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segunda-feira, 19 de março de 2018

Que a morte de Marielle vos atormente tanto como a sua vida

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/03/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Nunca houve Estado nem lei nas favelas do Rio de Janeiro. Mas a entrega do poder policial aos militares fez da arbitrariedade a própria lei. Desta vez não se limitam a participar. Por proposta de Michel Temer, foi-lhes entregue o comando de todas as forças de segurança no Rio – Secretaria de Segurança Pública, Administração Penitenciária, Polícia Militar, Polícia Civil, bombeiros e guarda prisional. Tudo sob o comando do general Braga Netto, que responde apenas a Temer. Isto não acontecia desde o fim da ditadura. Há um mês que o Rio de Janeiro está ocupado por militares. E não se conhece qualquer benefício para a segurança dos cariocas. Só show mediático e ausência de controlo.

Quando esta função foi entregue às Forças Armadas, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, explicou ao que vinham: avisou que a solução exigia “comprometimento, sinergia e sacrifício dos poderes constitucionais, das instituições e eventualmente da população”. Suspensão do Estado de Direito, para quem não tenha entendido. Por isso, os militares precisavam da “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade” no futuro. Referia-se à Comissão da Verdade criada no governo anterior para investigar casos de tortura e assassinato por parte dos militares durante o período da ditadura. Eles iam ali para matar, torturar e ameaçar, acima da lei e contra a lei. Com a certeza que não estão dispostos a responder pelos seus atos.

É bastante fácil compreender a referência à Comissão da Verdade. Sobretudo numa cidade onde o 41º Batalhão da Polícia Militar, conhecido como o “batalhão da morte”, já ceifou, desde 2011, mais de 576 vidas.

Não é fácil adivinhar para onde isto leva o Brasil: a perseguição ao crime rapidamente se transforma numa perseguição a quem conteste os métodos. E criminosa passa a ser toda a voz que seja incómoda. É mesmo assim que começam as ditaduras. E é por isso bastante fácil compreender a referência à Comissão da Verdade. Sobretudo numa cidade onde o 41º Batalhão da Polícia Militar, conhecido como o “batalhão da morte”, já ceifou, desde 2011, mais de 576 vidas. Em janeiro, 41% das mortes violentas na região controlada por este batalhão foram da sua autoria .São inúmeros os relatos de ameaças e coação a qualquer pessoa que tente denunciar os seus métodos e as suspeitas de execuções sumárias.

Marielle era uma das mais vocais denunciadoras dos métodos do 41º Batalhão e uma opositora à entrega aos militares de funções de segurança interna. Ela, que entrou para a política por causa de uma bala perdida que, em 2005, matou uma amiga sua, sabia bem como pode ser ilusória a divisão entre bandidos e forças de segurança num país dominado pela corrupção e pela violência. Ela sabia dos “danos colaterais” quando já não é possível distinguir, nos seus métodos e desprezo pela lei, o narcotraficante do policial. Mas, apesar da clareza das suas posições, o Presidente da República não eleito e o comandante do Exército não tiveram qualquer pudor em dizer que a execução da opositora desta ocupação militar era uma razão reforçada para a intervenção do exército.

O assassinato de Marielle é visto como um recado a quem queira pôr em causa o autêntico estado de sítio imposto ao Rio de Janeiro.

Marielle Franco foi nomeada, a 28 de fevereiro, relatora da comissão municipal que acompanhava a intervenção do exército. Todos conheciam a sua determinação na denúncia de abusos ainda antes de ser eleita vereadora. E não desiludiu. Poucos dias antes de ser abatida denunciou o assassinato, pela Polícia Militar, de três jovens que não tinham qualquer relação com o mundo do crime. O assassinato de Marielle é visto como um recado a quem queira pôr em causa o autêntico estado de sítio imposto ao Rio de Janeiro. Ela era um perigo para a cúpula militar e policial, incluindo para aqueles que mantêm uma relação de grande proximidade com o crime organizado.

Mas Marielle Franco não diabolizava os agentes policiais, como testemunha a viúva de um deles, que encontrou, no momento que procurou justiça, o apoio incondicional da então assessora legislativa. Era uma voz da democracia e dos direitos cívicos contra o clima de exceção que se está a instalar no Brasil e que o leva para caminhos cada vez mais perigosos.

Acabou o “paternalismo” do Estado, como a direita gosta de dizer. Para o povo das favelas resta a mesma escolha de sempre: entre o narcotraficante e o polícia militar. Entre a morte e a morte.

