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sábado, 21 de abril de 2018

As escolhas: o que interessa e o que apenas entretém

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 21/04/2018)

MST5

1 Portugal é um país assaz curioso: dentro da sua pequenez geográfica, o grande fascínio que tem é a sua diversidade — paisagística, cultural, arquitectónica, culinária. É tudo menos um país monótono. Mas, simultaneamente, do ponto de vista político, essa pequena dimensão geográfica, aliada a uma antiquíssima unidade e identidade nacionais e à sua localização na periferia de todos os conflitos contemporâneos que dilaceram a Europa e o mundo, mais os nossos tradicionais brandos, e agora liberais, costumes, deveria fazer deste país uma espécie de modelo perfeito de boa e fácil governança. Por que razão tal não sucede, então — pelo menos a fazer fé nas conversas com que os portugueses se entretêm nas tertúlias de café ou nos fóruns das rádios, onde se aliviam sem tréguas do seu inesgotável ódio e desprezo pela gestão política do país, venham os governos que vierem? Bem, há sempre aquela explicação, meio lenda meio verdade, do general romano que escrevia a César explicando que o problema era do povo que aqui vivia, os lusitanos, que nem se governavam nem se deixavam governar. Deixo a explicação profunda para os politólogos, que estudaram para isso, mas confesso que às vezes fico a pensar se o conceito de política que os portugueses gostam de discutir é realmente a política que interessa discutir. A política, simplesmente. E não a politiquice. Um bom exemplo é o charivari feito a propósito dos dois acordos estabelecidos esta semana entre o Governo PS e o PSD.

O que acordaram Costa e Rio de tão determinante e grave que levou a oposição interna a Rio a acusá-lo de posicionar publicamente o PSD como “muleta do PS”, os parceiros de extrema-esquerda do Governo a entrar em histeria de cônjuge enganado e os especialistas da politiquice a cheirarem sinais iniludíveis de regresso ao “bloco central”? Bom, primeiro acordaram numa posição conjunta em Bruxelas que permite defender a manutenção do valor do cheque de fundos estruturais a favor de Portugal no programa 20/30, já sem a contribuição inglesa, após o ‘Brexit’. É caso para perguntar a quem é que isto incomoda? Há por aí alguém, algum partido, que defenda o contrário, menos dinheiro de Bruxelas? A seguir, os dois conjurados defenderam aquilo a que pomposamente chamaram “pacote da descentralização”, que mais não é do que um tímido acréscimo de competências para as autarquias locais, acompanhado do respectivo envelope financeiro. Aqui entre nós, um simulacro de descentralização, que nada de substancial muda e a ninguém incomoda — a começar pelo PCP, o outro partido autárquico. Descentralizar é coisa absolutamente diferente e estamos longe, muito longe de ouvir o primeiro partido atrever-se a defendê-la, além dos discursos vácuos. E há duas formas de a fazer. Uma é a forma falsa, demagógica e ruinosa, que consiste em recuperar o já derrotado processo de regionalização. Dividiria o país em coutadas políticas, ao serviço dos partidos e seus caciques locais, instalaria um clima de guerra civil, financeira e política, permanente, e levaria Portugal à bancarrota num instante. A outra seria a fórmula séria, a única que verdadeiramente promoveria a descentralização e combateria aquele que é um dos principais problemas que enfrentamos, que é o despovoamento e envelhecimento galopante do interior. Consistiria em deslocar para fora dos grandes centros urbanos empresas públicas de vocação industrial e serviços públicos de apoio à indústria, à agricultura e infraestruturas, deslocar universidades e centros de investigação, em lugar de alterar excepcionalmente o PDM de Lisboa para os colocar à beira-Tejo, obrigar os museus, teatros e orquestras nacionais a passarem metade da temporada em digressão pelo interior, promover uma radical reforma fiscal que tributasse a zero por cento de IRC as empresas que se fossem instalar longe dos grandes centros urbanos criando postos de trabalho efectivos e com 50% de desconto o IRS dos trabalhadores, que criasse uma jurisdição especial para resolução acelerada de conflitos na aérea comercial, empresarial e de trabalho, e, já agora, se faz favor, uma política implacável de protecção ambiental, sem celuloses nem pocilgas nem lagares de azeite a despejarem esgotos sem tratamento para os rios. Enfim, uma descentralização que, preservando a superior qualidade de vida do interior e tirando partido dela, lhe trouxesse o mais precioso dos capitais para o seu desenvolvimento: o capital humano. É a isso que eu chamo política a sério. Mas dá trabalho e exige reflexão e coragem. Não vai a tempo das eleições de 2019.

