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domingo, 13 de maio de 2018

O general que quis demitir Salazar

13 Maio 2018

Rui Ramos

Há 60 anos, Humberto Delgado avançou contra Salazar. A sua campanha não foi o resultado da percepção do poder da oposição, mas sim a sensação de desagregação interna do regime. Ensaio de Rui Ramos.

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Foi há 60 anos, a 10 de Maio de 1958, que o general Humberto Delgado explicou no café Chave de Ouro, no Rossio, em Lisboa, o que faria a Salazar, caso fosse eleito presidente da república nas eleições de 8 de Junho: “Obviamente, demito-o”. Aqueles que viveram a campanha de Delgado em 1958 citam-na muito como o despertar ou a confirmação do seu anti-salazarismo. Por isso, a história tem sido geralmente interpretada do ponto de vista do confronto entre o Estado Novo e a oposição de esquerda. O próprio Delgado é geralmente apresentado como se, em 1958, tivesse nascido outra vez, e fosse irrelevante tudo o que fora antes, como protegido de Salazar. Nada disto faz muito sentido. A dinâmica política nestes anos não passava pelo confronto entre o regime e a oposição, que se encontrava na situação de maior irrelevância desde 1945, mas pela disputa do poder no topo do Estado Novo. Quanto a Delgado, a verdade é que não mudou a sua maneira de ser e de pensar em 1958. Como, aliás, fez questão de esclarecer a um dos oposicionistas que conheceu então: “Sou e era pessoa e não fantoche, já antes da candidatura”. Essa seria, aliás, a fonte de muitos dos seus problemas. Como é que o capítulo mais exaltante do “anti-fascismo” em Portugal foi protagonizado por alguém que era — a acreditar no que o PCP ainda dizia nesse mês de Maio de 1958 — um “fascista americanizado”?

A guerra civil do salazarismo

A irreverência que o mais jovem general das forças armadas portuguesas exibiu no café Chave de Ouro em 1958, aos 51 anos, era antiga, e nunca prejudicara a sua carreira fulgurante dentro do Estado Novo. Em 1944, tinha sido condenado a 15 dias de prisão por motim, e quase ao mesmo tempo nomeado director-geral do Secretariado da Aeronáutica Civil. Mesmo na década de 1950, o regime ainda não estava limpo da iconoclastia que o caracterizara nos seus inícios, quando pretendera romper com décadas de piedades liberais e democráticas. Os dois principais salazaristas em 1958, Marcelo Caetano, o ministro da presidência, e o coronel Fernando Santos Costa, o ministro da defesa, permitiam-se muitas franquezas com Salazar, que as tolerava. Em Abril de 1958, antes de Delgado iniciar a campanha, foi Santos Costa quem ameaçou Salazar de que “ou isto muda”, ou “tudo se perderá”, porque “o descontentamento no país é enorme”.

O descontentamento era, em primeiro lugar, “enorme” entre os próprios salazaristas. As razões para isso eram várias. Embora Salazar passasse por “doutrinário”, nunca tinha sido claro o que o regime era, para além de uma ditadura onde os partidos políticos estavam proibidos e a imprensa era censurada. Ora, nos anos 50, o país e o mundo mudavam. Já se percebera que Portugal não ia continuar a ser a sociedade ainda rural dos anos 30. Na Europa ocidental, só Portugal e Espanha eram ditaduras à maneira de 1940. Como evoluiria o regime? Para uma monarquia nacional-católica, como o Estado espanhol de Franco? Ou para uma democracia ocidental, igual à dos outros Estados da NATO, a que Portugal pertencia desde 1949?

