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terça-feira, 3 de abril de 2018

Ladrões de Bicicletas

Não somos todos Centeno

Posted: 03 Apr 2018 12:42 AM PDT

O Ministro da Saúde afiançou no fim-de-semana passada ao Expresso que “somos todos Centeno”. Por sua vez, Ana Catarina Mendes garantiu ontem no Público que “gostaria de ver Centeno num próximo governo do PS”. Diria antes que num próximo governo é necessário superar as políticas de Centeno, da banca ao investimento público, o que exige alterações bem profundas, incluindo na política externa nacional. Para justificar esta posição, deixo aqui o artigo que escrevi, também sobre Centeno, no Le Monde diplomatique – edição portuguesa:
Por quem o sininho dobra no Eurogrupo?
Yanis Varoufakis, ministro das Finanças grego durante o primeiro semestre de 2015, escreveu um livro recentemente editado entre nós com o título Comportem-se como Adultos [i]. Creio que pode ser útil tê-lo presente numa reflexão sobre a chamada eleição de Mário Centeno para a chamada presidência do chamado Eurogrupo. É, como já escrevemos em recensão à edição inglesa original, simultaneamente um livro de memórias, de economia e um thriller político, destinado a justificar o seu papel e a sua derrota, ou seja, a capitulação do governo liderado pelo Syriza perante um «golpe de Estado financeiro» e a eventual cooptação europeia da esquerda dita radical  [ii]. Afinal de contas, o governo grego passou a comportar-se como um adulto, usando os reveladores termos de Christine Lagarde, directora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), mantendo a linha política anterior – da austeridade às privatizações ou à redução de direitos laborais –, em nome da promessa de uma nova reestruturação da sua dívida pública nos tempos e nos termos dos credores.
É verdade que o livro torna evidentes as contradições do próprio Varoufakis, da sua crença num europeísmo comum capaz de gerar uma solução mutuamente vantajosa até à evidente falta de preparação técnica e política de um plano B, assumido como eventualmente necessário e que teria de contemplar a saída do euro, passando pelo seu desprezo elitista pela militância e vida partidárias ou pela sua incapacidade de reconhecer erros próprios. Mas também é verdade que nos dá um vislumbre inédito do funcionamento, em grande medida secreto e em toda a medida pós-democrático, da mais poderosa máquina de liberalização jamais inventada – a União Europeia (UE), em geral, e a zona euro, em particular – e da consequente arrogância da elite, sem freios e contrapesos significativos, que maneja essa máquina.
Da informalidade e da sua utilidade
Vale a pena reter por agora a descrição que Varoufakis faz do chamado Eurogrupo: «O Eurogrupo é um animal interessante. Não tem existência legal em nenhum tratado da UE e, não obstante, é o organismo que toma as decisões mais vitais da Europa. Ao mesmo tempo, a maioria dos europeus, incluindo a maioria dos políticos, não sabe quase nada acerca dele. Reúne-se à volta de uma enorme mesa retangular. Os Ministros das Finanças [dos países da zona euro] sentam-se dos dois lados compridos, cada um acompanhado por um único assessor, que também os representa no Grupo de Trabalho do Eurogrupo. Contudo, o verdadeiro poder encontra-se de uma ponta e outra da mesa» [iii].
De facto, neste órgão reconhecidamente «informal», segundo a própria informação oficial [iv], uma parte do poder, a fazer fé em Varoufakis, residia não no presidente, mas sim no presidente do Grupo de Trabalho. Mas era na outra ponta da mesa que se concentrava o maior poder, dado que aí se sentavam os dois comissários das áreas económicas e financeiras, os representantes do Banco Central Europeu (BCE), sem esquecer que no «mesmo canto da mesa que [Mario] Draghi, mas do lado mais comprido e em ângulo recto com ele», se sentava o ministro das Finanças alemão [v]. Ou seja, era aí que estava o representante da variante alemã do neoliberalismo, o ordoliberalismo, bem entranhado desde há décadas nas duas alas – União Democrata-Cristã (CDU) e Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) – do «partido» exportador da maior economia da área e, por maioria de razão, nas instituições europeias.
A informalidade do Eurogrupo tem servido bem as grandes potências, em especial a Alemanha. A formalidade das restantes instituições europeias serve o pesado acervo de regras políticas que de forma explícita se destina a construir mercados mais amplos e que operem em cada vez mais esferas da vida, beneficiando os «povos dos mercados», os ganhadores da integração. E isto à custa da soberania democrática de Estados nacionais desprovidos de instrumentos decentes de política, o que é pior para as periferias, que deles mais necessitam, e dentro destas para os «povos dos Estados», a grande massa de perdedores [vi]. No fundo, a complexidade e opacidade institucional da União Europeia e da zona euro estão ao serviço de duas lógicas que não se articulam espontaneamente, mas que requerem instituições, formais e informais, para esse efeito: a da geopolítica, associada ao poder das grandes potências, e a de classe, associada à dominação do capital financeiro.

