Na última sexta feira a Síria foi atacada por mais de cem mísseis, concentrados nas províncias de Damasco e Homs. Em artigo, a analista Rita Coitinho discute o que está por trás do novo conflito entre Donald Trump e Vladimir Putin.
- 18 Abril, 2018
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A imprensa ocidental, em sua maior parte, apenas noticiou, com evidente apoio, as ameaças estadunidenses à Síria, procurando destacar a supremacia do poder dos EUA sobre o mundo. A decisão estadunidense de mostrar força com bombas foi imediatamente seguida por Paris e Londres, provando, uma vez mais, que a força e a soberania europeias não passam de falácias diante das pressões do verdadeiro centro do poder imperial.
Na semana anterior, os presidentes do Irã, da Turquia e da Rússia encontravam-se na capital turca, Ankara, para discutir a situação Síria e buscar alternativas para por fim ao cerco terrorista que já dura sete anos. Os três mandatários expressaram, na ocasião, sua completa rejeição às tentativas de Washington de encontrar novos pretextos para apoiar e fortalecer os grupos que pregam a divisão do território sírio. Esta opção pela divisão do território, aliás, tem sido abertamente apoiada pela mídia corporativa ocidental como “única saída possível” para o conflito sírio.
O tipo de “informação” que nos fornece a mídia empresarial não nos permite enxergar nada que seja próximo da realidade dos fatos. Um termo muito utilizado por um analista de conflitos internacionais que assina como “The Saker” talvez seja o melhor para se descrever essa “fonte” de informações de que dispomos nos países do chamado “ocidente”: presstitutes – um trocadilho com as palavras press (imprensa) e prostitutes. E ele nem está falando da imprensa aqui de Pindorama, que reproduz com cortes o material ruim difundido pela mídia a soldo do império. Os recentes bombardeios dirigidos à Síria foram amplamente justificados pelas agências de presstitutes como retaliações humanitárias em razão do suposto uso de armas químicas contra a população civil síria. De acordo com a mídia empresarial, os governos de Washington, Londres e Paris estavam muito preocupados com as mortes de civis. Interessante que se preocupem com as alegadas mortes desses inocentes, mas não tenham dito nada a respeito dos palestinos baleados durante uma marcha pacífica e desarmada, há poucas semanas ou que não se preocupem com o uso de fósforo branco contra os palestinos ou ainda com o que faz a Arábia Saudita contra as populações no Iêmen. Mas vamos adiante.
A mídia empresarial alardeia um suposto ataque químico ordenado por Damasco. Um crime de guerra que merece imediata retaliação. Prepara, assim, os espíritos de seu público para as ações bélicas desencadeadas pelos EUA. O governo Sírio, desde que teve início a guerra, há sete anos, é pintado como vilão que massacra a “oposição democrática”. Nada se diz a respeito do armamento pesado a que têm acesso os grupos oposicionistas. Se se questionasse a origem dos arsenais, chegaria-se facilmente às digitais da OTAN e da CIA. De acordo com Serge Marchand, na Red Voltaire e o diário libanês Al-Watan, ambos citados em artigo de Eduardo Luque para a TopoExpress, havia cerca de duas centenas de oficiais da OTAN dirigindo as forças terroristas, alguns dos quais sob o disfarce de pertencer à ONG Médicos sem Fronteiras quando as forças Sírias desmantelaram as bases jihadistas fixadas em Goutha oriental. A comprovação desta informação não poderia espalhar-se pelo mundo e, para encobri-las, orquestrou-se a campanha mundial de difamação das forças sírias e russas, conforme temos acompanhado nas últimas semanas.
Desde a entrada do apoio russo a Damasco, a situação do governo, que esteve a ponto de perder o controle do país para os grupos terroristas, vem mudando. A partir de 2015, com o aporte russo, o governo sírio conseguiu reconquistar Alepo, que tem enorme importância econômica e geoestratégica, bem como Palmira, a simbólica cidade histórica, e ainda as zonas produtoras de gás que estavam sob o controle dos “jihadistas”.
Nos últimos tempos, dada a ofensiva sírio-russa (com o apoio do grupo libanês Hezbollah) somente o enclave da Ghouta oriental permanecia como ponto de concentração dos grupos terroristas que a partir dali bombardeiam a capital, Damasco. Dali os mísseis dos grupos terroristas caíam de forma indiscriminada na capital, inclusive sobre bairros residenciais – em 23 de fevereiro um míssil terra-terra caiu sobre o mercado Ruk el-Dinh, matando mais de 30 pessoas e ferindo outras várias. Entre fevereiro e março deste ano, as forças terroristas desencadearam mais de cem ataques diários, como forma de rebater a ação das forças armadas da Síria e seus aliados que visa “limpar” a área do domínio dos jihadistas. Essa ofensiva das forças legais da Síria tinha como objetivo, além de “limpar” a área de forças terroristas, livrando Damasco dos ataques diários, fechar a fronteira com a Jordânia.
