12 Junho 2018
O que podemos aprender com os melhores países do mundo no combate à corrupção? Que medidas são mais eficazes? E já agora: Portugal quer mesmo acabar com a corrupção? Ensaio de Nuno Gonçalo Poças
Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
A corrupção e os crimes que lhe estão associados não são temas de hoje – são temas diários que há vários anos ocupam o espaço de debate público. Olhando só para os casos mediáticos, incluindo aqueles sobre os quais se levantaram meras suspeitas sem que delas tivesse decorrido qualquer processo judicial, os que resultaram em condenações ou absolvições e as investigações atualmente em curso, a história dos casos de alegada ou comprovada corrupção portuguesa, em democracia, vem de longe. Desde o caso do fax de Macau ao do Fundo Social Europeu, das faturas falsas ao Taguspark, dos submarinos ao saco azul de Felgueiras, do caso da mala ao Freeport, do BPN ao Face Oculta, da Operação Marquês aos vistos Gold, do Apito Dourado ao E-Toupeira, foram dezenas de instituições em Portugal, ao longo das últimas décadas, envolvidas em casos mais ou menos nebulosos. Casos que poderão ter decorrido de alegados crimes como a corrupção, o peculato, o tráfico de influências, a falsificação de documentos, a fraude fiscal ou o branqueamento de capitais, além do abuso de poder ou da prevaricação.
Sim, a lista de casos é longa. Mas ainda mais inquieta a perceção pública de que pouco ou nada acontece aos visados – isto é, que às instituições democráticas, nomeadamente na Justiça, falta força para averiguar e punir. Não são raras as vezes em que, apesar do alarido, tudo fica na mesma. Dos clubes de futebol às autarquias locais, da banca aos partidos políticos, dos sindicatos ao próprio Governo, passando pelo Parlamento, têm sido várias as instituições nacionais a prestar-se a justificações, mais ou menos convincentes, de que, afinal, tudo vai bem, de que todos lutam pela transparência, pela ética, pela verdade e pela justiça.
As perguntas que ficam são numerosas. Que causas tem a corrupção e que riscos traz? De que forma põe em causa os nossos interesses pessoais e os da sociedade em geral? Será que somos, afinal, complacentes com condutas pouco éticas? E que soluções se podem trazer para combater o fenómeno? Será que se aplica a Portugal a frase de Jô Soares que diz que “a corrupção não é uma invenção brasileira, mas a impunidade é uma coisa muito nossa”? E tinha ou não razão a então procuradora Cândida Almeida quando afirmou, em 2012, que “o nosso país não é um país corrupto, os nossos políticos não são políticos corruptos, os nossos dirigentes não são dirigentes corruptos, Portugal não é um país corrupto”?
Como sempre acontece, existe uma grande diferença entre realidade e perceção: há muito a fazer, em Portugal, para melhorar o combate à corrupção – que até é investigada, mas várias vezes sem sucesso e sem conseguir punir os infratores. São estas questões que este ensaio abordará – para concluir que isto só se resolve com uma reforma da Justiça.
Perceções e realidades: a corrupção em Portugal e no mundo
Começo por trazer, a este propósito, o que António Araújo disse, em entrevista ao Público: “Há muitos estudos sobre a oposição, mas não há ainda um sobre como é que Salazar administrava uma coisa fundamental que era a cunha, como é que ele dominava o país”. Valeria a pena olhar para o que eram as relações sociais e profissionais e a forma como os cidadãos se relacionam com o Estado desde a ditadura, mas a cultura da “cunha” é mais antiga do que isso. Facto é que a maioria dos Estados em que a corrupção é generalizada (ou a sua perceção é elevada) são Estados com valores democráticos débeis e com instituições públicas desacreditadas. No entanto, não é menos certo dizer que a experiência do Estado Novo trouxe a Portugal a ideia de que a denúncia da corrupção é ineficaz ou que traz, por si só, represálias, além de ter cimentado a cultura da “cunha”, que já nos era tão familiar.
Os dados levantam uma questão curiosa: como é que se explica esta perceção generalizada em toda a Europa de que a corrupção não nos afeta enquanto cidadãos? Uma resposta possível é que a corrupção é geralmente abordada no debate público, nomeadamente pela comunicação social, como um crime sem vítimas.
