Ovar, 409 puseram a cruz em Rui Rio.
Na campanha interna do PSD, acompanhou Rui Rio por todo o lado. Era o diretor de campanha. Embora não fosse íntimo do ex-presidente da câmara do Porto — é um conhecimento recente — foi um dos principais operacionais para a mercearia partidária: votos, apoios, transportes e mobilização para salas cheias de gente. A partir de setembro, coordenou a máquina com outros líderes de aparelho: Rui Rocha, de Leiria, Carlos Peixoto, da Guarda, Bruno Coimbra, de Aveiro, Luciano Gomes, do Porto, Fernando Campos, de Boticas. O seu braço direito para o terreno foi Henrique Araújo, seu adjunto na câmara de Ovar.
As denúncias de caciquismo, porém, são mais antigas. Há dois anos, em fevereiro de 2016, quando venceu a distrital de Aveiro, hoje a quarta maior do PSD — decisiva nas disputas eleitorais internas — Malheiro já era acusado de viciação de dados. Ulisses Pereira, o seu adversário, que perdeu aquela estrutura para o homem de Ovar, chegou a enviar uma carta para o Conselho de Jurisdição do PSD a denunciar “indícios de irregularidades graves e eventual falsificação de dados”, como 16 militantes que viviam na mesma morada e 77 que tinham o mesmo telemóvel. Em causa estava a inscrição de 418 militantes. Pedro Coelho, o mesmo envolvido no caso dos relvados sintéticos, que liderava a concelhia, acusava Ulisses Pereira de querer “ganhar na secretaria”.
Para ganhar a câmara com o apoio do anterior presidente, do PS, ter-se-á comprometido em manter o filho e a nora do ex-presidente em cargos dirigentes, assim como a chefe de gabinete do executivo socialista. Cumpriu. Não tocou em nenhuma destas pessoas desde 2013, apesar da mudança de partido na gestão da autarquia.
O senhor engenheiro “ratinho”
O pai, Albertino Silva, tem uma enorme coleção de uísques. Era um comercial que andou a vender pelas antigas colónias portuguesas, em África, e foi dele que herdou o amor ao Sporting e a admiração por Sá Carneiro. Foi um “militante da primeira hora” do PPD. Salvador nasceu em 1972 (tem hoje 45 anos) e foi a mãe quem o criou, com a ajuda dos filhos mais velhos. Naquela família de poucos recursos, Salvador Malheiro, o penúltimo dos 10 irmãos, percebeu cedo que teria de fazer o seu próprio caminho. “Houve ali períodos complicados, mas nunca passámos fome”, recorda ao Observador, sentado no gabinete que ocupa desde 2013, o presidente da Câmara Municipal de Ovar.
“Sempre tive uma atividade muito intensa, desde as primeiras horas que trabalhei na praia, trabalhei nos bares à noite, fui nadador-salvador” em Esmoriz, e o passar dos anos apenas apenas reforçou a “ligação intensa” à terra que marcaria o seu percurso. Até completar o ensino básico, Salvador Malheiro andou por ali. “Os meus pais sempre fizeram questão, mesmo com todas as dificuldades, de permitir a quem gostasse da escola, quem tivesse potencial na escola, que nada lhe faltasse”.
Entre os “ratinhos”, alcunha pela qual a família é conhecida na terra, o percurso dos vários irmãos acabaria por ser diferente. Uma irmã tornar-se-ia médica; outro irmão, jogador de futebol; outro é quadro do grupo empresarial criado por Américo Amorim. Ainda miúdo, Salvador destacava-se como um dos melhores alunos da turma. De tal forma que, aos 24 anos, era licenciado em Engenharia, com especialização em fluídos e calor e uma média de 16 valores – “fui o melhor aluno da minha opção” — e nunca perdeu um ano.
Antes de completar 25 anos já era mestre, com uma equivalência pelo curso que frequentou em Paris, patrocinado pela União Europeia, em que estudou o desenvolvimento da tecnologia usada em motores de combustão interna. Em 1996, no primeiro regresso do geek das engenharias a Portugal, começou a dar aulas a alunos do 5º ano do curso de Engenharia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. “Mais de 90% dos meus alunos eram mais velhos que eu”, lembra.
O doutoramento veio a seguir. Durante três anos voltou a viver em França, mas dessa vez para trabalhar no centro de investigação da Renault, onde desenvolveu um “projeto altamente confidencial” para “reduzir ao máximo o consumo e a poluição” dos motores automóveis. “Consegui colocar em combustão um rácio quase 10% inferior, completamente em rutura com estado da arte da altura”, conta Salvador Malheiro, perdido entre as memórias de um percurso que acabaria por abandonar por completo quando decidiu que todo o seu empenho seria dedicado à atividade política.
Social-democrata convidado por socialista
Essa descoberta só veio mais tarde, já depois de completar 30 anos. Depois da viragem do milénio, o engenheiro regressou em definitivo a Portugal, por não conseguir resistir àquilo que descreve como um chamamento – da terra e da família. Em 2003, casado “com uma lisboeta” e com a família a crescer (o primeiro dos três filhos, dois rapazes e uma rapariga, nasceu quando estava em França), recusou “muitas oportunidades” que lhe apresentaram para cruzar o Atlântico e ir dirigir centros de investigação da Renault no Brasil.
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