Delgado disse a Marcello Caetano que Salazar estava “fora de moda”

Tudo isso parecia depender, já não de Salazar, que em 1958 faria 69 anos, mas de quem fosse o seu delfim. Por isso, as rivalidades e as suspeitas que havia muito separavam os salazaristas tornaram-se mas intensas. Marcello Caetano, à frente da administração civil, parecia seduzido pela ideia de dar uma base popular ao regime, através de uma política desenvolvimentista e de previdência social, o que aliás o fazia ressentir uma política financeira que lhe parecia excessivamente restritiva; mas Santos Costa, à frente das forças armadas, não acreditava que o Estado Novo pudesse ser senão aquilo que, no fundo, sempre fora, uma ditadura sustentada pelo exército. Salazar, anos antes, avisara os seus correligionários sobre o perigo de se dividirem. Mas de facto, nunca se importou de suscitar uma certa divisão e tensão, que o fazia emergir como o árbitro do regime. Era, por isso, o primeiro a fazer constar a sua disponibilidade para voltar a Santa Comba Dão, o que ele sabia enervar sempre muito os seus ministros.

Ninguém levava muito a sério o suposto cansaço de Salazar e as suas saudades do campo. Mas a possibilidade de Salazar sair existia. Bastava o presidente da república querer. Segundo a constituição de 1933, o presidente podia demitir o presidente do conselho de ministros, que dependia inteiramente da sua confiança. Ora, em meados dos anos 50, o presidente, o general Craveiro Lopes, incompatibilizara-se com o ministro da Defesa, e tornara-se o muro das lamentações de todos os oficiais melindrados com Santos Costa, patrão das forças armadas desde os anos 30. Como seria de esperar, Craveiro Lopes aproximou-se de Marcello Caetano. No Verão de 1957, aproveitando uma indiscrição de Craveiro, Santos Costa alarmou o salazarismo com a ideia de que o presidente se inclinava para substituir Salazar por Marcello Caetano. O objectivo do ministro da defesa era, obviamente, comprometer a reeleição de Craveiro, seu rival militar. Salazar hesitou ou fingiu hesitar, mas acabou por optar pela não-reeleição de Craveiro Lopes em 1958. O presidente, que esperava ser tratado como o seu antecessor, o general Carmona, sucessivamente reeleito até morrer, sentiu-se traído. Ele e Caetano viram na não-reeleição mais uma manobra de Santos Costa. Todos começaram a contar espingardas. Nas suas memórias, Marcello Caetano descreve aliás um incidente que dá ideia do ar do tempo. Em determinada altura, foi chamado pelo presidente da república, para tratar de um assunto, e a seguir teve uma reunião com Salazar. Quando, ao chegar à residência do chefe do governo, lhe disse que vinha de falar com Craveiro Lopes, viu ou julgou ver uma grande perturbação na cara de Salazar. Caetano convenceu-se de que, por uns instantes, Salazar receou que lhe viesse anunciar que o presidente da república o demitira para o substituir por ele próprio, Caetano.

Em 1958, nos comícios da sua campanha, Delgado invocou a democracia como antítese da oligarquia e da plutocracia de que acusou Salazar. Mas o seu argumento mais forte não era esse. Era um argumento corporativo.

Foi este ambiente que levou Humberto Delgado, recém-chegado da América, a arriscar a campanha de 1958. Os salazaristas conspiravam e intrigavam, mas nos gabinetes e nos corredores, mesmo quando já o faziam nos quartéis. Delgado, que logo disse a Marcello Caetano que Salazar estava “fora de moda”, resolveu trazer a questão para a rua, candidatando-se às eleições presidenciais como “independente”. Quando, a 10 de Maio, pronunciou o seu “obviamente, demito-o”, estava a assumir publicamente a intenção que as murmurações do regime atribuíam ao despeitado Craveiro Lopes. Talvez só faltasse um empurrão. Delgado convenceu-se de que a sua campanha podia ser esse empurrão. Ia agravar as discussões, aumentar as fissuras no edifício. A sua iniciativa não foi, portanto, o resultado da percepção do poder da oposição, mas sim a sensação de desagregação interna do regime.

