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quinta-feira, 31 de maio de 2018

Eutanásia e guerrilha partidária

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 30/05/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Fui um dos subscritores iniciais do Manifesto em Defesa da Despenalização da Morte Assistida que deu origem aos projetos que esta terça-feira foram chumbados. Não considero que se esteja perante um tema “fraturante” ou de “costumes”. Não aceito discutir este tipo de assuntos com base na “prioridade” que cada um deles tenha. Considero que a legislação sobre este tema tem de ser, pelos riscos que comporta, especialmente cuidadosa e acho que os projetos apresentados garantiam plenamente essa cautela. Penso que este é o tipo de temas que deve ser resolvido com um debate na sociedade e penso que isso aconteceu nos últimos anos. O debate não se pode eternizar nem servir como uma espécie de veto de gaveta de qualquer alteração legislativa. O chumbo de ontem, com margem de diferença, é apenas um compasso de espera. Depois deste debate e votação, não tenho dúvida que é uma questão de tempo. De pouco tempo.

Em política, há a substância das causas e o uso que deles fazem os atores políticos. E os cálculos políticos contaram muito para o resultado de ontem. À esquerda, como se viu pela relevância que António Costa e outros intervenientes no congresso do PS deram ao assunto, serviu para disfarçar a inexistência de um discurso que vá para além do autoelogio com os resultados económicos. Esgotadas as reversões de medidas do Governo anterior e sem maioria, o PS não tem neste momento uma agenda clara. José Sócrates usou os temas não económicos com especial mestria, conseguindo convencer muitos incautos de que isso o fazia um líder mais à esquerda do que os seus antecessores. Há alguma tentação para se fazer o mesmo agora. Já o PCP jogou numa dupla: o PEV, que como todos sabem não tem autonomia política, apresentou um projeto, os comunistas votaram contra. Assim ficou com os dois flancos protegidos.

A defesa da eutanásia não substitui a clareza do discurso social e económico no PS e não retira legitimidade política à liderança de Rui Rio. A oposição à eutanásia não tira ao PCP os seus pergaminhos de esquerda, não faz ressuscitar Cavaco Silva e Passos Coelho e não dá ao CDS qualquer liderança da direita

Mas foi à direita que o tema acabou por ser mais instrumentalizado para guerras partidárias que nada têm a ver o assunto. Aníbal Cavaco Silva aproveitou este momento para morder as canelas de Rui Rio e dar sinal de vida. Fê-lo com a megalomania que tão bem lhe conhecemos, pensando que o país e a direita paravam para saber em que partido ele ia votar nas próximas eleições. Alguém o avise que o candidato presidencial da direita venceu as eleições sem precisar do seu apoio. Também Marcelo aproveitou para fazer chegar à comunicação uma espécie de veto prévio, o que corresponde a uma intromissão no processo legislativo que ultrapassa os seus poderes. E o CDS tentou afirmar a liderança da direita e a recuperação de um eleitorado mais conservador através deste tema.

Mas o que realmente foi determinante para o resultado foram as guerras internas do PSD e o objetivo de muitos deputados apearem Rui Rio antes que ele faça novas listas. Um assunto tão sensível foi transformado numa medição de forças interna. De tal forma que vários deputados calcularam o seu voto num projeto e não noutro (eram quase iguais) para garantir que nenhum passava e que Rui Rio saía dali com uma derrota.

Ao contrário do que acontece com outros assuntos de “costumes”, este não se liga ao feminismo ou aos direitos de minorias. Nem sequer se relaciona com a tolerância perante a diferença. É possível ser conservador e a favor da despenalização da morte assistida. Basta recusar a ideia de que temos o dever de ficar prisioneiros no nosso próprio corpo. É possível ser liberal e contra. Basta não aceitar o envolvimento do Estado e dos médicos no fim da vida. É possível ser de direita e a favor. Vem de Paulo Teixeira Pinto uma das melhores frases em defesa da eutanásia: “Extinguimos a pena de morte, mas mantemos a pena de vida”. E como se viu pela posição do PCP, é possível ser de esquerda e contra.

Nada impedia que os partidos políticos tomassem posição sobre o assunto e, se assim o decidissem, decidirem-se pela disciplina de voto. Se estávamos a falar de uma mudança na lei o assunto era inevitavelmente político. Também não vejo porque têm estes temas de ser decididos em referendo quando aquilo que mais deveria ser referendado – as transferências de soberania do Estado nacional para outras instâncias – nunca o é. Mas assumir que o tema é político e que os partidos têm o dever de o debater não autoriza o aproveitamento partidário a que assistimos.

A defesa da eutanásia não substitui a clareza do discurso social e económico no PS, não faz do PEV um partido autónomo do PCP e não retira legitimidade política à liderança de Rui Rio, mesmo que os seus opositores no Parlamento tenham visto aqui mais uma oportunidade para o desautorizar. A oposição à eutanásia não tira ao PCP os seus pergaminhos de esquerda, não faz ressuscitar Cavaco Silva e Passos Coelho e não dá ao CDS qualquer liderança da direita.

E a aprovação da eutanásia não daria ao Presidente o poder de anunciar oficiosamente vetos a leis que ainda não foram votadas. Apesar da sua relevância social, as implicações políticas deste tema são mínimas. Ficou mal na fotografia quem o usou para pequenas guerrilhas partidárias.

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