por estatuadesal
(Por Jorge Wemans, in Público, 28/04/2018)
Só a impunidade soprada pelos ventos de populismo que assola a Europa pode explicar o que tenho ouvido e lido como defesa da “grande reportagem” da SIC construída com base nos filmes dos interrogatórios dos arguidos do processo Operação Marquês. Não encontro outra explicação. E o que vejo assusta-me.
Vamos por partes.
1. A tal “grande reportagem” que a SIC montou com a divulgação dos filmes dos interrogatórios tem zero de investigação própria e nada de factos novos. O seu roteiro segue o discurso da acusação e a dita reportagem não é mais do que a ilustração dos milhares de páginas em que aquela se deu a conhecer. Ou melhor dizendo: os milhares de páginas impressos como certificado de tudo quanto sobre o caso já tinha sido tornado público pela via de flagrantes e repetidos atropelos ao segredo de justiça.
A suposta reportagem da SIC, entre outros atropelos éticos que não vêm agora ao caso e que não têm que ver com o segredo de justiça, rebaixa-se ao hediondo de substituir o preceito deontológico de “ouvir todas as partes com interesses atendíveis na matéria” pelos filmes em que os arguidos respondiam ao interrogatório policial. Ou seja, para simular que respeitava aquele dever deontológico, a SIC “foi ouvir” os acusados defenderem-se das acusações por ela lidas e ilustradas a partir do texto da acusação através... do próprio interrogatório a que foram submetidos! Não me recordo de ter assistido, em democracia, a tão repugnante entrega do papel do jornalista a procuradores e juízes. Total confusão de papéis, completa mistura de planos e violação declarada dos deveres para com os acusados e para com o público. Não estou a falar de lei, estou a falar de deontologia jornalística.
Divulgar à exaustão e sob a capa de peça jornalística imagens captadas durante interrogatórios só pode resultar da procura de audiência a todo o custo, ou da vontade de incentivar o desejo de realizar justiça pelas próprias mãos.
2. Pior do que esta “grande reportagem” com guião e imagens extraídos dos processos realizados por quem conduziu a investigação foi o desagrado que ela provocou na atual procuradora-geral da República. “Desagrado?” — senhora procuradora!... Claro que a ouvimos também dizer que vai mandar instaurar novo inquérito, mas essa parte era para rir, não é verdade? Quantos inquéritos já mandou instaurar desde que este folhetim da Operação Marquês começou? Nomeadamente os relativos aos crimes de violação do segredo de justiça que continuam e continuarão impunes. Alguém foi demitido, suspenso, ou incomodado? Não continuam procurador e juiz titulares da investigação impávidos e serenos sem se deixarem afetar pelos recorrentes crimes em que o seu trabalho se viu envolvido? O crime desagrada-lhe, senhora procuradora? Então, quando o condena (se foi isso que fez...), não faça logo a injunção para a necessidade de todos os operadores judiciários repensarem comportamentos nesta matéria. Ou caminhamos para regulação e legislação retroativas, esponjas branqueadoras de comportamentos imperdoáveis do aparelho que dirige?
Mas nesta tragédia de levezas alegretes à portuguesa, as cenas dos próximos episódios ainda seriam mais negras. Como quase sempre nos media portugueses, em que o que falta em matéria de informação sobra em opinião, boa parte desta veio mostrar que afinal estava tudo certo. Que a luta contra a corrupção, o desmascarar das trapaças dos poderosos, ou o interesse público se sobrepunham a tudo e a todos.
3. Sabemos quanto a corrupção de altos responsáveis políticos, empresariais, financeiros, académicos e culturais é um dos principais cancros da sociedade portuguesa e da nossa vida democrática. A Operação Marquês investigou a corrupção ao mais alto nível. Mas não há importância ou singularidade de um processo judicial que suspenda todos os direitos dos investigados, confira exceção absoluta de procedimentos legais, substitua os tribunais pelo julgamento popular, dispense a prova por existir convicção. Estes são os fundamentos do populismo que, como é sabido e é tristemente patente nesta Europa a que nos deixámos chegar, opera sempre do mesmo modo: escolhe e denuncia impasses políticos verdadeiros e problemas sociais reais; explica-os através de origens deturpadas e razões falsas; e propõe-se resolvê-los através de medidas radicais, excecionais e antidemocráticas.
Sorrateira ou explicitamente, são estes pressupostos que baseiam boa parte da opinião publicada a favor da “grande reportagem” da SIC. Não, não há nenhum “interesse público” que justifique a difusão das imagens dos interrogatórios. As expressões dos arguidos em interrogatório, o conteúdo do que ali dizem e o modo como se exprimem nada provam, nem são factos relevantes no apuramento da verdade. Só quem nunca foi sujeito a interrogatório por parte daqueles que lhe retiraram a liberdade pode supor que essa é uma situação “normal”. Mas, mesmo não a tendo vivido na pele, deve perceber que nesse contexto absolutamente excecional ninguém é como é. E, sobretudo, que ninguém naquela situação se preocupa com a sua eventual performance perante as câmaras. De resto, o populismo reinante opera também esta “confusão” entre duas coisas bem distintas: o que são as provas aduzidas pela acusação e o que são factos provados em tribunal. Nada se encontra definitivamente provado antes de este se pronunciar, ouvida a defesa e avaliadas as provas por ela apresentada. Phil Graham daria uma volta no túmulo se alguém lhe traduzisse a glosa portuguesa da sua célebre frase [1] que parece ter cristalizado neste desastre: “Os tribunais trabalham para a história, os jornalistas para o momento”!
4. Duas coisas são certas. A primeira, pouco importante e de nível pessoal: se alguma vez for sujeito a investigação policial, exigirei uma máscara antes de responder a quaisquer perguntas que me queiram fazer. Não quero correr o risco de me ver envolvido nestas cenas degradantes. A segunda, mais decisiva: a luta contra a grande corrupção em Portugal acaba de dar um gigantesco passo atrás. E, para o seu recuo, mais do que a desastrosa “grande reportagem” da SIC, contribuíram os seus alegretes defensores, exultantes com a pornográfica exibição das “provas” que reforçam as suas convicções. Minar a administração da Justiça sobrepondo-lhe o julgamento popular, substituir a prova pela convicção e retirar à vida democrática os procedimentos formais que também a caracterizam — aí está toda uma agenda para o sólido desenvolvimento do populismo à portuguesa.
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