O “tenente de Maio”

Há o hábito de reduzir Humberto Delgado à sua psicologia, como se tivesse sido apenas alguém em quem a coragem era o reverso positivo de uma certa falta de bom senso. Mário Soares definiu-o como “um homem que não sabia evitar situações de melindre”. Em 1953, Santos Costa aconselhou-o a que se deixasse de “atitudes de rapaz”, e arranjasse mais “senso e equilíbrio”. O próprio Delgado referia-se a si próprio como um “general que sabia ser tenente”.

De facto, Delgado correspondia a uma das figuras mais típicas da vida portuguesa desde o século XIX: o oficial literato e desinibido, militarista e repontão. Nas Memórias, revela a sua admiração pelos mais célebres exemplos desse género: Mouzinho de Albuquerque, o governador de Moçambique, e sobretudo Francisco Homem Cristo, de quem Delgado, em determinada altura, se sentiu o sucessor. Deu-se ainda com outra figura parecida, o capitão Henrique Galvão. Foi dessa tradição que Delgado derivou o estilo truculento do seu livro A Pulhice do Homo Sapiens (1933), e a também o seu culto do modelo cívico anglo-saxónico, assente na responsabilidade individual e no sentido prático, sem preconceitos, por contraste com os barroquismos ideológicos do jacobinismo e o reaccionarismo de importação francesa. Tinha sido esse o espírito de muitos dos jovens tenentes e capitães que haviam dinamizado o movimento militar de 28 de Maio de 1926, como Delgado. No Estado Novo, os “tenentes de Maio”, o equivalente dos “capitães de Abril” da democracia de 1974, reservaram-se sempre o direito de protestar. No regime, havia espaço para isso. Mais: o salazarismo, no seu auge, vivera dessa energia, da truculência de gente como Delgado ou Galvão. Tinham sido eles quem, em Fevereiro de 1927, defendera a Ditadura Militar perante a sublevação dos republicanos. Tinham sido eles quem, dentro da Ditadura Militar, sustentara Salazar, a quem – curiosamente — reconheceram um espírito parecido, igualmente desempoeirado e frontal. E foram eles que, à medida que o tempo passou, se desiludiram com a rotina e a indefinição de um regime que lhes pareceu, finalmente, um simples exercício de tirania pessoal. A pouco e pouco, passaram à oposição: David Neto, Mário Pessoa, depois Galvão, e finalmente Delgado.

Em 1958, nos comícios da sua campanha, Delgado invocou a democracia como antítese da oligarquia e da plutocracia de que acusou Salazar. Mas o seu argumento mais forte não era esse. Era um argumento corporativo. Delgado, filho de um militar, tinha sido formado num exército que, nos anos a seguir à I Guerra Mundial, fora o maior e mais importante em Portugal desde as invasões franceses. O corpo de oficiais cultivou então o brio profissional e o patriotismo, traduzidos no nojo aos “políticos”. O exército era a “nação em armas”. Era, por isso, mais representativo do que políticos eleitos através de fraudes eleitorais. O que Delgado propôs aos outros generais, em 1958, foi que assumissem esse mandato. Em 1926, tinham-se revoltado contra a incompetência e o facciosismo dos republicanos. Em 1958, deviam, pelas mesmas razões, fazer outro “28 de Maio” contra aqueles que, em 32 anos, haviam aproveitado a revolução de 1926 para instalar um sistema “totalitário”. Por isso, na sua proclamação eleitoral, invocou o “espírito do 28 de Maio”, na qualidade de “um dos patriotas que intervieram” na revolta.

O exemplo de De Gaulle era inspirador para Delgado

O contexto internacional era inspirador. Em França, a 15 de Maio de 1958, o general De Gaulle ofereceu-se para assumir os plenos poderes na IV República, apoiado pelo exército da Argélia. O fracasso dos políticos franceses entregou o poder a um chefe militar. Portugal parecia num impasse semelhante. A proposta de Delgado, porém, não era entregar o governo às forças armadas, mas precisamente impedir que as forças armadas se confundissem com o governo. As forças armadas deviam defender a ordem, não um partido. Ora, a crise do pós-guerra, entre 1945 e 1949, tornara claro que o Estado Novo se mantinha apenas pela força que lhe vinha do apoio do exército. Como então Marcelo Caetano disse a Salazar, “o exército voltou a ser o fiador do Estado Novo”. Para Delgado, isto representava a identificação das forças armadas com um partido, e a sua diminuição como instituição nacional. Separava-as da Nação. O símbolo disso era o ministro Santos Costa, que pusera o exército ao serviço de Salazar.

