por estatuadesal
(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 31/03/2018)
É como o proverbial canário na mina de carvão, que alerta contra o ar irrespirável. Quando ouvimos falar da importância de reformas estruturais que flexibilizem adicionalmente o mercado de trabalho, sabemos que estamos perante a mera defesa ideológica de interesses conservadores.
Se há um elemento recorrente na ortodoxia emanada por instituições como a OCDE e a Comissão Europeia e pelos seus correligionários nacionais, é a desregulação do mercado de trabalho. Mecanismos como a penalização do recurso ao despedimento, o salário mínimo, a contratação colectiva ou um subsídio de desemprego abrangente e duradouro são vistos como meros obstáculos à criação de emprego e ao dinamismo da economia. As ‘reformas estruturais’, entendidas como a redução da abrangência ou eficácia destes instrumentos, são, em contrapartida, uma panaceia. Tornaram-se um dogma, aceite como evidente sem discussão, e um mantra, invocado com fins encantatórios.
E no entanto, a base de evidência em que assenta este pilar central da ortodoxia é extraordinariamente frágil. Ao longo das últimas décadas, os estudos realizados com o objectivo de investigar a relação entre os diferentes aspectos da regulação do mercado de trabalho e o desemprego têm chegado a conclusões inconsistentes. Por cada estudo que sugere existir uma relação positiva entre o nível de protecção no emprego e o nível de desemprego, existe outro que não encontra qualquer relação e outro ainda que encontra uma relação inversa. As revisões da literatura concluem… que a literatura é inconclusiva. Existem algumas associações aparentemente mais convincentes que outras, mas, no conjunto dos estudos que têm sido realizados, verificamos que os nexos causais são inexistentes, inconsistentes ou suficientemente fracos para serem dominados por factores mais importantes.
O caso português é esclarecedor. O mais perto que a economia portuguesa esteve do pleno emprego nas últimas décadas foi em 2000, ano em que a taxa de desemprego desceu abaixo de 4%. Desde essa altura, a legislação laboral foi alterada múltiplas vezes e, com excepção de algumas reversões incipientes levadas a cabo pelo governo actual, todas essas alterações foram no sentido da liberalização e da redução da protecção dos trabalhadores. Isso não impediu que o desemprego aumentasse significativamente de 2000 em diante, para os 8% em 2005, 11% em 2010 e 16% em 2013, no auge da crise e do impacto da austeridade. Nem impediu que, quase duas décadas e muitas reformas estruturais liberalizadoras depois, a taxa de desemprego seja hoje ainda o dobro (8%) da que se verificava na viragem do milénio.
Quer isto dizer que as alterações da legislação laboral das últimas duas décadas fizeram aumentar o desemprego? Não necessariamente, mas quer seguramente dizer que é possível ter pleno emprego com uma legislação laboral relativamente mais protectora e ter desemprego generalizado com um mercado de trabalho muito mais desregulado. Qualquer que tenha sido o efeito da evolução da regulação do mercado de trabalho sobre o emprego e o desemprego, outros factores houve – em particular, a evolução da procura – cujo efeito terá sido muito mais decisivo.
Entretanto, se o impacto da regulação laboral sobre a criação e destruição de emprego tem visivelmente uma importância secundária, o mesmo não pode ser dito do seu efeito sobre a distribuição do rendimento. A esse nível, sabemos com elevada confiança que a desregulação do mercado de trabalho é um factor crucial de agravamento da desigualdade. Da mesma forma que a ameaça e desprotecção face ao despedimento exerce um efeito disciplinador que pressiona os salários em baixa, a regulação da relação laboral para conferir mais protecção à parte mais fraca é um factor de promoção da equidade e da justiça social. Entre partes com poder desigual, é a regulação que protege e a liberalização que oprime.
Perante tudo isto, percebe-se melhor que o discurso sobre as reformas estruturais não tem uma base científica mas sim ideológica: disfarça a nudez crua dos interesses particulares de alguns sob um manto de preocupação com o interesse geral.
É um manto diáfano, porém.
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