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sábado, 7 de abril de 2018

As ansiedades ultracostistas

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 07/04/2018)

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Estamos em vésperas de eleições? Nada disso, ainda falta terminar um campeonato de futebol, que anda aflitivo, fazer-se um mundial e mais outro campeonato nacional e ainda começará um terceiro. Uma eternidade. De onde vêm então estas ansiedades sobre os resultados de eleições que serão dentro de tanto tempo? De dois fatores, na minha opinião, e nenhum deles recomendável: primeiro, o PSD dá por adquirida a derrota da direita, no que é seguido por empresários que, mais descarados e habituados às coisas da vida, fazem fila pela putativa e salvífica maioria absoluta do PS; segundo, para tantos comentadores isto é não é uma profissão nem uma vocação, a cenarização é uma obsessão. Mas o que revela então este jogo?

Cuidado com as contas que não contam

Martim Silva disparou no Expresso a primeira salva da recente reencarnação deste debate, se é que é um debate. Com a elegância dos números, comparou a recente sondagem do Expresso com os resultados eleitorais de 2005 para dizer que, se a distribuição dos votos se desviasse em 5,9% entre esta sondagem e a conta final, teríamos uma maioria absoluta do PS. Portanto, não estamos longe. O autor resguarda-se de todos os imprevistos e não dá por certa essa convergência cósmica, e é nisso prudente, ele sabe que em ano e meio tudo pode mudar. Mas a analogia é fraca. Terão passado 14 anos sobre a tal vitória socratista quando chegarmos às próximas eleições: haverá votantes que só tinham 4 anos quando Sócrates ganhou essa maioria absoluta e, entretanto, tanta água passou debaixo das pontes.

Além disso, cuidado com as sondagens, elas enganam-se e conseguem mesmo enganar-se por muito: a que serve de referência a Martim Silva enganou-se ao adivinhar um emparelhamento entre Maria de Belém e Sampaio da Nóvoa em 2016 (a diferença foi de 18,64%), e este jornal que tem nas mãos anunciava, com base na mesma sondagem, que o que veio a ser o terceiro partido nas últimas eleições iria desvanecer-se nas urnas. Entre as sondagens e a realidade, a realidade é mais teimosa. Assim, cuidado com conclusões simplistas a partir das sondagens e cuidado com as solenes analogias históricas.

A direita faz tudo o que Costa precisa?

Fica o problema: será que a antecipada derrota do PSD e do CDS abre suficiente espaço para essa reviravolta que daria a maioria absoluta a António Costa? Poderá ele então dar corpo a essa esperança calada de uma reviravolta à la cavaquismo, salvo seja, passando de maioria relativa para absoluta e impondo então a predominância do PS? Só no fim do desafio se pode fazer uma previsão, dizia um sensato treinador. Por outras palavras, tudo é especulação para tempos demasiado afastados, o assunto não vale uma lauda.

O que, em contrapartida, já sabemos, são três certezas, como se diria em bom politiquês. Primeira, Costa procederá como se o assunto lhe fosse indiferente. É a sua melhor estratégia: se fugir o bicho pega se ficar o bicho come. Aparecer exasperado com o poder absoluto acentuaria desconfianças de que o PS quer voltar à sua governação do passado; só sendo cordial com a esquerda pode tranquilizar esses receios, que lhe poderiam ser fatais. Segunda certeza, a esquerda saberá que não terá condições para novo acordo se o PS tiver maioria absoluta, assunto encerrado. Terceira, a direita continuará a oferecer os seus préstimos para libertar o PS da influência nefanda das esquerdas, e Marques Mendes faz um favor às esquerdas relembrando, aqui em sintonia com Rio, que uma solução de Bloco Central ainda pode estar escrita nas estrelas. No mesmo sentido, Júdice insiste e persiste, clamando pela maioria absoluta para Costa. Essas são as certezas, se a leitora ou o leitor me permitem a conclusividade.

Tudo o que é certo se pode desvanecer

Só que o incerto é muito mais território. É incerto se a pressão que está a ser exercida sobre o PCP resultará, pois é muito agressiva senão descarada: que o partido perde, vide as autárquicas (como se não tivesse subido das legislativas para as municipais), que fica sempre de lado (como se não tivesse conseguido vitórias negociais significativas), que os militantes não querem (como se as sondagens não dessem um larguíssimo apoio ao Governo entre os eleitores do PCP). Ora, é desse elemento de instabilização que depende a manobra que se repete todos os anos, sugerindo a impossibilidade de negociação orçamental. Foi assim desde janeiro de 2016. Por essa razão, João Oliveira arrumou o assunto ao declarar precocemente que o PCP aprovará o próximo orçamento.

