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sexta-feira, 4 de maio de 2018

No princípio era o Estado de Direito

A Lei era geral e abstracta e a sua aplicação era feita sem discriminar as convicções políticas, religiosas ou outras dos arguidos. A separação de Poderes garantia a independência de cada um e de todos eles face aos restantes.

Depois veio a ideia de criar uma nova tipologia de crime: o enriquecimento ilícito. Ao arrepio de séculos de Doutrina e de Jurisprudência, do desenvolvimento civilizacional no sentido do Humanismo e da protecção dos Cidadãos face ao Estado, esta legislação, mais não faz que compilar uma série de crimes pré-existentes num único crime onde quem acusa está dispensado de provar a acusação e é ao acusado que cabe provar a sua inocência.

Tal legislação seria, a ser aprovada, obviamente inconstitucional e anti-democrática. Revela tiques autoritários e traduz, na prática, uma trincheira de resistência do “dinheiro velho” contra o “dinheiro novo”. Viola princípios gerais de Direito, comuns em todas as democracias, e desrespeita a condição do indivíduo face ao Estado. Por isso não é democrática nem protege aqueles que, nesta relação, são a parte mais fraca. Como é óbvio não foi aprovada.

A esta Lei as forças do autoritarismo e do passado querem ainda acrescentar a delação premiada, permitindo a qualquer criminoso sem carácter sair em Liberdade através da denúncia, real ou fictícia, de alguém que, por toda a natureza de razões, o acusador queira caçar. Não necessariamente pelas melhores razões porque os acusadores são apenas humanos e como tal sujeitos a todas as tentações dessa condição que comungam com os restantes membros da espécie.

Com a ascensão do neoliberalismo, no domínio económico, assistimos a um retrocesso civilizacional que, em algumas áreas, é de séculos. O Direito não é excepção e a vocação totalitária está interessada em reforçar os poderes do Estado e, concomitantemente, reduzir as garantias dos cidadãos.

A doutrina da separação de poderes tende a ser atropelada pela vontade dos agentes do poder não eleito, não escrutinado, invadir a esfera do poder legislativo. Para tanto vai criando excepções, casos especiais, a difícil complexidade de investigação de alguns. Por falta de substância cria megaprocessos, impossíveis de julgar por quem tem essa missão e reduzindo as possibilidades da defesa.

Esta deriva antidemocrática aprendeu entretanto a usar as mudanças sociológicas e económicas a favor das suas pretensões. Quanto mais enfraquecido for o poder político mais fácil se torna para os agentes da Justiça invadir a sua esfera. A ideia peregrina de que “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça” apenas favorece a invasão do espaço da primeira pela segunda. Aquela que ninguém elege ou escrutina, recorde-se.

Para tanto a direita aprendeu a servir-se, e usa-os, dos órgãos de comunicação social. As mudanças operadas na dimensão das empresas que os detêm, o desemprego, o medo e a concorrência facilitam a tarefa. A progressiva estupidificação das audiências e o combate feroz pela sua fatia leva a cedências cada vez maiores, a vender “sangue” e “intriga” onde antes havia informação e escrutínio dos diversos poderes. Sem os jornalistas esta tarefa não seria realizável.

O governo “de facto” dos Juízes… Judicialistas

É este o ponto da situação actual. Do Ministério Público sai uma “dica” para um jornalista amigo. Chama-se “plantar” uma notícia mas o jornalista chama-lhe “investigação” e publica. Os restantes órgãos de comunicação social, maxime as televisões, pegam nessa “pseudo-fuga”, que é na realidade uma notícia plantada, e citando-se entre si, vão criando o clima propício a uma condenação pela opinião pública.

Torna-se necessário ao acusado, leia-se à vítima, defender-se. E aí está a inversão do ónus da prova. Cabe agora ao acusado provar a sua inocência. Pelo caminho subverteram-se o espírito e a letra da Constituição e vários séculos de Civilização, Doutrina e Jurisprudência jurídicas e judiciais.

A Lei do Enriquecimento ilícito passa a vigorar de facto sem ter sido sufragada no Parlamento por representantes legítimos, eleitos, dos cidadãos. O fenómeno é ampliado pelos dividendos que o MP retira para efeito de dilatação dos seus prazos. Quanto mais tempo os acusados estiverem a ser cozinhados em lume brando tanto melhor. Para todos os efeitos já estão a cumprir pena. A sua condenação é irrevogável e perpétua porque mesmo que venham a ser absolvidos tal facto nunca será tão divulgado com a mesma projecção, nem apagará os anos sob os holofotes da culpa.

O conúbio entre jornalistas e o Poder Judicial ameaça a Democracia

Este verdadeiro golpe palaciano, esta machadada na cidadania e no Estado de Direito só é possível com o silêncio ruidoso e cúmplice dos outros poderes. É inadmissível a Assembleia da República permitir esta usurpação de poderes, é inadmissível que o Presidente da República e os Partidos nada tenham a dizer sobre este processo de obter condenações.

O secretário-geral do PS, o autor da célebre frase, inconcebível num jurista, referida acima, navega no pântano da confusão que estabelece entre substância e forma e será, se tudo correr normalmente, vítima do seu sentido de oportunidade mais adiante. É falta de visão política não se dar conta que este é um ataque político ao seu partido e que só poderia ter uma resposta política: a defesa intransigente dos valores da Democracia, da Liberdade e do Estado de Direito. Costa preferiu optar pelo poder a qualquer custo.

Já os restantes partidos da actual maioria parlamentar colaboram nesta farsa procurando daí retirar dividendos eleitorais. Não se dão conta de que, uma vez arguidos, os cidadãos em causa têm direito ao silêncio e de que não podem responder a comissões parlamentares porque tudo o que vierem a dizer na esfera pública, antes de saberem de que são acusados, pode e virá a ser usado contra eles no processo judicial. No limite são obrigados pela pressão da opinião pública a auto incriminar-se, privando-os assim de um Direito Fundamental.

Triste momento este que a nossa Democracia atravessa.

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