por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 21/05/2018)
António Arnaut (1936-2018)
Quando se diz que António Arnaut foi o “pai” do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não é preciso acrescentar que, para além disso, foi um político notável, um democrata exemplar, um socialista empenhado. As três coisas estão resumidas no seu legado político: Serviço Nacional de Saúde. Porque o nosso SNS resume, de forma quase perfeita, o projeto que o socialismo reformista representou para Portugal e para a Europa. No tempo em que se propunha mudar a vida das pessoas e não apenas gerir a contrarreforma para que fosse um pouco menos dolorosa. O que é trágico é que Arnaut morra quando o PS tem como ministro da saúde, num governo que ainda por cima só depende do apoio da esquerda, alguém que dedicou a sua tese de doutoramento às vantagens de privatização de sectores do SNS.
Sendo António Arnaut fundador do Partido Socialista e ex-Grão-Mestre da maçonaria, seria de esperar que nele se concentrassem, mesmo na hora da sua morte, os mesmos ódios insultuosos que ouvimos no dia da morte de Almeida Santos ou de Mário Soares. Isso não aconteceu pelas características pessoais de Arnaut, bastante diferentes dos dois outros socialistas, mas também por o seu nome estar associado ao nascimento de uma das maiores conquistas nacionais dos últimos cinquenta anos. De tal forma poderosa que ninguém se atreve a contestá-la de forma explícita. E por ele nunca o ter deixado de a defender de forma coerente.
Com a Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde, propostas por Arnaut e aprovada, em 1979, com os votos favoráveis do PS, PCP e UDP e os votos contra do PSD e do CDS, António Arnaut resumiu, no que é uma das maiores conquistas da democratização do país, uma aliança política que só muito recentemente teve tradução numa maioria parlamentar de governo. Essa aliança em torno do SNS existiu porque correspondia ao PS que responde mais à sua base popular de apoio do que aos interesses que, nos últimos anos, com a cumplicidade do PS, PSD e CDS, abocanharam partes do SNS com prejuízo para as contas públicas e para os interesses dos utentes.
Mais do que elogios, mais do que palavras, mais do que bandeiras a meia-haste, António Arnaut deixou um testamento: um documento sobre os grandes desafios para o Serviço Nacional de Saúde, elaborado com o antigo líder do Bloco de Esquerda João Semedo. Ele não é um dogma e não é por a sua vida exemplar ter chegado ao fim que Arnaut tem razão em tudo o que defendia. Mas o PS tem o dever de não ignorar esse documento. Depois de Semedo e Arnaut terem dado o pontapé de saída para a aprovação de uma nova Lei de Bases da Saúde, o governo nomeou uma comissão liderada por Maria de Belém Roseira. Sem qualquer desrespeito numa hora que é para prestar homenagem a quem parte, não me ocorre ninguém que esteja, dentro do PS, mais distante da vida política e da perspectiva que Arnaut tinha do SNS.
A melhor forma de o PS prestar homenagem a Arnaut não é enfiar o seu retrato num corredor do partido, é pegar no seu testamento político e fazer disso uma proposta política. E pegar no seu exemplo de entrega ao serviço púbico sem promiscuidade com interesses privados e fazer dele prática política quotidiana. Arnaut é a parte melhor do PS. Usem-na e terão a eterna gratidão a que Arnaut tem hoje direito.
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