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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

1978: quando Kadhafi exigiu que a Madeira pertencesse a África

por admin

Diz-nos o Diário da Assembleia da República de há quarenta anos que por estes dias os deputados Furtado Fernandes (PSD), Marcelo Curto (PS) e Sousa Marques (PCP), discutiam animadamente as diferenças entre o sindicalismo reformista, o sindicalismo revolucionário e o anarco-sindicalismo. O presidente da sessão avisou com bonomia que a discussão estava a ficar muito teórica. O período antes da ordem do dia começou com algumas indicações da Mesa sobre procedimentos protocolares relativos à visita do rei da Noruega Olavo V que dali a momentos receberia cumprimentos no Salão Nobre do Parlamento. E seguiu-se a apresentação de um voto de protesto do PS e do CDS, apoiado pelo PCP, PSD e pelo deputado da UDP Acácio Barreiros, e depois aprovado por unanimidade, “contra as declarações do presidente líbio Kadhafi, exigindo, numa clara ingerência nos assuntos internos portugueses, a independência do arquipélago da Madeira”.

Espera aí — a independência da Madeira?!— Kadhafi?

Que história é esta?

Posso explicar. Estávamos em Fevereiro de 1978. Era primeiro-ministro Mário Soares, com o II.º Governo Constitucional, de coligação entre PS e CDS (durou sete meses, de Janeiro a Agosto). E de repente, o país acordou para a notícia de que na reunião da Organização de Unidade Africana do dia 20 anterior, o líder líbio Muammar Kadhaffi fizera um discurso no qual defendeu a anexação para a OUA de todos os territórios africanos “sob ocupação” incluindo, entre outras, a “colónia portuguesa” do arquipélago da Madeira.

Ponta de São Lourenço

“O imperialismo ocidental ficará furioso, porque exigimos a liberdade das nossas ilhas africanas que foram ocupadas pela Grã-Bretanha, França e Portugal”. Kadhaffi mencionou ainda a possibilidade de apoiar um movimento separatista no arquipélago das Açores, mas tendo em conta que este era muito longe de África não o incluiu nos planos de o juntar depois à OUA.

A OUA foi mais longe no que diz respeito às Canárias, tendo oferecido através do seu Comité de Libertação apoio logístico e financeiro ao MPAIAC, Movimento para a Independência do Arquipélago das Canárias. Como se imagina, os nossos vizinhos espanhóis não reagiram com moleza. O escândalo foi geral, da extrema-esquerda à extrema-direita. Um jornal titulou a toda a largura “INTOLERABLE”. Proclamou-se noutro uma pleonástica “unanimidade de todos”. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Marcelino Oreja, prometeu que as ilhas seriam “defendidas com todas as nossas forças”.

curral das freirasCurral das Freiras

Em Portugal, a reacção foi mais moderada. O PSD, pressionado pelo PSD-Madeira, apresentou também um voto de protesto (que não foi discutido na mesma sessão porque o deputado Acácio Barreiros alegou que não tinha tido tempo para o ler). O PCP declarou que “a Madeira é território nacional”, e acrescentou que o separatismo na Madeira e nos Açores “exprime bem o carácter antinacional do fascismo e da reacção”. Mas globalmente, lendo os jornais da época, dá para perceber que a atitude nacional esteve entre desconcertada e fleumática.

Ainda assim, colocava-se a questão de decidir como reagir na cena internacional — competência partilhada com o Presidente da República Ramalho Eanes, que também emitira, ao seu estilo, uma nota firme e seca sobre o assunto. O que fazer agora? Apresentação de queixa na ONU? Chamar os embaixadores da OUA para um protesto formal? Corte de relações? Para a escolha definitiva deve ter pesado sobretudo a vontade de encerrar o assunto sem chamar demasiado a atenção para ele.

MadeiraMadeira

E é por isso que podemos assinalar com patriótica vaidade como efeméride para ontem que no dia 27 de Fevereiro de 1978 Portugal reagiu à última ameaça externa sobre a integridade do território nacional através de… uma nota à imprensa distribuída na ONU em Nova Iorque. “Portugal demonstrou após o 25 de Abril de 74 compreensão perante as legítimas aspirações dos povos africanos à total independência do seu continente”, dizia a nota. Ora, esse facto “outorga a Portugal o direito indiscutível de repudiar qualquer interferência nos seus assuntos internos, em especial quando vem acompanhada por ameaças do uso de força”.

E pronto. Os diplomatas portugueses em Nova Iorque deram o dia por bem acabado. Tanto quanto sei, a história ficou por aí. Trinta anos depois Kadhafi chegou finalmente à Madeira, mas para instalar uma das suas empresas no off-shore do arquipélago.

Jardim Botânico da MadeiraJardim Botânico da Madeira

Além da curiosidade, esta história serve também para nos lembrar que, uma vez que a Madeira faz efectivamente parte da placa tectónica africana e as ilhas açorianas das Flores e do Corvo estão na placa norte-americana, Portugal pode ser considerado — embora apenas do ponto de vista geológico — um dos poucos países tricontinentais do mundo.

Fonte: texto de Rui Tavares no Público

NOTA: a propósito deste acontecimento, Francisco Seixas da Costa acrescenta um dado curioso e importante que pode ajudar a explicar a atitude do ex-ditador da Líbia. Ao que parece, Kadhafi teria grandes esperanças em ter uma boa relação diplomática com Portugal e manifestou isso mesmo nos anos após a revolução dos cravos. No entanto, em 1977, Mário Soares, que era o primeiro-ministro naquela época, começou uma aproximação diplomática com Israel, atitude que não agradou a Kadhafi. Desde essa altura, o ex-ditador da Líbia começou a mostrar uma atitude de confronto com o nosso país. A situação diplomática acabaria por melhorar décadas mais tarde, tendo Portugal estabelecido vários acordos comerciais com a Líbia ainda durante o governo de Kadhafi.

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