A vida, e a dignidade, dos outros (II)
Posted: 25 May 2018 05:44 PM PDT
«Defendo a dignidade da vida como bem essencial e não tenho sobre os meus concidadãos a arrogância de achar que sei mais sobre a dignidade da sua vida do que os próprios sabem sobre o que de mais precioso têm. O direito à vida não passa, para mim, pela imposição autoritária e sem critério de uma obrigação de viver em qualquer circunstância. Não me vejo, por ser deputado, como dono da consciência dos outros. (...) O que se pretende despenalizar é a morte assistida sempre que haja a combinação de quatro coisas: um diagnóstico de doença incurável e fatal ou lesão definitiva; um prognóstico de que essa doença é incurável e fatal; um estado clínico de sofrimento duradouro e insuportável; um estado de consciência que demonstre a plena lucidez e capacidade da pessoa entender o alcance do pedido. É sobre isto, e apenas sobre isto, que serei, como os outros deputados, chamado a votar.»
José Soeiro, A minha morte e a dos outros
«O que acontece quando alguém tem a consciência clara de que a perda de autoestima, de dignidade e de independência, assim como o sofrimento físico e psicológico que o esperam, se irão acentuar nas semanas, meses ou até anos de vida de que possa vir ainda a usufruir? (...) Se, para uns, a resposta óbvia são os cuidados paliativos, para outros, o desejo e a possibilidade de pôr fim rapidamente a esse sofrimento são também muito claros. (...) E é perfeitamente concebível que para muitos (em que eu me incluo) não é só a dor física que é intolerável. É também a ideia de que a quantidade de vida adicional não compensa a qualidade de vida perdida. E suspeito que quanto mais rica tiver sido essa qualidade de vida de alguém, menos disposta estará a valorizar semanas ou meses de vida adicionais.»
Alexandre Quintanilha, Porque a quantidade de vida adicional não compensa a qualidade de vida perdida
«Estou à espera do momento em que os partidos que defendem a "inviolabilidade absoluta da vida humana" sejam consequentes e se cheguem à frente para acabar com o consentimento informado. Pelos seus pressupostos filosóficos e éticos, um paciente não tem o direito de optar pela suspensão de um tratamento que o salva mas que lhe retira a qualidade de vida que ele considera nível mínimo para valer a pena viver e um médico que respeite a sua vontade estará, portando, a incorrer em má praxis. (...) Suspender tratamentos sem os quais alguém morrerá é também eutanásia e é legal. No caso acima é eutanásia passiva voluntária mas não é a única legal, há milhares de casos de eutanásia passiva involuntária que são sinal de boa prática clínica, o encarniçamento terapêutico [*] é falha deontológica grave.»
Maria João Pires (facebook)
Posted: 25 May 2018 03:37 AM PDT
Anteontem, o primeiro-ministro foi acossado no Parlamento (minuto 22) com perguntas sobre a actividade do seu ministro adjunto Pedro Siza Vieira.
As questões ficaram-se pela ética. Ou seja, sobre a sua exclusividade obrigatória enquanto membro do governo, quando também era gerente de uma sociedade, criada dois dias antes de entrar para o Governo; ou sobre o facto de o ministro ter reunido com a sociedade China Three Gorges que tem como advogados a sociedade de advogados Linklakers de onde veio o ministro adjunto.
Tudo pareceu uma tempestade num copo de água por parte do PSD. Mas talvez fosse necessário ir mais fundo sobre a sua actividade junto do primeiro-ministro.
Pedro Siza Vieira não é um advogado qualquer. Veja-se com atenção o seu curriculum oficiale aquele que aparece na Wikipedia, ao que parece baseado num artigo do Expresso.
Já na passada sexta-feira, o advogado esteve no centro de um artigo do Público onde se suscitava uma questão grave: a de o Governo ter decidido alterar uma lei para facilitar uma operação da qual beneficiariam os sócios chineses da EDP, a China Three Gorges. Ou seja, ao contrário do que seria suposto, secundarizava-se o princípio geral que uma lei deve ter, para atender a um caso concreto. E estranhamente o PSD não levantou essa questão...
