José Ribeiro e Castro: «Todas as leis devem ser bem discutidas e bem votadas. Todas as leis devem resultar, na Assembleia da República, de um processo apropriado, conforme à Constituição. E, por maioria de razão, uma lei como a votada na sexta-feira, 13 de Abril, com a sensibilidade humana da lei sobre identidade de género, deveria ter particular cuidado processual.
As normas do processo legislativo não existem por acaso. Existem para garantir o debate profundo e transparente, como é essencial à democracia representativa, e assegurar a formação da vontade livre e informada de todos os decisores (os deputados), bem como a sua manifestação igualmente livre e informada. Tenho criticado práticas negativas parlamentares em que se tem decaído. Esta lei bateu o recorde: conjugou três práticas inaceitáveis, geradoras de inconstitucionalidade formal da lei e mesmo inexistência jurídica.
O processo de elaboração das leis, depois de iniciado, tem duas fases: generalidade e especialidade. E um momento final: votação final global. É o que resulta da Constituição e não pode ser destruído, nem mascarado. A fase da generalidade aprecia as linhas gerais da proposta, a doutrina, os propósitos. Termina pela aprovação ou reprovação, na generalidade. Se foi tudo reprovado, acaba aí. Se houve textos aprovados na generalidade, passam à fase da especialidade, que os examina artigo a artigo, aceitando sugestões e procurando melhorar. A votação final global é a votação de aprovação ou reprovação do diploma, sendo frequente haver diferença entre a votação na generalidade e a final global, por causa das emendas entretanto introduzidas na especialidade. Esta sequência – pausada – é essencial à dignidade e à transparência do processo legislativo.
Desde há alguns anos, a Assembleia da República ora por normas regimentais insuficientemente claras, ora por habilidosas interpretações de conjugação de normas, adoptou um procedimento profundamente irregular que torpedeia a limpidez constitucional do processo, contra que protestei algumas vezes. Os povos do Norte chamar-lhe-iam o procedimento de almôndega; os povos do Sul, o procedimento de açorda. Em que consiste?
No final do debate na generalidade, em plenário, emerge uma combinação política para não se votarem os textos, mas um requerimento para os baixar de novo à comissão, sem votação, para reapreciação dentro de determinado prazo. É dito que o requerimento não tem importância e é meramente formal, não envolvendo a substância, o que leva a que usualmente a “formalidadezinha” seja engolida e votada por unanimidade. A seguir, os projectos são remetidos para uma saleta (subcomissão ou grupo de trabalho) para conveniente mastigação fabril. Apesar de não terem sido votados, os projectos ficam a marinar largos meses na salinha de laboração, desenvolvendo-se objectivamente o respectivo trabalho na “especialidade” como se tivessem passado na generalidade. Ao fim destes meses de laboratório, se a coisa teve sucesso, é adoptado um “texto de substituição”, que a comissão parlamentar confirma, enviando para plenário para se proceder de uma vezada, consecutivamente, às votações na generalidade, na especialidade e final global, assim ratificando, por sumaríssimas carimbadelas gerais, a engenhosa produção da fabriqueta.
por helenafmatos
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