Em Chaves, a 22 de Maio, Delgado explicou: “Eu quero ser presidente da República de um regime provisório e ir-me embora! Porque eu sou contra a tropa metida em política”. O seu objectivo era “acabar com essa vergonha de a tropa estar a substituir o civil nas funções que só a um civil competem”. Não por acaso, era exactamente o mesmo raciocínio corporativo que, neste menos anos de 1958, esteve na base do protesto de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, contra Salazar. Nos grandes corpos que tinham sustentado o regime, as Forças Armadas e a Igreja, havia quem visse que o futuro dependia de se libertarem da identificação com o salazarismo. Mas a insistência de Humberto Delgado neste tópico, durante a sua campanha de 1958, revela bem a quem se dirigia: aos comandos militares, mais do que aos eleitores da oposição. Delgado nunca teve ilusões.

Ganhar as eleições antes do voto

Depois de muitos anos no estrangeiro, Humberto Delgado não tinha verdadeira influência nas forças armadas. Não comandava tropas, não dispunha de oficiais que lhe fossem fiéis. A sua personalidade exuberante e imprevisível também não o fazia demasiado popular entre os outros generais. Decidiu por isso sair para fora do círculo do regime, e apoiar-se na oposição que a ditadura mais ou menos tolerara desde 1945, e que, ao contrário do que acontecia aos dissidentes nas ditaduras comunistas do leste, dispunha de jornais, revistas, associações e alguma actividade pública, sobretudo nos recorrentes períodos eleitorais, quando a censura e a polícia abrandavam. Para os contactos com a oposição, Delgado terá seguido a pista aberta por Henrique Galvão, que, durante a sua prisão, se relacionara com António Sérgio. A oposição tinha, para Delgado, esta dupla vantagem: por um lado, tinha suficientes meios para lhe ser útil; por outro lado, não tinha suficiente força para lhe resistir.

A oposição tivera alguma iniciativa política pela última vez entre 1945 e 1949. A repressão policial e os dilemas da Guerra Fria tinham acabado por a paralisar. O general Norton de Matos, o candidato presidencial da oposição em 1949, morrera tão anti-comunista como anti-salazarista. Em 1958, não restava à oposição mais do que esperar uma ruptura dentro do regime, seguindo, como já fizera em 1951 com o almirante Quintão Meireles, um candidato vindo da “situação”. Foi esta predisposição que Delgado aproveitou. A oposição dispunha de gente para iniciar alguma agitação nas ruas. Aparecendo fardado de general, ele atrairia curiosos. Podiam assim, entre eles, encher praças e ruas. Para trazer as pessoas para a rua, era preciso mostrar que o regime já não metia medo, que era possível criticar e rir de Salazar em público. Muita gente haveria de pensar que isso era um sinal de fraqueza da ditadura, e talvez tentar colocar-se do lado de quem parecia tão confiante. Nos campos e nas fábricas, segundo um relatório da embaixada espanhola, houve indiferença. Mas Delgado parece ter interessado um público urbano de funcionários, empregados de escritório e do comércio, e profissionais liberais, que ressentiam o condicionamento policial da vida portuguesa, e sobretudo a contenção financeira de Salazar.

Ao contrário do que era costume da oposição, Humberto Delgado foi mesmo a votos. Obrigou assim a ditadura a reconhecer-lhe uma votação de 23,5 %. Delgado, como seria de esperar, tratou sempre este resultado como fraudulento. Mas, mesmo fraudulento, era notável.

