13/5/2018, 1:28
Depois dos píncaros, caímos pelo Olimpo abaixo. A Eurovisão, versão Lisboa, pôs as coisas no devido lugar, consagrou um favorito e deixou poucas saudades.

A israelita Netta venceu com "Toy", uma das canções favoritas das casas de apostas
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Autor
Pedro Vieira
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Verdade seja dita, até 2017 ninguém poderia sequer sonhar com uma edição da Eurovisão organizada em Lisboa, com o Pavilhão Atlântico (sim, estou a evitar o product placement) a servir de palco carregado de robôs, de luzes, fogo cuspido e lantejoulas endemoninhadas. O que é facto é que a aposta arriscada de pessoas como Gonçalo Reis, Daniel Deusdado e Nuno Artur Silva, que resolveram redesenhar o evento a nível local, acabou por transformar a participação portuguesa do ano passado numa espécie de cisne negro, de evento único e improvável, com um desenlace de sonho, entre festejos do Benfica, o centenário de Fátima com direito a Papa e os irmãos Sobral a sentarem-se no iron throne de Kiev, com uma canção plena de sobriedade.
Um ano volvido, a responsabilidade e os nervos passaram dos ombros dos manos Salvador e Luísa para as costas da televisão pública, a braços com uma mega-operação logística e financeira. E se em termos de televisão pura e dura pudemos todos testemunhar o desembaraço a roçar o brilhantismo das emissões durante a semana — duas semi-finais e o desenlace dramático desta noite — no que diz respeito a finanças, muito se falou sobre os milhões de euros que a RTP teve de desembolsar para levar o azeite a bom porto. De tal forma que, muito provavelmente, o canal público terá de recuar na negociação dos direitos da Champions League e de repensar a estratégia na área da ficção de produção portuguesa. Mas nestes casos a fronteira entre despesa e investimento é muito ténue, até porque há um retorno para o país e para os cofres das finanças que é difícil de mensurar; um retorno que se adivinha muito positivo, graças ao impacto que este certame (pelava-me por usar a palavra certame numa crónica) tem no mundo inteiro. Porque organizar uma edição da Eurovisão é , no essencial, viajar à boleia de uma gigantesca campanha de publicidade em benefício do país organizador, que inevitavelmente irá potenciar receitas turísticas e impostos indirectos, visibilidade sem par e até imensas sinergias (conferir uso da palavra certame). Adiante.
Depois da conjugação quase surrealista de factores em 2017, o Futebol Clube do Porto voltou ao seu lugar natural de campeão nacional de futebol. O Papa Francisco não deu um ar da sua graça, sendo substituído pelo Fernando “Macaco” Madureira nas reportagens sobre peregrinos a caminho de Fátima. E a canção portuguesa despistou-se no palco, nos mentideros dos júris e no televoto. Tudo normal, portanto. Repare, caro leitor. Eu sinto um certo conforto neste regresso à normalidade, porque às vezes a mudança é uma estafa física e sobretudo emocional. Não era possível continuarmos a amar pelos dois. Ou por outros quaisquer. Razão pela qual o nosso “Jardim” se eclipsou entre coreografias arrojadas, pirotecnia e vozes sem tino, sem que ninguém desse pela sua falta. Resultado: 39 pontos e último lugar na classificação. Até o Rui Bandeira fez melhor em 1999, numa final curiosamente organizada por Israel. Depois de subirmos aos píncaros, esta lanterna vermelha dói um pouco, até porque recebemos toda a gente com simpatia e denodo, mas pronto, faz parte do jogo. E do ADN português na Eurovisão.
Quanto ao concurso, o kitsch voltou a ser rei e senhor, mais piromania, menos piromania, com a diferença de que desta vez a estratégia low-finão resultou. Desculpa, Salvador, mas por vezes a música é mesmo só fogo-de- artifício. E a vitória da israelita Netta é disso exemplo. Pelo meio também houve uma comandita de vikings pela paz, um Nosferatu ucraniano (que infelizmente abandonou o registo mudo), uma espécie de hip-hop checo capaz de arrepiar o cabelo impecável de Milan Kundera, uma actuação burlesca e Eurovisão-vintage pelos moldavos, um norueguês apaixonado pelo air violin e pela air guitar, e até uma invasão inédita de palco, que ia arruinando o desempenho e a reputação do Reino Unido. Uma espécie de Brexit, digamos, mas sem Nigel Farage, o que até abona a favor da invasão. No final, venceu “Toy”, uma das canções favoritas das casas de apostas, e oriunda de um país com muitos pergaminhos no festival. Afinal, esta foi a quarta vez que Israel venceu, depois da dobradinha 78/79 e do sucesso mais ou menos inesperado de Dana International há 20 anos.
Uma coisa é certa: Salvador pôde contar com um ocaso eurovisivo de gabarito, graças ao dueto com Caetano Veloso, e o investimento dos famosos milhões mostrou-se plenamente justificado quando pusemos os olhos na voz de Mayra Andrade. É muito provável que esse tenha sido o melhor momento musical da noite, embora a Eurovisão tenha pouco a ver com isso. Em 2019, a caravana de fãs, lantejoulas e canções no limite do audível segue rumo ao Negev. Por cá fica o deserto de pontos e a saudade boa de uma aposta certa. Olha, como se diz na terra dos manos Sobral, estamos todos de parabéns.
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