Depois, o gabinete de Siza Vieira assumiu a sua paternidade na criação das SIMFE, sociedades de investimento mobiliário para fomento da economia: "O Sr. Ministro-Adjunto era vogal da EMCM, estrutura essa que propôs, nomeadamente, a constituição das SIMFE e dos certificados de curto prazo". Ora, as SIMFE - a julgar pelo preâmbulo da lei - são uma forma de financiar as pequenas e médias empresas que não conseguem financiamento no desconfiado mercado bancário. Ou seja, um mercado de segunda que o sistema financeiro desdenhou e com menores exigências.
E foi também por isso que a Associação de Fundos de Investimento, Pensões e Património (APFIPP) decidiu atribuir, há dias, precisamente a Pedro Siza Vieira, o prémio de figura do ano. Porquê?
“Pelo trabalho ímpar que desenvolveu na Estrutura de Missão para a Capitalização das Empresas e na implementação do Programa Capitalizar, procurando criar o enquadramento jurídico necessário para que a indústria de Gestão de Activos e de Fundos de Pensões desempenhe um papel mais significativo no financiamento da chamada economia real por parte dos investidores institucionais”. Ou ainda: "É para nós evidente a importância que teve o trabalho desenvolvido pela Estrutura de Missão para a Capitalização das Empresas, ao tentar abrir caminho para o renascimento de um mercado de Capitais em Portugal", justificou Veiga Sarmento, presidente da APFIPP.
Mas como funcionará esse mercado de segunda? E porquê tanto apoio dos fundos de investimento? E por que será que o PSD nada diz sobre isso também?
A SIMFE tem uns accionistas (ou subscritores de acções da SIMFE) que investem na SIMFE. E a SIMFE investe em acções de empresas e subscreve obrigações dessas pequenas empresas. A SIMFE é uma sociedade anónima, de responsabilidade limitada e que tem de ter um capital mínimo de apenas 125 mil euros. Portanto, precisa de mais capitais para cumprir a sua função. O diploma não é explícito, mas a SIMFE ou vende acções suas ou deve unir os títulos das empresas, em fundos de investimento e vende as suas unidades de participação a outros investidores - não se sabe como, por quem, em que balcões. E as receitas da SIMFE devem resultar de toda esta actividade de intermediação.
É esse o entendimento da CMVM, como disse ao LADRÕES: "Importa sublinhar que a SIMFE corresponde a um organismo de investimento coletivo, pelo que os acionistas da SIMFE (ou seja, os investidores) não detêm diretamente as ações ou obrigações das empresas elegíveis, mas apenas as ações da própria SIMFE, cuja administração investirá então nesses ativos elegíveis."
A ideia das SIMFEs até parece aliciante: Há empresas que precisam de capital e arranja-se "capitalistas" para as apoiar.
Mas passado um ano, segundo a CMVM disse ao LADRÕES, "até ao momento, apenas uma entidade solicitou esse registo, tendo o mesmo sido efetuado pela CMVM no início de 2018". Foi esta. E foi assessorada pela sociedade de advogados Sérvulo Correia & Associados, tendo já um corpo de pessoal já conhecido. Entre os quais, o economista Ricardo Arroja.
A Sérvulo Correia & Associados é uma sociedade de advogados que tem tido um papel relevante naquilo que se chama o outsourcing legislativo por parte do Estado. Ou seja, o Estado encomenda à sociedade de advogados aquilo que supostamente deveria ser a sua função fazer, de forma a melhor defender os seus interesses. O argumento que a Sérvulo Correia & Associados usa para justificar esse outsourcing é perverso: diz-se que é um risco o Estado recorrer à sua "prata da casa" quando se trata de assuntos complexos para os quais não têm know-how. Na verdade, trata-se do risco inverso: não tendo conhecimento e colocando-se nas mãos "externas" é a melhor forma de acentuar a dependência, ao mesmo tempo que se concede de bandeja a possibilidade de criação de "alçapões" legais invisíveis, que apenas o seu criador conhece e pode vender a clientes seus, como soluções suas. E essa dependência pode assumir diversas formas. Veja-se aqui o que aconteceu com a aquisição de equipamento militar.