A cultura cívica, enquanto causa do fenómeno da corrupção, reflecte-se também no famoso argumento “rouba, mas faz”, a simplificação verbal do que justifica, em não raros casos, a falta de transparência, a burocracia, a ambiguidade normativa ou a ineficácia dos meios sancionatórios. Já em 2006, no inquérito “Corrupção e Ética em Democracia – O Caso de Portugal”, se verificou que praticamente 64% dos portugueses se mostram tolerantes com a corrupção desde que esta traga benefícios à população em geral. Por outro lado, o desenvolvimento da economia portuguesa, nas últimas décadas, tem demonstrado uma natureza clientelar e corporativista – que a democracia não extinguiu. O Estado, por sua vez, mantém-se centralizador e constituiu-se um obstáculo à iniciativa privada independente e, ao mesmo tempo, revela-se permeável aos interesses partidários ou a influências de outros grupos de interesse, com frágeis mecanismos de controlo de transparência e de fiscalização.
No Índice de Perceção da Corrupção de 2017, o principal indicador mundial sobre níveis de corrupção no sector público, Portugal partilhava o 29.º lugar com o Qatar, num total de 180 países – numa escala que vai da Somália e do Sudão (os piores classificados) à Dinamarca e à Nova Zelândia (os melhores). Estamos abaixo da média da União Europeia e há vários anos que mantemos praticamente a mesma posição no ranking. O que acaba por dar razão à Associação Cívica Transparência e Integridade, que tem afirmado que Portugal está estagnado no combate à corrupção – que é como quem diz que não estamos mal, mas também não temos feito nada para estarmos melhor.
No entanto, esta parece ser uma realidade que desagrada aos portugueses. Num inquérito Eurobarómetro, realizado em 2017, 58% das empresas portuguesas diziam que a corrupção é um problema que enfrentam nos negócios que fazem; 86% afirmaram que a corrupção é prática generalizada em Portugal; 70% acreditam que para ter sucesso nos negócios é preciso ter ligações políticas; e para 74% os concursos públicos feitos à medida são um problema.
Naturalmente, o problema não é exclusivamente português. Um inquérito Eurobarómetro anterior, realizado em 2013 nos 28 Estados-Membros da União Europeia, concluiu que 76% dos europeus entendiam que a corrupção era prática generalizada no seu país, que 67% consideravam que não existia transparência e supervisão suficientes quanto ao financiamento partidário e ainda que dois em cada três europeus consideravam que a corrupção faz parte da cultura empresarial do seu país. Curiosamente, apenas 30% dos europeus inquiridos afirmaram sentir-se pessoalmente afetados pela corrupção – ignorando dados do mesmo ano que diziam que a corrupção provocava danos, só na União Europeia, de 120 mil milhões de euros anuais. Não, o problema não é só nosso, mas nós continuamos estagnados abaixo da média europeia, como vimos.
Os dados levantam uma questão curiosa: como é que se explica esta perceção generalizada em toda a Europa de que a corrupção não nos afeta enquanto cidadãos? Uma resposta possível é que a corrupção é geralmente abordada no debate público, nomeadamente pela comunicação social, como um crime sem vítimas. De facto, poderá entender-se que se trata de um crime em que existe uma distância considerável entre o agente e a vítima, o que faz com que não se dê visibilidade à vitimização – e, pior, faz com que a própria vítima não tenha consciência de que o é. Costa Andrade utiliza a expressão “crime de vítima difusa”, já que todos somos vítimas e ninguém sabe disso. Talvez a expressão seja a mais feliz de todas.
Já vários estudiosos do tema elencaram os danos que a corrupção nos provoca: prejudica a concorrência económica e, por conseguinte, os consumidores; lesa o património público, o que produz efeitos nos sectores da saúde ou da educação; compromete a vida das atuais e das futuras gerações; aumenta a desigualdade social; reduz o investimento estrangeiro; aumenta os custos de financiamento público; aumenta o défice; denigre a democracia, destruindo a confiança dos cidadãos nas instituições; corrói o sistema político, o judicial e a administração pública. Mesmo que a perceção seja a de um crime sem vítimas, a realidade mostra que a corrupção não é coisa pouca.
A justiça, sempre a justiça
Por mais curioso que pareça, no já referido inquérito “Corrupção e Ética em Democracia – O Caso de Portugal”, de 2006, em que se verificou que mais de 60% dos inquiridos se mostravam tolerantes com a corrupção desde que esta trouxesse benefícios à população em geral, os portugueses não deixaram de expressar outros sentimentos: regra geral, consideravam que a justiça era demasiado branda para com membros do Governo, Deputados, autarcas, dirigentes desportivos ou gestores de empresas. Por outro lado, os portugueses mostravam-se descontentes com a mão pesada dos tribunais no caso dos pequenos delinquentes e do cidadão comum. E, desde 2006 até hoje, o que mudou, nomeadamente na forma como a Justiça tem combatido o fenómeno?