Bravo, Mário?
Neste contexto estrutural, o episódio da entrega do sininho, com que Jeroen Dijsselbloem abria as reuniões do Eurogrupo, a Mário Centeno, que o passou a usar, foi uma tentativa algo patética de dar a dimensão cerimonial possível à passagem de testemunho num órgão informal, onde o poder não está realmente na sua chamada presidência. Numa excitação em crescendo, a generalidade da comunicação social portuguesa reproduziu acriticamente o tom e os termos da declaração do comissário europeu dos assuntos económicos e financeiros, o socialista francês Pierre Moscovici – «Bravo, Mário, pela condução da tua primeira reunião como Presidente do Eurogrupo. És verdadeiramente o Ronaldo das Finanças portuguesas». Moscovici, por sua vez, reproduzia a famosa metáfora do então ministro das Finanças e actual presidente do Parlamento alemão, Wolfgang Schäuble, quando este deu a sua bênção ao português e à sua política, mostrando que a hegemonia também passa pelas metáforas. Na imprensa garantia-se agora, em grande parangonas, que «só saíram boas notícias da primeira reunião de Centeno como presidente do Eurogrupo», incluindo para a Grécia [vii]. Acontece que, também para a Grécia, não houve ali qualquer novidade, já que o plano está há muito definido, depois do esmagamento da alternativa. Esse plano foi, de resto, claramente confirmado no primeiro documento do Eurogrupo da presidência do português, em termos em tudo idênticos aos do último documento da presidência do holandês: referências vagas «a medidas de alívio da dívida, se necessário», mas só depois da conclusão formal do programa da Troika [viii]. A dívida continua a ser um instrumento para garantir a conformação política. Tal como na reestruturação da dívida de 2012, em 2018 os termos e os tempos serão definidos pelos credores. Entretanto, passou despercebida uma mudança no que Varoufakis apodou de «establishment profundo da Europa» [ix], com a poderosa presidência do Grupo de Trabalho do Eurogrupo a passar do austríaco Thomas Wieser, uma das figuras sinistras por detrás do drama grego, para o holandês Hans Vijlbrief, oriundo do historicamente ortodoxo Ministério das Finanças holandês. Mudam as caras, mas a orientação é a mesma.
Seja como for, afiançam os crentes nas possibilidades agora abertas de reforma do euro, Mário Centeno terá pelo menos a oportunidade de influenciar a agenda e o debate europeus, ainda que informais, exportando eventualmente alguns dos termos da solução governativa portuguesa para o Eurogrupo. Neste contexto, vale a pena retomar os termos mobilizados pela eurodeputada Marisa Matias numa interpelação ao novo presidente do Eurogrupo, quando declarou ficar à espera para ver «o que vai ganhar», «se é a influência de Mário Centeno no Eurogrupo, se é a influência do Eurogrupo em Mário Centeno» [x]. Retórica parlamentar e táctica política à parte, a verdade é que temos a obrigação de saber que para lá da escassa influência que terá, Mário Centeno não precisa de ser influenciado nem mudado pelo Eurogrupo, porque sempre aceitou, no essencial, os seus termos ideológicos, ganhando pelo seu currículo e pela sua política interna a confiança externa: é, note-se, o Cristiano Ronaldo das Finanças, porque jogou bem na periferia pelas regras fixadas pelo centro.
Em primeiro lugar, Centeno aceitou que o sistema bancário português continuasse a ser uma cobaia para testar a União Bancária em construção, permitindo que em Portugal se aplicasse, por exemplo no Banif e no Novo Banco, o princípio europeu do «pagam, mas não mandam», ou seja, os contribuintes nacionais pagam, como sempre acabam por pagar, pelos desmandos dos bancos, mas o capital estrangeiro fica com um maior controlo de um sistema assim mais vulnerável. A Caixa Geral de Depósitos (CGD), por sua vez, mantém-se como banco nominalmente público, mas o quadro regulatório europeu garante que é ainda mais intensamente compelida a comportar-se como se fosse um banco privado. Numa próxima crise, tudo será pior [xi].
Em segundo lugar, Centeno apostou no respeito mais do que escrupuloso por regras orçamentais crescentemente draconianas, dando a cara pela redução do investimento público nacional para valores mínimos na história da democracia. Portugal é, na União Europeia, o país com menos emprego público, em percentagem do emprego total, e com o investimento público, em percentagem do produto interno bruto (PIB), mais baixo. Os serviços públicos estão e estarão sob pressão. O défice orçamental mais baixo da democracia só não implicou sacrifícios equivalentes aos do tempo da Troika porque se trata de uma variável em grande medida endógena, ou seja, dependente do ritmo de andamento da economia. O crescimento económico registado, também à boleia da recuperação económica europeia, permitiu aliviar uma pressão que, devido às regras austeritárias dos tratados europeus, é constante. Entretanto, o emprego criado concentra-se em sectores de baixos salários como o turismo e a construção, correspondendo a um processo, indissociável do euro e acentuado pela Troika, de regressão estrutural, ou seja, de especialização crescente em sectores com menor potencial de inovação e de ganhos de produtividade, garantindo um lugar subalterno de Florida da Europa [xii].