Conforme apontamos acima, passou desapercebida à “falsimídia” (termo usado por Eduardo Luque, no artigo a que nos referimos acima), a declaração de Nikki Haley, embaixadora dos EUA na ONU, na qual exigiu do governo sírio o compromisso de não atacar a zona dominada pelas forças jihadistas em Goutha oriental. A falsimídia preferiu inundar os noticiários do mundo com preocupações “humanitárias” nas quais pretendia esconder sua posição de defesa das forças de desestabilização da Síria. Enquanto isso, as forças sírias desmantelavam uma sofisticada rede de túneis por onde podiam circular até veículos e que abasteciam as zonas controladas pelos grupos terroristas com armamento e munições e detinham dezenas de combatentes jihadistas – alguns dos quais pretendiam fugir usando vestes femininas. A derrota que a coalizão liderada pelo governo de Bashar-al-Assad impôs aos grupos terroristas desencadeou uma ampla campanha internacional de acusações contra o governo Sírio, nas quais incluem-se acusações de assassinatos de civis e uso de armas químicas, um argumento “requentado” que já foi utilizado durante a administração Obama para justificar sanções dos EUA e apoio logístico (armas) às forças de oposição.
Conforme o artigo de Eduardo Luque, as “provas” dos ataques são dois vídeos: o primeiro, mostra cerca de trinta crianças mortas, com idades entre dois e dez anos. Parecem asfixiados. Não há homens nem mulheres adultas entre os mortos. O segundo vídeo, divulgado pelos “Capacetes Brancos”, mostra uma espécie de bomba lançada de um helicóptero, que teria caído, perfurado dois pisos e ficou intacta sobre uma cama, sem se abrir. A Rússia, que tem observadores no local, bem como os médicos do Crescente Vermelho, que atuam na Síria, afirmam que não encontraram evidências do uso de gases tóxicos, tampouco cadáveres. O único fato confirmado foi o desmantelamento de três laboratórios de armas químicas que, aliás, eram controlados por jihadistas. Porém a desculpa dos gases tóxicos correu na imprensa mundial como um rastilho de pólvora. Correu antes, aliás, de que se tivesse qualquer imagem, as quais só apareceram no dia 07 de abril – provavelmente foi preciso produzi-las. Em poucos dias, formou-se a coalizão para os ataques que se sucederam neste final de semana.
Os ataques foram lançados sobre Damasco e Homs apenas poucos dias após o sucesso das operações de desmantelamento das bases jihadistas, onde revelou-se a incrível infraestrutura com que contavam os grupos terroristas – incompatível com sua pretensa posição de “resistência popular armada” como querem vender as mídias empresariais – e inúmeros agentes ligados aos países da OTAN. Está claro que o eixo Washington-Londres-Paris tem algo a esconder. Ao mesmo tempo, os bombardeios não atingiram nenhuma área significativa. Conforme relatório do ministro da defesa da Rússia (o vídeo, bem como a transcrição dos principais dados podem ser conferidos em thesaker.is), as forças de defesa aérea da Síria derrubaram 71 dos 103 mísseis lançados pelo bloco liderado pelos EUA. De acordo com o relatório,
- Quatro mísseis foram lançados na área do Aeroporto Internacional de Damasco e todos foram interceptados;
- Doze mísseis foram lançados no Aeroporto Militar de Al-Dumayr, todos interceptados;
- Dezoito mísseis foram lançados no Aeroporto Militar de Baly, todos interceptados;
- Doze misseis foram lançados sobre o Aeroporto Militar Shayarat, todos interceptados;
- Nove mísseis lançados sobre o Aeroporto Militar Mezzeh. Cinco deles foram interceptados;
- Dezesseis mísseis lançados sobre o Aeroporto Militar de Homs, tendo sido treze interceptados;
- Trinta mísseis lançados sobre alvos nas áreas de Barzah e Jaramani. Sete foram interceptados.
Ainda conforme o site thesaker.is, o Pentágono rejeita as informações e afirma que as ações dos EUA e aliados tiveram “sucesso em todos os alvos”. O Pentágono afirma que lançou 105 mísseis e que todos acertaram instalações relacionadas a armas químicas do governo de Bashar Al-Assad. Como em qualquer guerra, o controle sobre as informações é parte indissociável do conflito.
O general Sergei Rudskoy, chefe do Estado Maior Russo, declarou, a respeito dos ataques, que “as agressões americanas provam que os EUA não estão interessados em garantir a objetividade das investigações em curso, mas visam romper o processo de restabelecimento da paz na Síria e desestabilizar o desenvolvimento no Oriente Médio, e nada do que têm feito tem algo a ver com o objetivo declarado de conter o terrorismo internacional”.
Ao que tudo indica, o objetivo central dos EUA nessa aventura tresloucada – pois se a Rússia de fato responder, como anunciou que faria, pode ter início um conflito nuclear – é fazer uma demonstração de poder. Esta começa pela facilidade com que logrou o apoio de Londres e Paris, ainda que todos saibam que uma escala da situação de conflito pode colocar o mundo inteiro sob o risco de um conflito nuclear. Não é à toa, portanto, que outros membros da OTAN e aliados costumeiros de Washington não quiseram participar da aventura – como a Alemanha, a Itália, a Austrália e o Canadá.