A investigação, pelo menos, está a aumentar. Segundo a Procuradoria-Geral da República, e incluindo na análise os crimes relacionados com questões éticas, verificamos que, entre 2014 e 2017, houve 2014 inquéritos por corrupção, 1268 por abuso de poder, 1260 por peculato, 534 por branqueamento de capitais, 251 por participação económica em negócio, 85 por tráfico de influência, 77 por administração danosa e 57 por recebimento indevido de vantagem, num total de 5564 inquéritos. Mas, no mesmo período, houve apenas 457 acusações. E 138 condenações em primeira instância. No entanto, mesmo o número de acusações tem subido, sendo que o das condenações se tem mantido oscilante, mas muito abaixo das primeiras.
O anterior presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, eleito em 2012, afirma que houve mudanças grandes desde que foi eleito para o cargo até hoje e salientou, a propósito dos dados que acabamos de ver, a formação especializada dos procuradores do Ministério Público. Mas a verdade é que ficam algumas questões relevantes por responder: a investigação está a aumentar porque há mais corrupção ou porque existem mais meios para investigar? O que explica uma disparidade tão grande entre o número de investigações, de acusações e de condenações? E essas condenações, quanto tempo demoram a ser atingidas? E as penas aplicadas são de prisão efetiva ou suspensas quanto à sua execução?
Não há respostas finais e absolutas. Mas há pistas que, com base na investigação académica, se pode seguir. Luís de Sousa, num ensaio da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre a corrupção (2011), chamava à colação os dados do projeto “A corrupção participada em Portugal 2004-2008”, afirmando que as suas conclusões corroboravam o fraco desempenho do aparelho repressivo no combate à corrupção. Isto porque, entre 2004 e 2008, 53% dos processos tinham sido arquivados, 30% encontravam-se em investigação, apenas 5,6% dos processos tinham acusação deduzida e apenas 6,9% dos processos foram encerrados por decisão judicial condenatória. Mais: do baixo volume de condenações transitadas em julgado, poucos eram os que cumpriam penas de prisão efetiva.
E não se ficava por aqui. Os crimes de corrupção seriam os que originam maior número de arquivamentos por inexistência de indícios probatórios, e a razão mais comum às absolvições em primeira instância era a falta de provas quanto à apropriação de vantagem patrimonial e à sua ilicitude.
Luís de Sousa elencava, então, uma série de problemas com que a justiça se deparava: a escassez de recursos, a ausência de resultados, a ausência de especialização (que, como vimos, tem vindo a ser atenuada, pelo menos no que diz respeito ao Ministério Público), a burocratização da investigação criminal, a concentração de poderes judiciais no que concerne aos altos cargos, o desprestígio dos tribunais de primeira instância, a falta de sistematização da informação e a excessiva dependência da denúncia e, por fim, a inconsequência da justiça. Ora, a estagnação portuguesa no Índice de Perceção explica que os problemas continuam a ser essencialmente os mesmos. O que fazer, então?
Os melhores do mundo no combate à corrupção
É evidente que a chamada “criminalidade de colarinho branco” é um fenómeno complexo (e cada vez mais sem fronteiras) e que, por isso mesmo, não é simples criar mecanismos e estratégias que a combatam. Até porque também é verdade que um dos maiores problemas que a luta contra a corrupção enfrenta é a tolerância com que a própria sociedade lida com esta criminalidade económica. Mas também não é menos certo que mesmo esse cenário de tolerância se tem vindo a alterar, num processo que a comunicação social tem, até certo ponto, ajudado a desenvolver.
Vistos os problemas, que soluções se poderão encontrar para eles? É nesta altura que o debate se torna (mesmo) difícil, já que quanto ao tema da corrupção, em geral, não há quem discorde de que se trata de algo a combater. O problema está, sobretudo, na forma como esse combate é travado.
Um dos pontos de partida deverá ser o dos mecanismos de transparência e da cultura de meritocracia que os regimes legais apresentam. Olhemos para os dois países que lideram o Índice de Perceção da Corrupção: Nova Zelândia e Dinamarca.
Na Dinamarca, o combate à corrupção é antigo – ainda no século XIX, para fazer face a uma crise económica, foi criado um sistema de tolerância zero na administração pública.
