08 Abril 2018
Cátia Bruno
Um número rasurado, Whatsapps sobre o “chefe” e a “madame”, um porteiro que diz que “todos sabiam” que triplex era de Lula. São algumas das provas que chegaram para condenar o ex-Presidente do Brasil.
Em 2005, Luíz Inácio Lula da Silva e a mulher, Marisa Letícia, adquiriram uma quota num empreendimento para comprar a prestações um apartamento simples, com o número 141 (mais tarde 131), num edifício que seria construído em Guarujá, zona à beira mar não muito longe de São Paulo, conhecida pelas suas praias. Até aqui, todos — seja a defesa de Lula, seja a Procuradoria que o acusou, sejam os tribunais que o condenaram — estão de acordo. Tudo o que se passou daí para a frente, contudo, está envolto numa controvérsia que terminou com o ex-Presidente brasileiro a ser condenado.
O apartamento no Guarujá pertence ao Condomínio Solaris. Inicialmente construído pela Bancoop, cooperativa habitacional do Sindicato dos Bancários com ligações ao Partido dos Trabalhadores (PT), as obras de construção do Solaris acabaram por passar para a construtora OAS em 2009, por dificuldades financeiras do grupo.
É com a entrada da OAS em cena que a situação se complica para Lula da Silva, já que a acusação sustentou — e os tribunais aceitaram — que a construtora ofereceu ao ex-Presidente um apartamento melhor no empreendimento, o famoso ‘triplex’ com o número 174 (renomeado 164), no valor de 1,1 milhão de reais (equivalente a cerca de 270 mil euros), em troca de contratos públicos que beneficiariam a Petrobrás. Para além disso, segundo a Procuradoria, a OAS ofereceu ainda obras no apartamento no mesmo valor. O antigo Presidente nega por completo as acusações: explica que equacionou comprar o triplex 174 em vez do apartamento 141, mas que desistiu da ideia. E garante que nunca encomendou quaisquer obras.
O triplex de Lula no empreendimento da OAS é um dos andares de topo deste edifício (Getty Images)
A defesa de Lula tem classificado o seu julgamento como “político” e sublinhado que o ex-Presidente foi condenado sem provas que sustentem a acusação. “Esta ação nasceu de um PowerPoint que já tratava o ex-Presidente como culpado. O abuso do direito de acusar, este sim não pode ser aceite”, disse em tribunal o advogado Cristiano Zanin. A defesa sublinha que o apartamento está em nome da OAS e que não há documentos que provem que pertence ou pertenceu à família de Lula. E destaca que a OAS é a dona verdadeira do imóvel, até porque usou o triplex numa operação em 2009 com a Caixa Económica Federal e que este foi entretanto penhorado.
Os juízes, contudo, tiveram um entendimento totalmente diferente. Quer Sérgio Moro na primeira instância, quer o coletivo do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, de Porto Alegre, consideraram haver ampla prova para condenar Lula. “As provas resistiram, sejam as provas documentais, sejam as provas testemunhais, resistiram a esse cotejo. E se resistiram, refletem sua substância. E se refletem a sua substância, permitem que se forme um convencimento com base nelas”, declarou o desembargador Victor Laus.
Mas que provas são então estas que uns garantem não ser suficientes para condenar e outros afirmam ser evidências inegáveis de que Lula foi corrompido? O Observador apresenta as mais importantes que foram destacadas em tribunal.
O documento que prova que Lula e a mulher começaram a pagar um apartamento “normal”
O termo de adesão e compromisso de compra com a Bancoop, encontrado pelas autoridades em casa do ex-Presidente, prova que o casal se comprometeu com uma quota da cooperativa para comprar o apartamento número 141, considerado uma “unidade normal”.
O documento data de 1 de abril de 2005 e está assinado por Marisa Letícia, mulher de Lula, que viria a morrer de AVC em fevereiro de 2017.
A defesa de Lula: Para o antigo chefe de Estado, isto nada prova, já que assegura terem acabado por desistir da compra do apartamento 141. “Simplesmente, a minha mulher resolveu comprar uma quota da cooperativa Bancoop. Disse que comprou na cooperativa dos bancários uma quota de um apartamento”, declarou Lula a Sérgio Moro. Questionado sobre se havia intenção de adquirir o triplex em vez de um apartamento, respondeu “nunca”.
O número rasurado
Na casa de Lula foi também encontrado um documento de proposta de aquisição do imóvel. No papel, as perícias da polícia determinaram que o número 174 foi rasurado para se assemelhar antes ao número 141 — ou seja, para passar do “triplex” para um apartamento normal, de forma a iludir as autoridades. Segundo a Folha de S. Paulo, um perito concluiu que a rasura foi feita na mesma altura em que foi preenchido o documento.