Em terceiro lugar, se bem que o economista do trabalho Mário Centeno, oriundo do Banco de Portugal, com uma «visão de mercado» das relações laborais, revelador subtítulo de um seu livro, não tenha tido a oportunidade de aplicar as suas ideias, a verdade é que a sua influência crescente não pode ser desligada da manutenção da pesada herança da Troika nesta área [xiii]. A sua obsessão com a atracção de capital estrangeiro, também para colonizar sectores já existentes, indo para lá da banca, contribui para impedir qualquer alteração nas relações de propriedade, por exemplo através da renacionalização necessária de sectores estratégicos.
Em quarto lugar, Centeno foi um dos responsáveis pelo quase desaparecimento da discussão em torno da reestruturação da dívida, em particular pública, por iniciativa do país. A combinação de saldos primários (antes do pagamento de juros) positivos, com taxas de juro por agora baixas, graças à política do BCE, num contexto de crescimento económico, com antecipação de pagamentos da dívida ao FMI, permitem criar a ilusão conjuntural de que a opção da renegociação e reestruturação da dívida por iniciativa do país pode ser evitada, com todas as decorrências que daí advirão, incluindo a necessidade de nos prepararmos para a saída do euro.
O bloco central europeu, em conclusão
Para quem ainda tivesse dúvidas sobre o perfil de Mário Centeno, uma entrevista a uma cúmplice Teresa de Sousa esclarece-as. Nela defende que «temos agora estes dois grande blocos políticos [centro-direita e a direita, por um lado, e os sociais-democratas, por outro] com a necessidade de olhar para um lado e para o outro e, eventualmente, juntarem-se», reforçando o euro e assim aproximando a Europa da «agilidade» das economias anglo-saxónicas, que continua a tomar como esclarecedora referência [xiv].
O modelo económico é o dos Estados Unidos, como se vê também por uma das apostas por si alardeadas noutra intervenção já enquanto presidente do Eurogrupo, na Conferência do Semestre Europeu, a 20 de Fevereiro último: para lá de completar perversa União Bancária, que nos condena a ser controlados por bancos e reguladores estrangeiros, o aprofundamento da convergência com o capitalismo anglo-saxónico passa por reforçar o peso dos mercados financeiros à escala da União Europeia, a golpes de política, como não podia deixar de ser, através da aposta na União dos Mercados de Capitais. A memória das crises financeiras é mesmo curta. Um dos exemplos que Mário Centeno dá na sua intervenção na Conferência é revelador da ordem que está a ser criada à escala europeia: tal engenharia política facilitaria, entre outros, «a colocação das poupanças de um pensionista irlandês na Alemanha» [xv]. As pensões são entendidas aqui não como o resultado de um sistema de repartição como o da Segurança Social portuguesa, mas sim como poupanças individuais a serem jogadas num casino de dimensões europeias. Poucos exemplos ilustram melhor a ideologia da financeirização e da sua expressão ideológica, a neoliberalização, indissociáveis da economia política europeia realmente existente.
Mário Centeno é um problema crescente internamente. A questão não é pessoal, mas sim política. Talvez também tenha sido por isso que Jean-Claude Juncker apodou de sábia a sua eleição para a presidência do Eurogrupo.
[i] Yanis Varoufakis, Comportem-se como Adultos – A Minha Luta contra o Establishment na Europa, Marcador, Lisboa, 2017.
[ii] João Rodrigues e Nuno Teles, «Já não nos vemos gregos?», Público, 28 de Julho de 2017.
[iii] Yanis Varoufakis, p. 229.
[iv] www.consilium.europa.eu/pt/council-eu/eurogroup.
[v] Yanis Varoufakis, p. 229.
[vi] E isto para mobilizar a útil dicotomia de Wolfgang Streeck, Tempo Comprado, Actual, Coimbra, 2013.
[vii] Público, 22 de Janeiro de 2018.
[viii] www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2018/01/22/eg-statement-on-greece.
[ix] É de notar que o subtítulo da edição original, que em português seria qualquer coisa como «a minha luta contra o establishment profundo da Europa», passou na edição portuguesa a ser estranhamente um menos radical «a minha luta contra o establishment na Europa».
[x] www.esquerda.net/artigo/marisa-presidencia-do-eurogrupo-tem-constrangimentos-na-abordagem-dos-problemas/53356.
[xi] Ver João Rodrigues e Nuno Teles, «O Caso do Novo Banco: nacionalizar ou internacionalizar», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Junho de 2017.
[xii] Ver «A dupla face da recuperação: subida do emprego, estagnação da produtividade», Barómetro das Crises, Observatório sobre Crises e Alternativas, 29 de Novembro de 2017, disponível em www.ces.uc.pt/observatorios/crisalt/documentos/barometro/17BarometroCrises_Recuperacao.pdf.
[xiii] Ver Mário Centeno, O Trabalho – Uma visão de Mercado, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2013.
[xiv] Público, 9 de Dezembro de 2017.
[xv] Disponível em www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=5223a091-e2fd-4288-ac67-ad0f2cd38995.

