18 Março, 2018
Quem se dispõe a fundar um partido para ir a eleições e chegar ao governo tem a pretensão de obter os votos do número suficiente de pessoas que lhe confiram um poder público que será exercido sobre elas. Por isso, o escrutínio público e rigoroso de quem se apresenta publicamente com tão nobres intenções é, não só, uma obrigação de liberdade individual, como, sobretudo, é uma exigência da democracia representativa. Será, pois, a partir das intenções, anunciadas pelos seus fundadores, e documentos por eles publicados, que analisarei o partido, recentemente formado, chamado Iniciativa Liberal.
Para esse efeito, passei os olhos pela carta de princípios da nova organização partidária, a que foi dado o nome de «Manifesto Portugal Mais Liberal». O texto, que se esperaria de uma certa ruptura com o que já existe, porque só isso justificaria a criação de um novo partido, é um conjunto de lugares-comuns confrangedores, onde não se encontra uma única, repito, uma única, afirmação que não possa ser subscrita pelo PS, PSD ou CDS, e que, muito provavelmente, sem ter lido os programas de cada um deles (não me desejem tanto mal…), aposto que se encontram em todos eles. Por outro lado, todos os «direitos» que o Manifesto pretende assegurar estão todos, sem excepção, já «garantidos» pela Constituição da República Portuguesa, ou seja, pela Lei Fundamental do actual regime.
Para que não digam que estou de má vontade, ilustrarei o que acabei de afirmar com alguns exemplos, divididos em duas partes: a) Propostas extraídas do Manifesto que encontraremos nos programas do PS, PSD e CDS; b) Direitos já garantidos na CRP. É um exercício um tanto ou quanto fastidioso, mas tem que ser.
a) Propostas extraídas do Manifesto que encontraremos nos programas do PS, PSD e CDS:
– «O Estado é reconhecido como um instrumento do processo de desenvolvimento coletivo da sociedade; onde o Estado está acima do Cidadão; mas onde também o Homem está acima do Estado.» (Cap. I, art. 3);
– «Defesa do Estado de Direito contra todas as formas internas ou externas de supressão da democracia» (Cap. I, art. 6, al. a));
– «Separação dos poderes legislativo, executivo e judicial» (Cap. I, art. 6, al. b));
– «Apenas admitimos o controlo do Estado sobre as atividades que excedam o âmbito da iniciativa privada ou nas áreas em que a concorrência já não funcione.» (Cap. II, art. 2, que, reconheço, “só” deveremos encontrar nos programas do PSD e do CDS);
– «É essencial a melhoria contínua das condições de emprego e ambiente de trabalho.»(Cap. II, art. 3);
– «Ao Estado cabe, através de diferentes mecanismos, premiar e incentivar a educação cívica, a responsabilidade social e ambiental dos Cidadãos com o objetivo de tornar a sociedade sustentável.» (Cap. III, art. 3).
b) Direitos já garantidos na CRP (em itálico os pontos programáticos do Manifesto e a bold as correlativas normas constitucionais)
– Liberdade individual, garantida por lei e por uma administração da justiça independente; («Todos têm direito à liberdade e à segurança.»; «Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.»; arts. 27º, nº1 e 203, nº 1)
– Liberdade de consciência e religiosa («A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.», art. 41º, nº1);
– Liberdade de expressão e acesso à informação («Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.», art. 37º, nº 1);
– Liberdade de exercício de cidadania, de associação e de não associação («Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país»; «Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações»; «Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela.»; art. 48º, nº 1 e 46º, nºs 1 e 3);
– Livre escolha de ocupação ou profissão; («Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho», art. 47º, nº 1);
– A oportunidade de obter e prosseguir ao longo da vida uma educação completa e variada, de acordo com a sua aptidão e independentemente da sua origem social ou dos meios económicos; («Todos têm direito à educação e à cultura»; art. 73º, nº 1) ;
– O direito à posse privada de propriedade, tangível ou intangível, e o direito à livre iniciativa («A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte»; «A iniciativa económica privada exerce-se livremente» arts. 62º, nº 1 e 61º, nº 1);
– Liberdade de consumo e usufruto dos benefícios gerados pela natureza ou pelo Homem, sempre que estas atividades não coloquem em causa a sustentabilidade da Sociedade; (disperso por diferentes normas da Constituição);
– Segurança perante os riscos associados à doença, ao desemprego, deficiência ou idade; («Todos têm direito à segurança social.»; «O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.»; arts. 63º, nºs 1 e 3, da CRP);
– Igualdade de direitos e responsabilidades entre Cidadãos, independentemente de ascendência, sexo, raça, origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, educação, situação económica, condição social ou orientação sexual. («Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.», artigo 13º, nº 2 da CRP)».
Ora, se o que a Iniciativa Liberal diz defender já se encontra nos programas dos três partidos democráticos do regime e está constitucionalmente consagrado na CRP, porque diabo há-de um cidadão eleitor votar na IL, em vez de continuar a votar nos outros partidos? E o que justifica que quem defende estas ideias não esteja nos partidos que já há muitos anos lutam por elas? Numa palavra, o que é que, afinal, justifica a criação da Iniciativa Liberal?
Apenas mais uma palavra para sugerir aos responsáveis por este partido que se habituem ao escrutínio democrático, em vez de tentarem aplicar puxões de orelhas a quem os submete ao crivo da crítica. Dizer, como disse o Armando Alves, que esse exercício, feito sobre os seus próprios documentos, é «apenas maldizer», ou mandar quem os critica publicamente ir aos «canais onde pode comunicar com a IL e esclarecer as suas dúvidas», ou dizer que na página onde está a escrever livremente as suas opiniões estão «cada vez mais pessoas interessadas em maldizer do que fazer» é um sinal preocupante. E muito pouco liberal, acrescente-se.
Por hoje, fico-me por aqui.
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