A defesa de Lula: O ex-presidente diz nunca ter visto o documento na vida.
O ficheiro Excel da Bancoop
Na sede da Bancoop, as autoridades encontraram folhas de cálculo com uma listagem de todas as unidades do empreendimento. Apenas uma tinha a indicação de “reservada”: precisamente a 174 o “triplex”.
A defesa de Lula: “Só tem alguém que pode responder, que é a Bancoop.”
O mistério da inação de Marisa
Quando a Bancoop passou o empreendimento para a OAS, a cooperativa definiu que os associados podiam então celebrar novos contratos ou pedir a restituição do dinheiro que já tinham pago por cada apartamento. Contudo, Lula e a mulher nada fizeram: nem novo contrato, nem restituição do dinheiro.
Marisa acabaria por desistir do apartamento, mas apenas em novembro de 2015. Sérgio Moro ressaltou que tal só ocorreu já “depois da prisão cautelar de José Adelmário Pinheiro Filho [conhecido por Léo Pinheiro e presidente da construtora OAS] e da publicação a partir de 7 de dezembro de 2014 de matérias em jornais sobre o triplex”.
A defesa de Lula: O ex-Presidente tem-se queixado da dificuldade que é responder pela mulher, que já morreu. “Perguntar coisa para mim de uma pessoa que já morreu é muito difícil”, queixou-se a Moro num interrogatório. Contudo, apresentou uma possível explicação: “Eu tenho uma hipótese, a dona Marisa pode não ter recebido o convite para participar da assembleia [dos cooperados]”, disse, aquando da transferência da construção da Bancoop para a OAS e da possibilidade de receber o dinheiro de volta.
Sérgio Moro, o juiz responsável pela instrução e julgamento do caso de Lula da Silva
O testemunho de Léo Pinheiro (e a sua delação premiada falhada)
Léo Pinheiro, à altura presidente da OAS, começou por ser interrogado pelas autoridades no âmbito da Operação Lava Jato em 2014, tendo sido logo preso. Negociou um acordo de delação premiada com os investigadores mas, em 2016, o acordo caiu por terra. Tudo porque a Procuradoria acusou-o de quebra de confidencialidade, depois de ter surgido uma notícia sobre o acordo na revista Veja.
Apesar disso, Pinheiro quis colaborar na mesma com a investigação, na esperança de que tal ajudasse a reduzir a sua pena, o que veio a acontecer: Sérgio Moro, no final do julgamento, reduziu a pena que lhe aplicou de 10 anos e oito meses de prisão para uma pena de apenas 2 anos e seis meses em regime fechado, passando o resto da pena a regime aberto. Léo Pinheiro está ainda condenado a outros 42 anos de prisão, por outras duas sentenças também aplicadas por Moro, relacionadas com a Lava Jato.
No entanto, o juiz decidiu estender “o benefício” “às penas unificadas nos demais processos julgados por este juízo”. Em segunda instância, o Tribunal de Porto Alegre alterou a pena dos 10 para três anos e seis meses, em regime semiaberto.
“O Presidente foi ao apartamento para dizer o que eles queriam, porque eu não tinha ideia de quanto ia gastar. Quando a dona Marisa e o Presidente estiveram no apartamento, e nós fizemos o projeto, nós tivemos quantificado. Levei para o Vaccari e isso fez parte de um encontro de contas com ele.”
Depoimento de Léo Pinheiro, presidente da OAS
No julgamento de Lula, Léo Pinheiro declarou que foi contactado pelo ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, para que a OAS tomasse conta das obras do empreendimento no Guarujá, dizendo-lhe que um dos apartamentos seria para “a família do Presidente Lula”.
“O Presidente foi ao apartamento para dizer o que eles queriam, porque eu não tinha ideia de quanto ia gastar. Quando a dona Marisa e o Presidente estiveram no apartamento, e nós fizemos o projeto, nós tivemos quantificado. Levei para o Vaccari e isso fez parte de um encontro de contas com ele”, declarou. Sobre o pagamento, explicou que o acordado era que o valor da diferença entre o apartamento simples e o triplex, bem como o das obras, seriam debitadas de uma conta informal que existia entre a PT e a OAS, supostamente com dinheiro de subornos relacionados com contratos fraudulentos da Petrobrás e do Governo.
A defesa de Lula: “Vi o depoimento do Léo e, sinceramente, a mentira contada de que o Vaccari tinha oferecido um triplex logo no começo da construção é de um irrealismo total. Primeiro, porque o Vaccari tem prédio lá ou tinha um apartamento lá, ele poderia reivindicar o triplex para ele ou para outra pessoa; segundo, o Vaccari não ia passar o que não era dele para quem quer que seja. Eu vi o depoimento e achei muito irreal e uma deslavada inverdade contra o Vaccari”.
