por estatuadesal
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 09/06/2018)
Miguel Sousa Tavares
1 Já se passaram quinze dias sobre o Congresso do Partido Socialista e, como é habitual nos tempos que correm, quinze dias torna qualquer acontecimento uma antiguidade. É como se as coisas que não são imediatamente faladas e discutidas perdessem a importância, deixando de existir. Mas houve uma ou duas coisas no Congresso do PS, de que a eutanásia dos dias me roubou espaço e tempo de reflexão, e que poderão vir a revelar-se importantes num futuro a médio prazo.
Refiro-me ao discurso de Pedro Nuno Santos no primeiro dia de trabalhos e à subtil resposta para bom entendedor que António Costa lhe deu. Já tinha ouvido dizer que Pedro Nuno Santos era um representante da ala esquerda do PS, mas confesso que desconhecia que fosse também um ideólogo da mesma e um futuro candidato a secretário-geral em representação dela. Ao que parece, segundo análise unânime da imprensa, assumiu-se agora em ambas as condições e, para que dúvidas não restassem, até recorreu à exumação solene do cadáver de Karl Marx, 135 anos depois da sua morte e 44 anos depois da então ala esquerda do PS tentar arrastar os recém-filiados do partido com o slogan “Partido Socialista/Partido Marxista”. Os mesmos militantes que depois, para grande alívio deles, Mário Soares conduziria às batalhas inesquecíveis da Fonte Luminosa, do “Caso República”, da luta contra a Unicidade Sindical e do 25 de Novembro — ou seja, das batalhas pela liberdade — antes de os conduzir à Europa, trocando o marxismo pela modernidade e os slogans pela realidade.
Caminho esse que depois foi feito alternadamente com o PSD, por vezes aliado ao CDS, e sempre contra a resistência dos que se reclamam herdeiros do marxismo e do leninismo. E se hoje vivemos há dois anos e meio sob uma composição de poder que parecia impossível e absurda face a todo o histórico anterior é essencialmente por duas razões: porque os eleitorados do BE e do PCP (sobretudo este) se cansaram de ter apenas uma posição de exigência e pressionaram os seus directórios para experimentar viabilizar um governo PS; e, sobretudo, porque a desmesurada viragem à direita do PSD sob Passos Coelho, a sua insensibilidade social e o seu desprezo pela raiz centrista da sua origem, abriram caminho a uma maioria sociológica e parlamentar capaz de fazer diferente com melhores resultados — ou até mesmo de fazer igual parecendo fazer melhor. Ora, quando Pedro Nuno Santos comete a ousadia de afirmar que o PS nunca mais precisará do PSD para nada e, em contrapartida, parece entregar-se todo nos braços dos seus actuais e circunstanciais parceiros de poder, ele não apenas está a enfraquecer a posição negocial futura do PS para com estes, está também a cometer, à esquerda, o mesmo erro que Passos Coelho cometeu à direita: afrontar e desprezar a classe média, o célebre milhão de votantes que decide as eleições, os mais alfabetizados politicamente, os grandes pagadores de impostos. Rezam as crónicas que o congresso se levantou a aplaudir a tirada, o que é compreensível: sendo o PSD o principal rival de poder do PS, tudo o que seja atacá-lo entusiasma as massas. E, quando se está no poder, tudo entusiasma as massas. Aliás, também rezam as crónicas que, embora não tanto quanto a Pedro Nuno Santos, o congresso aplaudiu tudo e o seu contrário. Como é próprio dos partidos felizes, que não precisam de pensar.
Abençoado PS, que aplaude de pé uma liderança de futuro, que reclama a herança de Marx. De quem?
Não foi o caso de António Costa, que levava uma moção de estratégia muito bem pensada, mas a que ninguém ligou, o que também não quer dizer nada. Mas ele, sim, ligou ao que disse Pedro Nuno Santos e deu-lhe uma resposta ao nível do seu finíssimo jogo de cintura. Começou por dizer, como se se dirigisse a todos em geral, e não a ele, especificamente, que ainda não pensava reformar-se: “Esperem, que o vosso tempo ainda não chegou e atrás de tempo, tempo virá”. Depois, não teve uma palavra sobre os seus parceiros de coligação nem sobre alianças no futuro. E, numa semana em que a Comissão Europeia avisara contra os gastos excessivos na Saúde e poucos dias antes de ser a OCDE a recomendar cautela com os aumentos na Função Pública — duas das principais reivindicações apadrinhadas pelo BE e pelo PCP — António Costa não teve uma palavra sobre isso e preferiu afirmar como principal prioridade aquilo de que a CGTP e os partidos da extrema-esquerda nunca se lembram: o regresso dos que tiveram de emigrar durante a recente crise. Com isso, António Costa não apenas colocou as prioridades na ordem do que é mais justo e mais deveria mobilizar o país, como creio que também quis passar uma mensagem que refreasse alguma euforia patente entre os socialistas. É preciso ver além da espuma dos dias, como ele disse.