2 Deixemos então de lado as escolhas que apenas entretêm e que tanto ocuparam os partidos, o Parlamento e os especialistas nestes assuntos esta semana, e vamos àquelas, que, de facto, interessam. A mais importante de todas foi levantada por Mário Centeno a propósito do Programa de Estabilidade para os quatro próximos anos e já aqui escrevi brevemente sobre isso há oito dias.

A questão pode resumir-se, como Centeno fez. E de forma simples e linear, o que só torna a escolha mais fácil: o que fazer com os 800 milhões de euros de saldo que vamos herdar da execução orçamental: aproveitá-los para diminuir a dívida ou gastá-los? Num cenário perfeito, a resposta seria simples: vamos gastá-los e renegociar a dívida, cortando parte do capital ou dos juros. Não digo que não fosse justo, pelo menos em parte e atendendo à composição da dívida, mas o certo é que não está nas nossas mãos consegui-lo e o contexto político europeu está longe de se mostrar propício a tal. Mais vale portanto tratar do assunto sem esperar a generosidade alheia.

O que fazer com os 800 milhões euros de saldo que vamos herdar da execução orçamental: aproveitá-los para diminuir a dívida ou gastá-los?

Na tese dos que defendem que o dinheiro sobrante é para ser gasto, coexistem dois argumentos, um formal e outro substancial. O argumento formal é que o défice previsto para este era de 1,1% e não de 0,7, como agora se prevê — a tal diferença de 800 milhões de euros, já incluindo nova injecção para prejuízos desse ruinoso brinquedo que é o Novo Banco. Logo, cumpra-se o Orçamento. A tese substancial é que não é socialmente aceitável continuar uma política de contenção de despesas além do acordado, quando falta dinheiro para serviços públicos essenciais, designadamente na saúde e na educação. Isto é o que diz o BE, porque o PCP vai mais longe e quer dinheiro para tudo o resto, na sua tradição de que não há limite para a despesa pública e que se os governos não aumentam salários, pensões, subsídios e tudo o resto, é só porque não querem.

A tese oposta, aparentemente partilhada sem estados de alma por António Costa e todo o Governo, é que não sobra dinheiro algum: há sim 800 milhões de euros de dívida a menos para pagar, mais os respectivos juros. E que, se não aproveitarmos esta conjuntura excepcional de crescimento económico, aqui e na Europa, e de juros baixos (a qual em breve se espera que começa a mudar), teremos perdido uma oportunidade, que tão cedo pode não se repetir, de trazer o monstro da dívida pública para patamares que não nos sufoquem a todos. E que nos coloquem em situação de nos deixar mais bem preparados para enfrentar uma crise como a de 2008, que nos obrigou a pedir ajuda externa quando os juros da dívida chegaram aos 10% nos mercados.

A escolha é esta. Há pormenores mal explicados em cada uma das posições: custa-me a perceber, por exemplo, como é que com cada vez menos crianças e menos escolas e depois do imenso investimento na Parque Escolar, ainda falta tanto dinheiro para a educação; assim como me custa a perceber como é que a banca, mesmo depois da Resolução e alegada privatização do BES, continua a ser um saco de dinheiro roubado aos contribuintes cujo fundo ninguém conhece. Mas, independentemente dessas nebulosas, também não consigo entender como é que os partidos que mais gritaram contra os encargos da dívida pública, o BE e o PCP, agora acham que diminuí-la, aproveitando as condições favoráveis, não é uma prioridade da política de finanças públicas. Ou conhecerão uma solução milagrosa?


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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