O email do triplex com “atenção especial”
Em 2012, Lucas Pithon Gordilho (empregado da OAS Empreendimentos) e Telmo Tonolli (diretor da OAS Empreendimentos) trocaram uma série de emails sobre o edifício. A certa altura, o empregado afirma: “Seria bom sabermos qual das coberturas [últimos pisos] é a que precisamos ter atenção especial”. Resposta: “164” [novo número atribuído ao triplex desde que passou para a OAS].
A defesa de Lula: “Não posso responder por e-mails ou por telefonemas entre terceiros”, disse. “Posso responder pelo que eu fiz ou pelo que eu não fiz.”
As mensagens no WhatsApp sobre o “chefe”, a “madame” e “Fábio”
“O projeto da cozinha do chefe tá pronto. Se marcar com a madame pode ser à hora que quiser”, escreveu Paulo Gordilho, engenheiro da OAS, para Léo Pinheiro, pelo WhatsApp. Segue-se uma troca de mensagens, e no dia seguinte o presidente informa que “o Fábio ligou a desmarcar”. Para a acusação, a tradução é simples: o “chefe” é Lula, a “madame” é Marisa e “Fábio” é o filho dos dois, que tem mesmo esse nome.
A defesa de Lula: Volta a responder que não responde “por terceiros”.
“Todo o mundo sabia na OAS” que apartamento era de Lula
O mesmo Gordilho testemunhou ao juiz que sabia que o apartamento era para o Presidente. “Isso todo o mundo sabia na OAS. Foi em reunião de diretoria, em 2011, por aí. Uma das pessoas perguntou ‘qual é o apartamento do Lula?’, aí mostraram na caneta laser: ‘é esse aqui’”, declarou. Disse ainda que chegou a estar com Léo Pinheiro na casa de Lula em São Bernanrdo para ele aprovar o projeto.
A defesa de Lula: Repete-se o argumento das anteriores.
A visita dos “500 defeitos”
É sabido e confirmado pelo próprio Lula da Silva que visitou o triplex. Há inclusivamente fotos desse encontro. Para a acusação, é prova inegável de que estava envolvido nas obras.
A defesa de Lula: “Eu tratei do triplex com o Léo uma vez que ele foi no Instituto dizer que eu tinha que visitar e o dia que eu fui visitar o prédio. Nunca mais tratei de triplex, nem de quadruplex”, diz o antigo Presidente. Afirma que colocou “500 defeitos” no imóvel e que compreendeu que não valeria a pena comprá-lo, por quase nunca ir à praia e por achá-lo demasiado pequeno para toda a sua família. “Eu não ia ficar com o apartamento, mas a dona Marisa ainda tinha dúvida se ia ficar para fazer negócio ou não”, explicou. Ou seja, possivelmente vendê-lo. Mas, diz Lula, acabaram por desistir da ideia.
"Todos sabiam lá que o apartamento pertencia ao ex-Presidente Lula, inclusive até os condóminos sabiam também que era dele o apartamento."
José Afonso Pinheiro, porteiro do edifício
O projeto pedido por Fábio
Roberto Moreia, funcionário da OAS, prestou depoimento garantindo que o filho do Presidente lhe pediu diretamente um projeto e orçamento para as obras no triplex, depois da tal visita de Lula e Marisa. “Depois dessa visita eles foram embora, eu ainda permaneci no Guarujá com o Igor, e tempos depois, semanas depois, o Fábio me chamou na sala dele e pediu para fazer algumas adequações, alguma reforma no apartamento, que inicialmente fizesse um projeto, fizesse um orçamento, apresentasse para ele para que fosse feito no apartamento.”
Outros funcionários da OAS, contudo, negam ter tido informações de que o apartamento fosse de Lula. É o caso de Igor Ramos Pontes, que acompanhou o casal na visita, mas diz pensar que se tratava de uma visita de possível comprador.
A defesa de Lula: Como das outras vezes, não comenta testemunhos de terceiros (com exceção do de Léo Pinheiro).
O porteiro do Solaris
José Afonso Pinheiro, porteiro do edifício Solaris, garantiu no seu depoimento a Sérgio Moro que o triplex nunca foi colocado à venda nem visitado por outros que não Lula e a sua família. Disse também que Igor Pontes, da OAS, o pressionou para não dizer que o triplex pertencia a Lula. “Todos sabiam lá que o apartamento pertencia ao ex-Presidente Lula, inclusive até os condóminos sabiam também que era dele o apartamento, sempre houve esse comentário lá”, disse José Afonso.
A defesa de Lula: Na mesma linha das anteriores.