Nova Zelândia. O país tem uma administração pública altamente transparente, com mecanismos burocráticos otimizados e absolutamente focada na eficiência dos serviços que presta. Além disso, foram criados instrumentos legais que permitem separar claramente a administração da política. Além disso, o princípio da economicidade é chão comum às políticas públicas neozelandesas: os recursos públicos são objetivamente tratados como escassos e, na sua aplicação, o contribuinte é visto como um normal cliente a quem deve ser conferido um tratamento com um elevado grau de exigência.
Uma das fórmulas que a Nova Zelândia alcançou para atingir este ponto cultural foi a implementação, em 1912, através de uma grande reforma administrativa, da States Service Comission (SSC), um organismo com mais de cem anos que é o grande responsável pela uniformização da política de administração pública, nomeadamente do funcionalismo público. Uma das grandes missões da SSC é evitar a criação de grandes clivagens salariais nas carreiras públicas, as quais são analisadas e atualizadas em função da realidade do sector privado, além de implementar e monitorizar o modelo de ascensão na carreira dos funcionários públicos através de uma política objetivamente meritocrática.
Os resultados mais práticos são evidentes: a produtividade do sector público saiu reforçada e não existe qualquer entidade estatal que possa favorecer determinadas carreiras, nomeações ou concursos por razões políticas.
Dinamarca. Também neste país escandinavo o combate à corrupção é antigo – ainda no século XIX, para fazer face a uma crise económica, foi criado um sistema de tolerância zero na administração pública. A Transparência Internacional indica, além disso, como causa do grande sucesso dinamarquês no combate à corrupção as instituições fortes e independentes do sector judicial. Mas Gert Tinggaard Svendsen, professor da Universidade de Aarhus, vai mais longe, dizendo que, apesar de as leis penais dinamarquesas não serem especialmente pesadas, há uma dureza implacável nos mecanismos de punição. Ou seja, as penas são aplicadas rapidamente e efetivamente cumpridas.
Além disso, a Dinamarca tem um sistema bastante avançado em matéria de transparência e controlo dos cargos públicos e criou instrumentos de fiscalização e combate à criminalidade económica junto das entidades do sector financeiro. Veja-se, a este propósito, o que se passou com o Danske Bank: o maior banco dinamarquês foi recentemente alvo de reprimendas por parte da entidade reguladora por ter sido incapaz de implementar medidas de combate ao branqueamento de capitais. Em primeiro lugar, porque o banco não se opôs a uma série de operações financeiras duvidosas, e também porque não tinha um funcionário exclusivamente responsável pela área de combate à entrada no sistema financeiro de dinheiro com origem em atividades ilícitas. Resultado? O banco admitiu que falhou, que fez muito pouco e muito demoradamente em matéria de cumprimento da legislação, houve demissões e já está em processo de aceleração no sentido de convergir com as recomendações do regulador.
Que caminhos possíveis existem para melhorar?
O debate sobre o combate à corrupção é intenso e, se há ponto em que todos concordam, é este: não é tarefa fácil. Como acima se viu, os melhores países em matéria de combate à corrupção não começaram a sua batalha ontem. Obter resultados, nesta matéria, implica esforço e persistência durante anos para atingir o grau de confiança nas instituições públicas que hoje apresentam. Claro que não há regimes perfeitos. Claro que haverá sempre casos de corrupção. Mas o trabalho que se faz nesta matéria, criando mecanismos de prevenção e de punição ágeis e duros, acaba por gerar a tão ambicionada cultura de transparência e de responsabilidade – e um sentimento social de confiança.
Para os países que estão menos avançados neste combate, existe o “sentimento social de ineficácia” (relembrando uma expressão do juiz do Supremo Tribunal Federal brasileiro, Luiz Barroso), que é necessário enfrentar. Se é verdade que os comportamentos que estão aqui em causa são, por si só, de elevada dificuldade probatória, não é menos verdade, então, que este tipo de criminalidade carece de mecanismos punitivos especiais e de um sistema processual específico que, não obstante possa e deva ser alargado a outros tipos de crime, devem visar, acima de tudo, a destruição da ideia de que é o infrator aquele que sai sempre beneficiado. Seja através da insuficiência probatória, seja através das garantias constitucionais, seja através do sistema de recursos, da lentidão processual ou até da parca aplicação de penas de prisão efetivas e rapidamente aplicáveis, parece que os infratores estão sempre em vantagem.