A ideia era provavelmente obrigar o regime, com estas estas movimentações de massas, a elevar a repressão a um nível que, devido às suas divisões, talvez não conseguisse sustentar. Delgado sabia exactamente o que estava a fazer: “Se eu não ganhar as eleições antes do dia 8 de Junho, também nunca mais as ganho”. Salazar e sobretudo Santos Costa, porém, responderam ao desafio. A escolha do almirante Américo Tomás, o ministro da marinha, como candidato do regime foi, ao contrário do que se diz, astuta: precisamente porque não entusiasmava ninguém, o almirante também não agravou as divisões dos salazaristas – era o candidato do apaziguamento. Santos Costa, pelo seu lado, provou que a força armada estava com ele, através de uma exibição brutal de polícia nas ruas. Aproveitou ainda a coincidência do aniversário do 28 de Maio para promover, em Braga, grandes comemorações. No seu discurso, reclamou as bandeiras de Delgado: “Os homens do 28 de Maio somos nós, não são eles”, “o Exército somos nós, não são eles” e, por isso, “os homens com medo são eles, não somos nós”. Esta última referência é importante. Em Chaves, a 22 de Maio, Delgado dissera que quem tinha medo agora era a gente do regime. Santos Costa tratou de o desmentir. Mas isto revela o que estava verdadeiramente em jogo na eleição presidencial: era uma batalha do medo: ganharia quem tivesse menos medo, e teria menos medo quem mais medo metesse aos adversários. A política em Portugal não era uma questão de argumentos, mas de força. Perante as massas de Delgado, apareceram as polícias de Santos Costa. Santos Costa deu assim ânimo à clientela do regime, que até então, segundo o próprio, “tinha desaparecido como que por encanto”.

Ao contrário do que era costume da oposição, Humberto Delgado foi mesmo a votos. Obrigou assim a ditadura a reconhecer-lhe uma votação de 23,5 %. Delgado, como seria de esperar, tratou sempre este resultado como fraudulento. Mas, mesmo fraudulento, era notável, se pensarmos que Delgado o obteve num eleitorado pequeno, vigiado e composto de muitos funcionários públicos, e em pouco mais de um mês de campanha, sempre sujeito à censura na imprensa e sem meios para impedir burlas. A oposição não tivera antes nem jamais voltou a ter depois uma votação igual. Em 1959, à cautela, Salazar desistiu de se submeter a outra provação semelhante, mudando o sistema de eleição do presidente da república, que passou a ser escolhido num colégio eleitoral restrito, composto por deputados, procuradores à câmara corporativa e outros dirigentes da ditadura. Nunca mais seria provável o que ele chamava “o golpe de Estado constitucional”, isto é, a hipótese de o candidato da oposição vencer umas eleições presidenciais e, como Delgado prometera, “obviamente demiti-lo”.

Rumo ao desconhecido

Depois da eleição presidencial, Salazar tentou atenuar algumas das tensões entre os salazaristas, pelo seu velho expediente de fazer circular o pessoal do regime. A Marcello Caetano, deu a entender que considerava Santos Costa o verdadeiro vencedor das eleições. Mas acabou por demitir Santos Costa, provavelmente para apaziguar os militares que se haviam posto ao lado de Craveiro Lopes. Depois, despediu também Marcello Caetano, para não irritar os partidários de Santos Costa. Não foram boas notícias para Delgado. Percebeu que o afastamento de Santos Costa iria, pelo menos temporariamente, diminuir a tensão golpista que se vivera no princípio de 1958 e que fora a razão de ser da sua iniciativa.