Em todo o caso, será sempre tudo mais difícil: para o centro, porque os acordos pós-eleitorais serão sempre mais exigentes, seja à esquerda seja à direita; para a direita, porque arriscar uma campanha eleitoral para ajudar Costa é receita para o desastre; para a esquerda, que só se pode colocar na posição de propor um programa para o desenvolvimento social em Portugal, para a segurança da vida das pessoas e para uma economia mais protegida das intempéries externas. É por isso que, para a esquerda, o debate é o que faz Centeno agora, não sobre o cargo que este ocupará dentro de ano e meio.

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O cinema que gosta de si

Lembrou um crítico arguto, João Lopes, que passam trinta anos sobre “Cinema Paraíso”, o filme de Giuseppe Tornatore que foi premiado em Cannes e recebeu o Óscar para o melhor filme estrangeiro. Lembra-se? Olhe que viu, de certeza. O filme é um flashback sobre a vida de um miúdo, futuro realizador, na sua aldeia natal, na Sicília, onde descobre a magia da imagem e de onde recebe, já adulto e com carreira reconhecida, uma prenda inesperada e póstuma do seu cúmplice de então, o projetista, que lhe manda uma comovedora montagem das cenas censuradas dos filmes da infância, tudo o que então só podia adivinhar. Neste caso, o cinema homenageia-se contando a história de uma vida e mostrando também, nota Lopes, como o cinema se faz de luz, sombras e composição. É essa iluminação que quero homenagear.

“Cinema Paraíso” não era uma nostalgia, ao contrário de muitas evocações posteriores do cinema por si próprio. Esse será o caso, por exemplo, de “O Artista”, de Michel Hazanavicius, que ganhou o Óscar em 2012, e de “A Invenção de Hugo”, de Martin Scorsese, de 2011. “O Artista” conseguiu a lágrima simpática do júri e não deixa de ser um objeto imaginoso. Lembra-nos um cinema em que ainda não se tratava da vida, mas sim da aventura; queria simplesmente escrever uma fantasia escapista. Para mais, ao usar as técnicas narrativas do cinema mudo (a música, as legendas intercalando as imagens) num filme que joga na ambiguidade, porque alguns dos atores representam em mudo e outros já usam o som, Hazanavicius homenageava a capacidade camaleónica do cinema: aquele novo cinema fazia tudo, da comédia ao musical e do drama à novela de amor.

“A Invenção de Hugo”, de Martin Scorsese, é uma homenagem mais assumida, recordando Georges Meliès, um esquecido precursor do cinema moderno, transferido do circo e da prestidigitação para a indústria do cinema. O filme mostra a produção em série de adaptações que levavam a fantasia ao seu píncaro. Meliès era um industrial, logo derrotado pela concorrência e pelos sentimentos de um tempo atravessado pela tristeza de uma guerra mundial, mas que teve a sorte de se cruzar com um órfão engenhoso e implausível — mas não é tudo isto fantasia delirante? — que recupera uma das suas máquinas e que a esconde dentro do labirinto dos relógios de uma estação de caminho de ferro.

É, portanto, no meio das máquinas modernas, e o caminho de ferro é o arquétipo do mundo moderno, da sua velocidade, do aço moldado, da energia, que se vai descobrir um vislumbre do passado no cinema e nas suas imagens ingénuas. Scorsese só inclui no filme um relance do outro cinema, o contemporâneo, quando abre a cortina sobre um filme que as duas crianças vão espreitar; mas só espreitam. Os dois mundos — o cinema mudo e o falado, como em Hazanavicius — eram simplesmente uma montagem sobre a azáfama e os encantamentos da estação de caminho de ferro, onde a ação se passava. O cinema mirava-se deste modo como elogio da técnica.

O que “Cinema Paraíso” tinha, e outros não, é essa comovente exigência consigo próprio, porque olhava para este lado do ecrã. No verdadeiro cinema, é a emoção que faz a técnica e não a técnica que faz a emoção. Disso só houve um vislumbre nos últimos Óscares, e só um vislumbre, com Daniel Day-Lewis e com “Chama-me pelo Teu Nome”. Trinta anos depois, o cinema ainda é paraíso em alguns dos seus momentos.

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