A pobreza, o crime e a violência nunca desapareceram do Brasil. Mas tudo voltou a ganhar dimensões incontroláveis com a crise económica, com o caos instalado na cúpula do Estado e com o regresso de políticas antissociais. Depois de anos em que muitos pobres e negros entraram nas universidades, tiveram direito a casa e acederam aos mínimos de sobrevivência, todas as políticas sociais e laborais estão a ser desmanteladas por um governo no qual ninguém votou. Acabou o “paternalismo” do Estado, como a direita gosta de dizer. Para o povo das favelas resta a mesma escolha de sempre: entre o narcotraficante e o polícia militar. Entre a morte e a morte.

Marielle nasceu na Maré, um complexo de favelas do Rio. Foi mãe aos 18 anos e safou-se por uma unha negra e por uma força de vontade quase impossível de imaginar ao destino que lhe estava garantido. O seu empenhamento político, que a levou a ser a quinta vereadora mais votada nas eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro, também é fruto do incrível movimento social que cresceu durante os governos de Lula, onde a parte apagada do Brasil passou a querer existir na política.

Sobre Marielle não se podia dizer o que se gosta de dizer sobre todos os militantes de esquerda que defendem o respeito pelos direitos humanos nas favelas: que são meninos da universidade que não sabem do que falam. Sabia-o como quase nenhum político brasileiro. Restaram os boatos espalhados, com a ajuda de deputados ou oficiais de polícia: que Marielle foi eleita com a ajuda do Comando Vermelho (a maior organização criminosa do Brasil), que tinha sido casada com um traficante de droga e que eram os seus amigos criminosos os principais suspeitos do assassinato. Depois de matar o corpo, há que matar o caráter.

A direita brasileira, base ideológica de décadas de pilhagem, roubo e de uma exploração que se aproxima da escravatura, teve a seu favor, no regresso ao poder por via de um golpe constitucional, o facto de o PT não só não ter contrariado a corrupção profunda que todos os países com enormes desigualdades exibem, mas ter-se deixado tomar pelo mesmíssimo vírus, transformando-se num dos seus mais relevantes veículos.

Marielle era de esquerda mas estava fora dos partidos que estiveram no poder estes anos. Apesar de nos últimos meses ter alinhado com o conjunto da esquerda contra o golpe constitucional e judicial, o seu partido (o PSOL) foi uma dissidência esquerdista do PT, fundado logo no início do primeiro mandato de Lula. Discordei de algumas das escolhas que fizeram, sobretudo por se terem excluído da brutal transformação social e política que se operou, atirando o PT para os braços dos piores inimigos do progresso do Brasil.

Mas há uma coisa que não lhes pode ser atirada à cara: não fazem parte do gigantesco grupo de suspeitos de corrupção e isso hoje vale ouro. Marielle não podia ser cívica ou judicialmente morta. Só mesmo a morte física a calaria.

Há um lado que nós, europeus, tendemos a ignorar no confronto social brasileiro: o profundo racismo que marca todas as relações sociais. E que deixa de fora de todos os círculos do poder, de dinheiro, de estudo e até da representação pública do Brasil uma parte significativa da população: os negros. De tal forma que a maioria dos negros se declara “parda”, uma nuance que permite a muitos acreditarem que estão excluídos da exclusão.

Não se percebe o profundo racismo social da elite brasileira sem perceber o racismo “tout court”. Não se percebe nada da política brasileira sem olhar para uma história intimamente ligada à escravatura introduzida pela colonização portuguesa. Mas, nos últimos vinte anos, muitos negros chegaram às universidades e conquistaram o direito à esperança. Isso acabou com o regresso ao poder de tudo o que de pior existe na sociedade e na política brasileira.

Por isso, Marielle não era apenas uma negra. Não era sequer apenas uma militante antirracista. Não era só voz que não é suposto existir na política brasileira, onde os favelados não são cidadãos e não têm quem fale por eles. Tudo isto seria muito mas Marielle era mais: era o rosto do orgulho em ser negro num país e numa cidade onde isso é, por norma, no discurso comum, sinónimo de ser pobre e bandido.

O Brasil obscurantista está cada vez mais forte. Mas, ao contrário da seita de António Conselheiro, esmagada na “Guerra do Fim do Mundo” de Vargas Llosa, ele não se rebela contra a elite e o poder. Pelo contrário

Em setembro de 2017, o Movimento Brasil Livre (organização de direita especialmente ativa nas manifestações de apoio à operação Lava-Jato e pelo impeachment de Dilma Rousseff) protestou contra a exposição “queer”, no Museu Santander Cultural, por a considerar um incentivo à pedofilia, zoofilia e contra os bons costumes. Com apoio de políticos e congressistas, organizou um boicote ao museu e ao banco que o suporta. Até aqui nada de novo. A novidade é que a exposição foi mesmo encerrada pelo Santander e nem a intervenção do Ministério Público conseguiu reverter o ato de censura.