Leituras

Posted: 02 Apr 2018 04:56 PM PDT

«A crise global diplomática, após o envenenamento de um ex-espião russo, é demasiado forçada ou exagerada para poder ser tomada como genuína, pelo menos, assim, acriticamente, como estamos a assistir. É que já vimos este filme: antes de nos solidarizarmos com o Reino Unido, independentemente de todas as alianças, convinha que os britânicos apresentassem provas mais consistentes do que aquelas que apresentaram quando nos impingiram a suposta existência de armas químicas no Iraque. (...) Visto desapaixonadamente, o crime aproveita muito mais a uma Grã-Bretanha em pleno Brexit e a uns EUA emaranhados na nuvem de suspeitas sobre a alegada mão russa por detrás do arbusto, na eleição de Donald Trump, do que aos russos, cujo único móbil seria a vingança. (...) É por isso que, antes de "engravidarmos" pelos ouvidos, com a exageradíssima tese de que um envenenamento de um indivíduo é o "primeiro ataque com armas químicas em solo europeu depois da II Guerra Mundial" (uuhhh!...), convinha estarmos seguros dos passos a dar».
Filipe Luís, Orgulhosamente sós
«Terão sido as mesmas fontes - igualmente credíveis - em que se baseiam agora May e Johnson que terão convencido Blair da irrefutável posse de armas de destruição massiva pelo Iraque. São conhecidas as consequências desastrosas dessas crenças sem a devida certificação. (...) Encontramo-nos numa estrada perigosa. Assistimos a algo que se assemelha ao início de uma guerra. As guerras, leia-se os confrontos militares generalizados, são sempre precedidos por uma escalada que passa pela subida de tom na retórica, a demonização do oponente, o reforço dos dispositivos militares e a conquista da opinião pública para apoiar ações mais assertivas contra o oponente. Depois é necessário criar um acontecimento, um pretexto que não tem necessariamente de ser causado pelo oponente e que é normalmente provocado por quem pensa que vai beneficiar com o resultado da guerra».
Carlos Branco, O caso Skripal e as dúvidas que ainda subsistem
«Este exercício de fechar os olhos e abanar o rabo conforme as orientações dominantes é visível todos os dias nos mais pequenos detalhes. Quando lemos uma notícia com um título em que se garante que o “PCP condena 'massacre' na fronteira de Gaza com Israel”, estamos em pleno linguajar que absolve tudo. Massacre entre aspas pretende colocar na cabeça do leitor que não houve massacre. Quer transformar um fuzilamento de manifestantes desarmados, que fez 16 mortos e mais de 1400 feridos, num simples conflito em que as duas partes estavam na mesma situação. A segunda operação, que nos permite achar normal a ocupação, prisão, tortura e morte de milhares de palestinianos ao longo dos anos, é a mesma que permitiu aos nazis massacrarem durante anos os judeus, com o silêncio cúmplice dos governos ocidentais. Baseia-se num trabalho de sapa que faz dos outros sub-humanos. Faz deles gente privada de direitos cuja vida tem um valor muito menor que o da nossa».
Nuno Ramos de Almeida, Os cães de guarda