No Brasil, um país que se tem visto enredado em diversos casos mediáticos de corrupção, o Ministério Público avançou com o projeto “Dez medidas contra a corrupção”, que tem seguido o seu caminho em termos de processo legislativo. Nesse projeto, avançava-se com a instituição de diversos mecanismos legais de prevenção da corrupção: a criação de um teste de integridade para agentes públicos; a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos; aumento das molduras penais; racionalização dos recursos judiciais; restrição do habeas corpus; aumento dos prazos de prescrição; redefinição dos conceitos de provas ilícitas; responsabilização de partidos políticos por atos praticados durante o exercício dos seus mandatos; alargamento dos pressupostos da prisão preventiva; objetivo de recuperação do lucro do crime.
No último Pacto da Justiça, optou-se por deixar de fora o enriquecimento ilícito e a delação premiada. Terão feito bem?
Na senda das iniciativas legislativas, formais ou informais, de combate à corrupção vindas da magistratura, também em Portugal têm surgido propostas concretas. Recentemente, o juiz Carlos Alexandre defendeu, nas Conferências do Estoril de 2017, uma série de medidas para o efeito, de entre as quais saliento:
- A delação premiada;
- O regime especial de proteção de testemunhas;
- A criminalização do enriquecimento ilícito;
- A vinculação das entidades bancárias à obrigação de não eliminar registos de contas;
- A revisão do quadro normativo das ações ao portador;
- A restrição da aplicação do princípio da presunção de inocência e do in dúbio pro reu.
- Simplificar a legislação processual;
- Reduzir as garantias constitucionais.
Também Luís de Sousa, no acima citado ensaio da FFMS sobre o tema, avançou com a necessidade de rever o sistema de recursos – um tema que esteve há relativamente pouco tempo em discussão em Portugal e no Brasil a propósito da prisão de Lula da Silva – cuja discussão, pelo menos, não me parece de descurar. Além disso, é de salientar também o debate sobre a regulamentação do lobbying, um tema que nos tem interessado menos do que devia e sobre o qual a Assembleia da República se tem debruçado – a par da criação de novos mecanismos de transparência, como a criação de um código de conduta dos deputados ou da criação de mais uma entidade fiscalizadora para as declarações de património dos parlamentares, por exemplo.
Enriquecimento ilícito e delação premiada: dois tabus?
O Presidente da República pediu e os vários organismos e entidades do sector judiciário aceleraram no sentido de ser criado (mais um) Pacto para a Justiça. Magistrados, advogados, solicitadores e funcionários judiciais chegaram a um consenso que incluiu, em matéria de combate à corrupção, medidas como a suspensão dos prazos de investigação enquanto se encontrar pendente a resposta a cartas rogatórias ou a definição do catálogo de crimes que podem integrar o conceito de criminalidade económico-financeira. No entanto, optaram por deixar de fora o enriquecimento ilícito e a delação premiada. Terão feito bem? Afinal o que está em causa quando se discutem estes dois temas?
Enriquecimento ilícito. Depois de dois chumbos no Tribunal Constitucional, o tema voltou este ano à agenda mediática. Em 2015, quando o Presidente da República solicitou a fiscalização preventiva, estavam em causa as seguintes normas:
- Nº 1, artigo 1 que aditava o artigo 335.º-A ao Código Penal: “Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados é punido com pena de prisão até 3 anos” – pena que podia ser agravada até cinco anos se a discrepância fosse superior a 500 salários mínimos.
- Nº 2, que adita o artigo 27.º-A: “O titular de cargo político ou de alto cargo público que durante o período do exercício de funções públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva obtiver um acréscimo patrimonial ou fruir continuadamente de um património incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou a declarar, é punido com pena de prisão de um a cinco anos” – pena que podia subir até um máximo de 8 anos se a discrepância fosse superior a 350 salários mínimos.
Os juízes do Tribunal Constitucional entenderam que a incriminação do ‘enriquecimento injustificado’, tal como feita pelo diploma da Assembleia da República, não só não cumpria as exigências decorrentes do princípio da legalidade penal como, ao tornar impossível divisar qual seja o bem jurídico digno de tutela penal que justifica a incriminação, violava o princípio da necessidade de pena.
O que estaria em causa – e o que se mantém até hoje em discussão – é a questão da inversão do ónus da prova: a criminalização do enriquecimento ilícito dificilmente terá outros contornos que não façam com que, em vez de ser o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal a produzir a prova, sejam os investigados a ter de demonstrar a origem lícita da sua fortuna. O argumento tem méritos, de facto. Mas será que, visando a criminalização do enriquecimento ilícito constituir uma “arma preciosa para perseguir corruptos”, na expressão do juiz Carlos Alexandre, e considerando que a medida é socialmente aceite em prol da realização da justiça penal e do combate à corrupção, faz sentido manter a rigidez axiológica neste debate?
