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sábado, 5 de maio de 2018

O NOBEL IMPLODIU

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 05/05/2018)

cfa

Clara Ferreira Alves

(Lá tive que publicar a D. Clara. A razão é simples: absteve-se de escrever sobre o Pinho e sobre o Sócrates, tema de onde, de certeza, iria sair asneira, as usual. Escreve sobre o escândalo dos bastidores de atribuição do Nobel da Literatura, e escreve bem.

Enfim, a conclusão é só uma: no melhor Nobel cai a nódoa.

Comentário da Estátua, 05/05/2018)


O que podemos esperar da Academia Nobel? Não passa de um grupo aleatório de gente, tão competente e incompetente como qualquer outra

O Nobel implodiu em vez de explodir, como lhe competia, visto que o prémio nasceu da dinamite. Parece que a Academia decidiu não atribuir o Nobel da Literatura este ano. À primeira vista, quando um prémio não é atribuído, deve-se a omissão à escassa qualidade dos presumíveis. O júri sai por cima. O que torna esta omissão interessante é que o júri sai por baixo. Parece que o marido de uma das distintas e augustas donas do veredicto, um tal de Arnault, andou durante anos a molestar, apalpar, incomodar e de um modo geral sodomizar verbalmente, senhoras que passavam por perto da sua mão lesta. Parece que até a princesa sueca não escapou ao dito Arnault. Esse povo gelado e nórdico, raça de vikings, Thors e Odins, gente considerada de superior civilização por comparação com os devassos povos do sul, os tais que gastam o dinheiro em copos e mulheres, como os portugueses nas sábias palavras de um desse tecnocratas europeus que estica a perna nos Algarves, bebe do branco e remata a assada de peixe com uma malga de café com leite, à boa maneira calvinista, e os calvinistas são todos superiores, esse povo gelado e nórdico, dizia, profundamente ordenado, disciplinado e educado, parece que é pior do que animal com cio no que às literaturas concerne. Com as queixas veio à tona uma espuma suja de escândalos sexuais tipo Metoo, que fazem dessa gente de pele branca e muita proteína uma cambada de Harveys Weinsteins.

A tal ponto descambou a reputação do famoso grupo de doutos jurados, e que, soube-se agora, contém um jurista, personagem útil, esse júri anos a fio secretíssimo, bem comportado e dedicado a ler todos os romances e poemas do mundo, a tal ponto descambou, dizia, que a Academia decidiu recolher a penates e fazer o ato de contrição. Demissões, revelações, expiações, que fazem da malta do prémio mais famoso do mundo um novelo de atores de telenovela mexicana. Ora, isto para a literatura com éle grande são ótimas notícias. Nenhum prémio contribuiu mais para criar assimetrias entre escritores e, arbitrária e politicamente motivado, enviesado, arrepelado, servir para estabelecer uma hierarquia fútil que nada diz sobre a excelência da literatura e diz tudo sobre as excelências do jurados. A famosa listazinha final, discutida e rediscutida, plena de intrigalhada e mexerico, manipulada atrás da cortina por fios geopolíticos e geoestratégicos, politicamente correta ou falsamente moralizadora, não passava de uma guerrazinha de egomaníacos abusando do poder imenso sobre uma escolha de imortais. Há anos que se sabia que nesta nomenclatura a linha reta nunca era a mais curta distância entre dois pontos. Coexistia com os nobelizados uma lista paralela de não nobelizados punidos por não serem suficientemente “humanistas”, e nisto do humano nada mais humano do que o desejo de apalpar outros humanos, ou por não serem suficientemente de esquerda, ou por serem de Israel, ou por terem a desdita de conviverem com uma ditadura. Philip Roth era misógino e gostava demasiado de mulheres, nada que o marido da dita senhora não aprovasse. Amos Oz era israelita, e Israel está proibido de ganhar prémios exceto no festival da Eurovisão. Jorge Luis Borges era um sujeito passivo da junta argentina, além de ser cego, o que não dá muito jeito para o ativismo. E Graham Greene, bom, Graham Greene parece que dormira com a mulher de um dos membros do júri, o que à luz dos recentes acontecimentos no sossego dos quartos adúlteros ou na claridade dos salões, não passaria de uma recomendação para o Nobel. Se toda a gente dormia com toda a gente ou tentava dormir, copular, não haveria razão para excluir esse católico pecador.

Todos os anos, chegado o mês da coisa, os escritores andam num virote, coração em taquicárdia, arremessados para a cesta dos favoritos. Ele é fulano e sicrano e beltrano, e de repente nunca é nenhum deles e é um desconhecido ou um chinês. O pobre V.S. Naipaul, Sir Vidia, que dizia que o Nobel não lhe importava um caracol, lacrimejou como uma donzela quando o ganhou. Estes efeitos deletérios do prémio não são explicáveis pela pecúnia. É a honraria, o banquete, a fatiota, as tiaras, e as vendas que disparam em flecha. Nem sempre. A grande poetisa Wislawa Szymborska, bem entrada em anos, não vendeu mais livros. E Doris Lessing recebeu o prémio quando já não precisava dele. Velha demais. As mulheres são sempre menos do que os homens neste baralho, estamos habituadas. Ao génio o que é do génio, fiquemos com a molestação.

Recolhida ao convento para a penitência, o que podemos esperar da Academia Nobel? Não passa de um grupo aleatório de gente, tão competente e incompetente como qualquer outra. Nenhum membro se distinguiu por saber escrever um grande livro ou poema ou por saber mais sobre literatura do que os literatos instantâneos.

O Nobel premiava em função de pressões políticas, diplomáticas, financeiras, em função de lóbis e agências, em função de pressões, poderes, dinheiros e vaidades. Claro que premiou bons escritores, tantos como os que deixou de fora. E, Nobel ganho, o escritor acabava. Arrastando as vestes, seguia-se quase sempre a morte, o olvido ou o livrinho menor. Com exceção de Gabriel García Márquez, um monstro literário que escreveu “O Amor nos Tempos de Cólera” depois do Nobel, uma obra-prima, quase todos os nobelizados se afundaram em obras epigonais de si mesmas. Saudemos a implosão.

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