O que esperava Delgado não era difícil de prever. Havia o precedente de Henrique Galvão, também um protegido de Salazar, mas que no momento em que desafiou publicamente o salazarismo, experimentou a violência de que o regime era capaz, a começar por uma pesada pena de prisão. Marcello Caetano, logo em Junho de 1958, tentou persuadir Salazar a moderar as “retaliações” contra Delgado. Pelo seu lado, o novo ministro da Defesa, general Botelho Moniz, tentou persuadi-lo a que saísse do país, dando a entender que, nessas circunstâncias, talvez ele próprio fizesse alguma coisa contra Salazar. Delgado, porém, não aceitou sair de cena, como fizera o almirante Manuel Quintão Meireles em 1951. Tinha apenas 52 anos, e não 71 como Meireles, e nunca cultivara a discrição e a obscuridade. Em vez disso, tornou-se ainda mais ousado.

Marcello Caetano, logo em Junho de 1958, tentou persuadir Salazar a moderar as “retaliações” contra Delgado

Uma vez que os generais não lhe respondiam, Delgado voltou-se para os oficiais mais novos. As divisões do salazarismo e a campanha eleitoral haviam gerado uma efervescência geral, em que, contra o regime, já não apareciam só os velhos republicanos e comunistas do costume, mas também monárquicos e católicos até aí enfileirados na ditadura. Ressurgiram então, por pouco tempo, o tipo de conspirações de antes de 1926, em que civis armados ajudavam jovens oficiais a tomar conta de instalações militares. Foi a ideia por detrás da chamada “revolta da Sé”, de Março de 1959. Tudo falhou. Em grande medida, porque o medo não tinha acabado. Havia o medo da polícia, que vigiava, prendia e torturava. Mas era um medo que, apesar de tudo, não impedia as pessoas, pelo menos em privado, de comentar e maldizer, como se nota nas informações da PIDE. O medo maior, que impedia qualquer mudança, não era esse, mas outro: era o medo do “desconhecido”. Comentando a “revolta da Sé”, Mário Soares notou nas suas memórias, em 1972: “O que sairia de um tal movimento se acaso tivesse triunfado? É difícil de prever”. Havia republicanos e monárquicos, socialistas e comunistas, católicos e maçons. Todos queriam derrubar Salazar – mas se o fizessem, que aconteceria depois? Por isso, houve sempre grupos que faltaram ou se retiraram – em Março de 1959, por exemplo, os comunistas, provavelmente desconfiados que talvez não aproveitassem com uma vitória, abandonaram a conspiração. Ninguém sabia o que estava do outro lado.

Foi esse medo do imprevisível que também paralisou os generais que sucederam a Santos Costa em 1958. Três anos depois, em Abril de 1961, tentaram obrigar Américo Tomás a fazer o que Delgado prometera: demitir Salazar. Quando Tomás resistiu e Salazar os demitiu a eles, desistiram. Queriam acabar com o poder de Salazar, mas tinham medo de “aventuras” que dividissem as forças armadas e precipitassem uma guerra civil. Era este medo do desconhecido, tanto como o medo da polícia, que sustentava Salazar. Em 1958-1961, em Portugal, a liberdade, isto é, um mundo sem Salazar, metia medo: tanto aos opressores, como aos oprimidos.

A questão da autoridade numa transição entre regimes era grave. O próprio Delgado estava consciente disso. Prometera a “adopção progressiva e tão rápida quanto possível dos hábitos correntes nos países democráticos”. Era a democracia pluralista o seu objectivo final. Mas no seu discurso de Chaves, a 22 de Maio de 1958, admitiu que nada havia, no imediato, para “suceder a trinta anos de ditadura senão um regime de força”. E reflectiu: “Eu pergunto a alguém se tem qualquer ideia de como é que um país infantil do ponto de vista democrático, sem partidos organizados, completamente amorfo, louco, sedento de liberdade, se pensa que em vinte e quatro horas se podem fazer eleições gerais?” Quer dizer que Delgado, no imediato, oferecia sobretudo a expulsão do poder de Salazar e de Santos Costa. Mas não podia garantir exactamente o que viria a seguir, a não ser que ele próprio estaria à frente de outra ditadura, embora uma ditadura democratizante. Para as oposições, isto era pouco. Delgado não lhes garantia posições, apenas a benevolência de um antigo salazarista.