Manifestantes contra a prisão de Lula da Silva (Getty Images)
Os eletrodomésticos
O Ministério Público avalia as obras feitas no triplex pela empresa Tallento em 1,1 milhão de reais. As obras consistiram num elevador privativo, armários novos na cozinha, demolição de uma área, retirada de uma sauna, ampliação do deck da piscina e colocação de eletrodomésticos.
Mariuza Marques, empregada da OAS, confirmou que assinou um recibo de compra de eletrodomésticos pela OAS, mas que não os pagou. “Somente recebi os eletrodomésticos na unidade”, disse. Ou seja, diz que esteve no triplex para receber a entrega.
A defesa de Lula: O ex-Presidente garante que a mulher nunca lhe comunicou que estavam a ser feitas obras e a ser comprados móveis e eletrodomésticos para o apartamento, na esperança de possivelmente o vender caso o casal o comprasse. “Não relatou, e infelizmente ela não está viva para perguntar”, disse Lula.
A peça do Globo
A acusação apresentou ainda como prova um artigo do jornal O Globosobre o atraso nas obras do empreendimento da Bancoop, em que era mencionado que Lula tinha um triplex no Guarujá, tendo a informação sido confirmada pela assessoria do Presidente à altura. “O prédio, no entanto, está no osso: sem nenhum acabamento, nem portas, janelas ou elevadores. É nele que a família Lula da Silva deverá ocupar a cobertura triplex, com vista para o mar”, pode ler-se na peça.
A defesa de Lula: Colocou os jornalistas em tribunal, acusando-os de mentir. Contudo, perdeu a ação tanto na primeira como na segunda instância.
O “tratamento diferenciado” ao PT
Agenor Franklin, diretor da área de Petróleo e Gás da OAS, confirmou que a construtora tinha um departamento para tratar dos subornos — a “Controladoria” — e que o PT tinha “um tratamento diferenciado, justamente por ser o partido que tinha maiores valores envolvidos”. Franklin, que também foi condenado no processo, garantiu que o valor triplex seria debitado da conta de subornos ao PT, que em troca teria ajudado a negociar contratos com a Petrobrás.
A defesa de Lula: O ex-Presidente garante que não sabia do alegado esquema, porque “quem monta cartel para roubar não conta a ninguém”. “O Presidente da República não participa do processo de licitação da Petrobras, o Presidente da República não participa de tomada de preço da Petrobras, é um problema interno da Petrobras”, acrescentou.
“Quem monta cartel para roubar não conta a ninguém (...) O Presidente da República não participa do processo de licitação da Petrobras, o Presidente da República não participa de tomada de preço da Petrobras, é um problema interno da Petrobras.”
Lula da Silva explicando que não tinha como saber do esquema da Lava Jato
A declaração de IRS
Na declaração de Imposto sobre a Renda (o correspondente à declaração de IRS portuguesa), Lula e Marisa declararam ter o apartamento simples em Guarujá — ou seja, o 141. Em 2014, a OAS vendeu essa unidade a outros compradores; contudo, Lula continuou a declarar a posse do imóvel nas declarações de impostos, alterando essa informação apenas em 2016. Por casa disso, o ex-Presidente foi acusado e condenado por prestar informações falsas ao Fisco e por lavagem de dinheiro.
A defesa de Lula: Argumenta que a declaração de IRS só ajuda a sustentar a sua defesa, por provar que não iria declarar a posse de um apartamento que não tinha: “Como é que alguém pode imaginar em sã consciência, doutor Moro, que um cidadão compra um apartamento que vale 10 e depois declarou no imposto de renda 5 anos seguidos, e depois aparece um apartamento que vale 20 sem nenhuma explicação?”.
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Em recurso para a segunda instância, a defesa de Lula argumentou ter havido “parcialidade do juiz Sérgio Moro”, “condução coerciva de Lula [em interrogatório]”, “quebra de sigilo do escritório Teixeira Advogados”, “cerceamento da defesa” e “nulidades” na sentença.
A defesa argumentou ainda que a Procuradoria não provou ter havido qualquer contrapartida da parte de Lula pelo alegado suborno, mas nem isso serviu para convencer o coletivo de juízes de Porto Alegre. O desembargador João Gebran Neto declarou que, como a jurisprudência do caso Mensalão instaurou, o Supremo não exige a contrapartida para que se configure o crime de corrupção, bastando apenas a solicitação.
O tribunal não só confirmou a decisão como optou por aumentar a pena de Lula da Silva de nove para 12 anos e um mês de prisão, por se tratar de um antigo Presidente da República. “É lembrar que a eleição de um mandatário, em particular de um Presidente da República, traz consigo a esperança da população em melhor projeto de vida”, resumiu Gebran, para quem estas 15 provas chegaram para confirmar a condenação.
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