E, além da babugem e da crista da onda, está um mar a encrespar-se. Na frente interna, assistimos a uma desaceleração da economia, arrastada pelo abrandamento das exportações — que nos ensina que, a médio e longo prazo, a aposta nas exportações como fonte principal de crescimento é totalmente incerta e dependente de factores externos. Mais seguro é apostar na inovação e na produtividade e tentar substituir cada vez mais produtos importados por produtos made in Portugal. E, se o défice se mantém sob controlo, o enorme elefante da dívida continua na sala — igualmente enorme e inamovível. Na frente externa, tudo é mais incerto do que nunca. A queda de Rajoy e a sua substituição por Pedro Sánchez, em Espanha, está longe de garantir que Costa vá encontrar de imediato alguém que, juntamente com Macron, possa continuar a tentar demover a obstinada teimosia alemã em fazer o que precisa de ser feito para salvar o projecto europeu. E depois há o caso italiano, para seguir de respiração suspensa.
Nunca devemos subestimar os italianos, politicamente. Aliás, nunca se deve subestimar os italianos em nada, porque são o povo mais civilizado do mundo. Se eles agora escolheram para os governar uma coligação entre um partido xenófobo e quase fascista e outro criado por um palhaço e que se declara anti-sistema; se ambos se afirmam anti-União Europeia e fazem gala em dizer que não recebem ordens de Berlim nem de Bruxelas e que não temem sair do euro nem rebentar com a moeda única, tenham medo porque estamos a falar da terceira economia europeia, mas olhem com muita atenção para tentar perceber por que razão um país onde o debate político sempre foi mais avançado chegou a este ponto.
E se algumas das medidas radicais que o novo Governo projecta ensaiar — como o imposto sobre o rendimento de taxa universal de 15% para todos, sem isenção alguma, ou o rendimento garantido, igualmente universal e igual para todos — forem avante e se revelarem, não o desastre financeiro que todos os economistas prevêem, mas um detonador económico jamais ensaiado, fiquem estarrecidos porque é todo o sistema social europeu, todas as verdades que tínhamos como inabaláveis para sempre, que ficam em causa, de repente. E isso é apenas uma pequena parte do assustador mundo que temos pela frente, com as quatro grandes ameaças de que falava Stephen Hawking, por ordem de importância: a inteligência artificial, uma guerra nuclear, as alterações climáticas, a questão demográfica. Abençoado PS, que aplaude de pé uma liderança de futuro, que reclama a herança de Marx. De quem?
2 Não há nada a fazer com os alemães: são mesmo arrogantes, convencidos de que têm de dar lições a todos os outros. Há cinco anos, no auge da crise, cuja dimensão em grande parte nos impuseram sem necessidade, Angela Merkel, dignou-se visitar-nos por umas horas. Quando um jornalista lhe perguntou humildemente se a Alemanha nos poderia ajudar, respondeu que sim, poderiam importar alguns engenheiros portugueses (porque, surpreendentemente, em algumas áreas, os nossos engenheiros são melhores do que os alemães). Recebi isto como um insulto: nós pagávamos a formação dos engenheiros com os nossos impostos e, uma vez ela terminada, a Alemanha dava-nos a “ajuda” de os receber nas suas fábricas de excelência, onde se factura o maior excedente comercial do mundo. Desta vez, de visita de dois dias, António Costa levou-a a ver o que de melhor produz a tecnologia portuguesa ao serviço das multinacionais alemãs em Portugal. E, de caminho, lembrou que também tínhamos bons vinhos para exportar. “Nein!”, disse a chanceler Merkel, “na Alemanha também temos excelentes vinhos!”. A sério, Angela? Aquela droga do Riesling? Nem os vinhos, Angela? O país com piores vinhos do mundo nem sequer está aberto a importar vinhos decentes dos seus parceiros europeus? E depois de matarem a Europa com essa visão de Tio Patinhas, o que vão vocês fazer, sentados em cima de pilhas de dinheiro acumulado e de Mercedes e BMW que ninguém terá dinheiro para vos comprar?
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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