Até o momento, apesar das enfáticas declarações de Moscou, de que responderia duramente a um ataque ao aliado Sírio, não houve nenhuma ação russa em resposta aos ataques estadunidenses. Por outro lado, a maneira como os mísseis da coalizão atingiram o território Sírio, sem causar estragos em nenhum prédio do governo ou base operacional militar, levantam suspeitas de que os EUA não têm certeza quanto ao seu real objetivo com a escalada da violência. Ao mesmo tempo, a posição do Irã, que também vem prestando apoio ao governo de Assad, pode ter tido impacto sobre alguns aliados importantes dos EUA, especialmente Israel. Corre a notícia de que Teerã teria informado Moscou que responderia duramente caso Israel também tomasse parte da “missão” de atacar a Síria.
Por que os EUA, com o poderio militar de que dispõem – o maior poder de todos, muito maior inclusive que o da Rússia, ainda que esta disponha, atualmente, de tecnologia para defender-se por algum tempo – lançariam sobre a Síria um ataque tão mal-sucedido? O que está por trás dessa ação de Washington? O que está, de fato, em jogo?
Em primeiro lugar, é evidente que a guerra na Síria está para ser vencida pelas forças governistas. Isso posto, a OTAN, maior patrocinadora dos grupos terroristas (há vídeos de helicópteros da OTAN resgatando jihadistas) surge como principal derrotada. Ao mesmo tempo, todos os três presidentes da coalizão que bombardeou a Síria na sexta-feira passada enfrentam graves crise políticas e econômicas em seus países. Têm muito o que esconder de seus eleitores, problemas de toda ordem que, agora, somam-se à derrota na Síria e às evidências da participação da OTAN do lado dos grupos terroristas. A Arábia Saudita, que apoiava abertamente os jihadistas, teme a ascensão da aliança Síria-Turquia-Irã-Rússia. Ao mesmo tempo, o recente anúncio do acordo entre Ankara, Moscou e Teerã para realização de trocas comerciais em moedas nacionais – dando adeus ao dólar – enfraquece sobremaneira tanto a posição dos EUA quanto de seus aliados na região (Arábia Saudita, Israel etc.). Isso tudo somado à decisão chinesa de comprar petróleo com “Petro-Yuans”, jogará por terra a hegemonia do dólar – e, por certo, dos EUA. Todas essas iniciativas regionais somam-se ao avanço da “Nova Rota da Seda”, projeto de integração que aproximará definitivamente toda a Ásia e a Europa, chegando ao Oriente Médio e o Norte da África. Está claro que essas iniciativas, que unem China e Rússia, abrem no mundo um novo polo de poder. Na medida em que consolida-se também a relação entre Moscou e Teerã, abre-se uma nova linha de preocupações para Israel, inimigo declarado do Irã e cujo lobby é extremamente eficaz no congresso dos EUA.
Ainda que, à primeira vista, a ação militar liderada pelos EUA tenha sido um tanto desvairada – dados os pífios resultados, do ponto de vista militar –, desenha-se para o mundo uma situação de grande perigo. Não parece possível que, dados os desafios à manutenção de seu poder, os EUA e seus aliados possam simplesmente retirar-se do cenário. Uma escalada intervencionista na região do Oriente Médio, tendo a Síria como porta de entrada, parece muito mais provável. A divisão do território Sírio serviria de base para o avanço sobre o Irã, principal objetivo de Israel e Arábia Saudita, dois fortes aliados dos EUA na região. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento da posição de Moscou é de interesse central para os EUA, bem como a criação de dificuldades para o avanço dos projetos envolvidos na Nova Rota da Seda. O caos no Oriente Médio e na Eurásia já estava nos planos de Obama, que acabou por recuar no final do seu governo em razão da disposição russa de reagir a um ataque à Síria. Trump nada mais faz do que retomar os planos, embora com sua marca registrada, que é a decisão atabalhoada e sem objetivo bem delimitado. Se a Rússia tivesse em seu governo um desqualificado do nível de Trump, como quer nos fazer crer a falsimídia, o mundo já estaria sob as grossas nuvens das explosões nucleares. Felizmente não tem. A Rússia, até o momento, mantém-se aberta a conversações com Washington e Paris. A nós, aqui na periferia do mundo, olhando a partir de um país cujo governo destrói deliberadamente sua própria posição diplomática, só nos resta torcer pelo sucesso das negociações e por um pouco de lucidez também dentre os loucos que dirigem a política externa dos EUA. Loucos por poder, que fique bem claro, pois é isso que está em jogo. Um poder ameaçado é infinitamente mais perigoso do que um poder bem consolidado.
Por Rita Coitinho, Socióloga, Doutora em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz | Texto original em português do Brasil
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