Euro visões

Posted: 02 Apr 2018 05:36 AM PDT

Muita coisa mudou desde que a crise da zona euro eclodiu de forma aguda há quase uma década. Os mecanismos de coordenação da política orçamental dos Estados-membros (leia-se, da sua subordinação às autoridades europeias), do Tratado Orçamental ao Semestre Europeu, foram substancialmente reforçados. A disponibilidade do Banco Central Europeu (BCE) para «fazer o que for preciso» para salvar a zona euro, incluindo monetizar a dívida pública dos Estados-membros de forma mais ou menos encapotada, foi demonstrada de forma decisiva. Foram dados alguns passos, porventura incipientes, no sentido de começar a desmantelar as ligações de dependência mútua entre os Estados e os bancos nacionais. Nos últimos anos, até os países intervencionados da periferia conseguiram retomar o crescimento e a criação de emprego e, no caso português, fazê-lo a par da redução do endividamento externo. O Eurogrupo é hoje presidido por um ministro das Finanças de um país da periferia. Para os euroentusiastas mais optimistas, tudo isto quer dizer que o pior já passou e que as notícias da morte anunciada do euro foram claramente exageradas.
Em contrapartida, tem-se tornado cada vez mais evidente a tendência para a divergência entre os países do centro e da periferia. O colapso da economia grega excedeu, na sua dimensão e consequências sociais, a Grande Depressão. Os níveis do produto interno bruto (PIB) per capita de Itália e Espanha são idênticos aos de há dez anos. Portugal teve a sua própria década e meia perdida, só interrompida (e por quanto tempo?) nos anos mais recentes. O desemprego, especialmente o desemprego jovem, continua em níveis muito elevados por toda a periferia. O lastro do endividamento público e privado é hoje muito maior do que há dez anos, aumentando consequentemente a vulnerabilidade à próxima crise. A par de tudo isto, a ilusão de uma comunidade de interesses europeia caiu por terra e o autoritarismo pós-democrático do eixo Bruxelas-Frankfurt-Berlim foi demonstrado à evidência, especialmente aquando da subjugação do governo grego no Verão de 2015. A revolta dos eleitorados tem-se traduzido na ascensão de novos actores políticos, na quase aniquilação da social-democracia europeia tradicional e numa extrema-direita com aspirações reforçadas, sendo vários os países que têm estado ou estão à beira de eleger governos eurocépticos.
Que podemos esperar de tudo isto? Até que ponto é que as vulnerabilidades estruturais da arquitectura do euro foram colmatadas? Está o euro irremediavelmente condenado? Se sim, devemos celebrá-lo, independentemente de um eventual desmantelamento caótico e da eventual liderança do processo por forças políticas reaccionárias? Qual será o primado relativo da economia, do direito e da política nos desenvolvimentos que podemos esperar para os próximos tempos? E que consequências devemos retirar de tudo isto para a nossa prática política?
Texto de enquadramento do Jantar-Tertúlia do Le Monde diplomatique – edição portuguesa, cuja inscrição pode ser feita aqui. A vossa participação é também um apoio a este projecto editorial cooperativo.
Pela minha parte, procurei retomar a pergunta que fiz no número de Abril de 2015 - de que é que têm medo e de que é que temos medo? - à luz dos novos desenvolvimentos desde essa data e da necessária crítica às renovadas ilusões europeístas.

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