Ora, com as SIMFE resta saber o que se passou. Qual a vantagem efectiva das SIMFE? Qual a vantagem para a Sérvulo Correia & Associados se apressar a assessorar a única SIMFE, quando mais ninguém o fez? Quererá isso dizer que foi a Sérvulo Correia que elaborou o diploma que as criou? E se assim foi, porque se recorreu à Sérvulo? E quando custou? E quem o encomendou? Como disse a CMVM ao LADRÕES, o regulador pouco interveio: "O regime jurídico das SIMFE resultou de um projeto de iniciativa governamental. A CMVM comentou o projeto de regime jurídico das SIMFE numa fase já adiantada do processo. Na sequência dos comentários da CMVM ao projeto de regime jurídico das SIMFE foram feitos alguns aperfeiçoamentos no referido projeto".
Mas, mais que tudo, por que razão foi feita desta forma? O diploma gera variadas dúvidas:
1) Quem garante a qualidade dos títulos revendidos das empresas?
Supostamente cabe à SIMFE avaliar as "empresas elegíveis", mas é a própria SIMFE que tem interesse em vender as unidades de participação dos fundos compostos por esses títulos das empresas. A CMVM descarta qualquer responsabilidade: "O início da atividade das SIMFE não está sujeito a autorização da CMVM, mas a mero registo prévio. (...) A competência da CMVM é, portanto, de verificação da elegibilidade dos ativos, de cumprimento da política de investimento definida e da atuação no interesse dos investidores, competindo à SIMFE a busca de qualidade e de valor, através de uma ponderada seleção de ativos e da gestão profissional dos mesmos". Ou seja, quem garante realmente que não se esteja a vender gato por lebre? Não poderá tudo redundar num subprime?
2) Quem avalia as SIMFE?
A CMVM apenas pode recusar o registo da SIMFE se não tiver "todos os documentos e elementos necessários" e não estejam cumpridos os requisitos relativos à idoneidade dos membros dos órgãos da administração e fiscalização da SIMFE. Mas a lei apenas fixa que "os membros do órgão de administração e de fiscalização da SIMFE devem reunir condições que garantam a sua gestão sã e prudente, devendo cumprir requisitos de idoneidade, qualificação e experiência profissional e disponibilidade comprovadas". Ou seja, devem, mas não são obrigados a isso. E os fundamentos para o cancelamento da SIMFE são extremamente difíceis de concretizar.
3) Quem garante os fundos investidos nas SIMFE ou nos produtos das SIMFE?
A CMVM não é muito clara: "A escolha das empresas elegíveis objeto de investimento concreto por cada SIMFE em cada momento é da exclusiva competência da administração da SIMFE, sendo que tal escolha deverá ser efetuada em termos profissionais e no exclusivo interesse dos acionistas". O diploma estabelece que as SIMFE têm de durar pelo menos 10 anos, mas ao mesmo tempo afirma-se que a autorização da SIMFE se extingue com o fim da SIMFE...
E o que acontece se tudo correr mal? Os investidores perdem dinheiro nas unidades de participação, mas o que acontece à SIMFE?
A dúvida que se deve colocar é por que se meteu o governo apressadamente nesta legislação, pelos vistos com a colaboração de Pedro Siza Vieira.
Tal como está acontecer com as sociedades REIT (Real Estate Investment Trusts). Ainda estão em apreciação pelo Governo, mas, a julgar pela imprensa, espera-se que tenha um regime semelhante às SIMFE, mas desta vez para o investimento imobiliário. E com boa imprensa e artigos que saem antes mesmo da sua aprovação legal, mostrando como têm sido um sucesso em Espanha (ou mais aqui) e até incluindo a CMVM na campanha (e mais aqui), tudo parecendo estar-se a pressionar o Governo.
Só que, aqui, as REIT já parecem estar mais próximas da actividade da empresa criada por Siza Vieira, antes de entrar no governo. O futuro dirá sobre o que vai acontecer.
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