Um mês depois, o vereador Inaldo da Silva, bispo da IURD, transformou a sala de plenário da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro num espaço de culto evangélico, para que os fiéis, no lugar que costuma ser reservado aos eleitos, celebrassem ali a promulgação do projeto de lei que criou o Dia Interdenominacial, data para comemorar o encontro das várias denominações evangélicas.

O Brasil obscurantista está cada vez mais forte. Mas, ao contrário da seita de António Conselheiro, esmagada na “Guerra do Fim do Mundo” de Vargas Llosa, ele não se rebela contra a elite e o poder. Pelo contrário, ele serve a elite e o seu poder, sugando aos mais pobres as suas forças, a sua fé e o seu dinheiro. É neste Brasil e nesta cidade que Marielle, bissexual e militante LGBT, defensora da despenalização do aborto e feminista, fazia política no fio da navalha. As suas últimas palavras públicas foram para citar a escritora negra, feminista e lésbica Audre Lorde: “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.”

Negra, favelada, feminista, bissexual e esquerdista, Marielle representa tudo o que a direita brasileira mais odeia. Representa, em todas as suas dimensões, o Brasil que está a ser esmagado. Mas, acima de tudo, Marielle falava em nome dos invisíveis e denunciava as arbitrariedades daqueles que os maltratam. E para esses, quando o terror se instala, não há segundas oportunidades.

Marielle era uma ativista dos direitos humanos num país onde os militares voltaram a ter carta branca para matar com a garantia política de que ninguém lhes fará perguntas, como aconteceu depois dos assassinatos e torturas durante o período da ditadura. Marielle era uma favelada negra que conseguiu, pela força do voto, ter uma voz política num país onde, citando livremente Caetano Veloso, os pretos, os quase pretos e os brancos quase pretos de tão pobres são tratados como lixo. Marielle era uma ativista LGBT e uma feminista num país se está a aproximar perigosamente de um Estado confessional. Marielle era uma política de esquerda, sem os telhados de vidro da corrupção, num país profundamente corrupto e onde a direita está a usar a revolta contra a corrupção para promover os seus próprios corruptos.

À Dilma, uma antiga resistente contra a ditadura, mas uma pragmática de boas famílias, apearam da Presidência para a substituírem por um invertebrado corrupto. A Lula, um operário sem escolaridade que mudou profundamente o Brasil mas que foi (pelo menos) cúmplice com a corrupção, reservam a prisão, num processo carregado de irregularidades e presunções não provadas. Mas para mulheres pretas e faveladas como Marielle Franco só podia estar reservada a última e derradeira cartada, que o bruto poder do ódio e do privilégio brasileiro usou para calar Chico Mendes ou para fazer desaparecer os meninos da Candelária: quatro tiros na cabeça. Apesar das balas que executaram Marielle, de forma planeada e profissional, terem sido compradas pela polícia federal, não se sabe quem a matou. Mas sabe-se porque viveu e desconfia-se porque morreu.

Um famoso site brasileiro de direita escreveu, indignando-se com as referências ao perfil social e político de Marielle Franco, que “a sua morte trágica não precisa da hagiografia da diferença para ser vergonhosa, condenável” e tentou equiparar este assassinato a qualquer outro homicídio ocorrido no último ano. Compreende-se o esforço de neutralizar o crime, para o tornar apolítico. É, aliás, a melhor forma de servir os próprios intentos de uma execução política: enterrar a luta com o corpo.

As mesmas forças que manipularam o sentimento de indignação com a corrupção para porem os seus corruptos no poder, que usaram a insegurança que a crise alimenta para, através do exército, impor a arbitrariedade como forma normal de agir, que através de uma crise política, social e moral que alimentam estão a capturar e a matar a democracia, ficaram muito chocadas com o aproveitamento político que a esquerda estará a fazer desta execução política. Pelo contrário, espero que os que resistem ao regresso ao passado usem este assassinato para dar força à sua luta. Só isso respeita a memória de Marielle. Só isso a mantém lutadora depois da execução. Só isso dá sentido, se algum sentido pode haver, à sua morte. Só assim não terão conseguido calar a voz negra, favelada e feminista que tanto os incomodava.

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