É conhecida a resistência do PCP à sua candidatura. Mas os outros oposicionistas não foram muito mais acolhedores. Delgado era alguém que viera do outro lado, e que permanecia um ser estranho. No fim de 1958, quando os oposicionistas preparavam a visita a Portugal de um deputado trabalhista inglês, Delgado sugeriu que, para provocar agitação, arranjassem uns rapazes para lhe atirar “uns tomates”, de modo que os salazaristas ficassem com as culpas. Os seus novos correligionários ficaram chocados: “Era o antigo oficial da Legião Portuguesa que tinha vindo de súbito à superfície”, notou Mário Soares. A oposição nunca confiou nele. Nas suas memórias, Santos Costa conta que perguntou a Aquilino Ribeiro se a oposição queria mesmo Delgado como presidente. Aquilino ter-lhe-ia respondido: “Mas é evidente que não, meu caro amigo”. O que “nós precisamos, acima de tudo, é de alguém que nos abra a porta. O resto se verá depois”. Só que Delgado não queria ser o Américo Tomás da oposição: se era essa a ideia, como disse numa carta de 1958, “enganaram-se no tipo de general que escolheram”. Devido ao fracasso da sua aposta de 1958, Delgado condenou-se a fazer oposição com gente que não confiava nele, e em quem ele não confiava.

Depois de 1961, tudo pareceu diluir-se. Os militares aplicaram-se nas guerras em África. A população entregou-se às grandes expectativas proporcionadas pela rápida industrialização do país e pela emigração para França. Humberto Delgado, porém, foi sempre em frente, “mais longe do que iria a maioria dos homens”, como disse em 1962. Em 1959, partiu para o exílio, depois de fazer perigar as relações entre Portugal e o Brasil, ao refugiar-se na embaixada brasileira em Lisboa. Vagueando entre o Brasil e a Argélia, conspirou com todos e adoptou os pontos de vista mais radicais. Foi dos primeiros não-comunistas a admitir a independência do ultramar, revelando a mesma audácia do general De Gaulle no caso da Argélia francesa. Imprevisível e impetuoso, tornou-se insuportável para os outros oposicionistas, com quem foi cortando relações até ficar quase sozinho. Permaneceu, porém, a referência principal do combate ao salazarismo. Como Silva Marques contou nas suas memórias de militante clandestino no princípio da década de 1960, até aos simpatizantes do PCP o que mais interessava não era o que Álvaro Cunhal explicava nos seus longos relatórios escritos em Moscovo, mas “notícias de Humberto Delgado”. Delgado era o homem de acção, que não esperava mudar o regime com citações de Lenine. No fim do ano de 1961, entrou disfarçado em Portugal, para secundar uma tentativa de assalto ao quartel de Beja. Depois, deu entrevistas à imprensa internacional, mostrou fotografias de óculos e bigode em Lisboa. Ninguém como ele soube humilhar o regime.

Ao contrário do que por vezes se diz, a PIDE tinha razões para o matar. Ele nunca iria desistir, e, quem sabe, talvez um dia tivesse sorte. Nestes anos, todos tinham presente o modo improvável como Fidel Castro, em Cuba, passara de foragido na serra a dono absoluto do país. Mas nem sempre foi fácil aguentar a deambulação sem fim entre países, hotéis e identidades falsas. Em 1964, na cama de um hospital de Praga, magro e envelhecido, Mário Soares ouviu-lhe uma confissão tremenda: “Arrisquei e perdi tudo na luta: família, posição, amigos, dinheiro. Sou um homem aniquilado e terrivelmente só”. Mas, imediatamente a seguir, pediu champanhe para comemorar a visita de Soares. E uns meses depois, num novo encontro em Paris, outra vez efusivo e confiante, marcou-lhe “rendez-vous em Portugal!” Também ele não sabia o que podia acontecer. Mas não tinha medo.

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