Delação premiada. A medida vem importada do Brasil e dos sistemas anglo-saxónicos, será discutida no Parlamento por via de uma petição pública, e não é nada consensual. O gabinete da ministra da Justiça já disse que a delação premiada pode violar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e que o regime brasileiro não tem correspondência com os princípios do processo penal português; a procuradora-geral da República diz que o tema merece um debate amplo; vários académicos têm alertado para os perigos do populismo penal por causa desta medida. À direita, os partidos são tendencialmente favoráveis a ela, à esquerda são tendencialmente contra. Os sindicatos dos magistrados do Ministério Público e dos Juízes mostram-se favoráveis; a Ordem dos Advogados não concorda com a medida. Ninguém se entende.
A delação premiada é, no fundo, uma ferramenta processual que abrange quem conheça ou quem tenha sido cúmplice da prática de crimes e que decide colaborar com a justiça no processo de apuramento da verdade material. Mas muitas questões aqui se levantam: a delação premiada pode significar que o Ministério Público deixa de investigar? Não conduzirá isso a uma quebra das garantias de defesa dos arguidos, nomeadamente dos inocentes? Não estaremos a colocar em causa o princípio do processo justo?
Mais uma vez, as questões não deixam de ser pertinentes e de levantar problemas graves. Mas a solução não é inédita, mesmo em Portugal, uma vez que estes mecanismos de prémio a quem colabora com a justiça já existem nalguns tipos de crimes, como é o caso do tráfico de estupefacientes. Essencial é que, a instituir-se a figura da delação premiada no combate à criminalidade económico-financeira, não se percam de vista alguns pontos essenciais para que os méritos do nosso sistema processual penal não sejam beliscados: em primeiro lugar, que a mera delação, por simples testemunho, não pode chegar, não pode ser dispensada a investigação, a reprodução de prova documental e o cruzamento com outros meios de prova. Em segundo lugar, que ao arguido seja mantida a faculdade de contrariar os factos resultantes da colaboração premiada E, ainda, que a mera delação sem suporte probatório ou que a investigação venha a concluir ser falsa não coloque em causa a aplicação do regime da denúncia caluniosa.
O que retirar de tudo isto? Quatro ideias-chave que puxam por uma reforma da Justiça
Primeiro: não há combate à corrupção sem mecanismos de transparência a montante dos processos judiciais. Uma sociedade e um Estado efetivamente abertos e livres, e um ordenamento jurídico simples, ágil e sem alçapões, são o primeiro passo para que se criem sentimentos de confiança nos agentes públicos e nas instituições. Significa isto que o Estado deve permanecer, através do ordenamento jurídico, afastado de pressões de grupos de interesses, incluindo os dos partidos políticos.
Segundo: as carreiras no funcionalismo público merecem um tratamento especial. Ou seja, libertá-las dos seus próprios grupos de interesse, como são os partidos ou os sindicatos, dignificá-las em salários, em condições de trabalho e implementar medidas objetivamente meritocráticas.
Terceiro: a justiça precisa de ser desburocratizada e agilizada. É necessário rever o quadro dos meios probatórios, é imperativo criar uma forma de dar cumprimento às condenações dos tribunais de primeira instância, evitando o caráter dilatório de muitos recursos, e é ainda fundamental instituir novas tipificações penais e processuais que reprimam condutas ilícitas e pouco éticas.
Quarto: falta muito por fazer e muito por discutir nesta matéria. E, acima de tudo, que era muito proveitoso se os portugueses sentissem, da parte de quem debate e de quem legisla, que existe de facto uma vontade inabalável de dotar o Estado e as instituições de mais transparência e de menos corrupção.
Ora, para que estas ideias-chave tivessem valor, seria importante que não ficássemos sempre com a sensação de que, a cada reforma da Justiça proposta ou a cada medida mais dura avançada, a rejeição é automática porque coloca em causa princípios estruturantes do nosso Estado de Direito. Afinal, há mesmo vontade de combater a corrupção em Portugal? Esse é o debate fundamental – porque, demasiadas vezes, parece faltar essa vontade. Sim, os princípios do Estado de Direito não podem, de facto, ser de todo esquecidos ou afastados. Mas há caminhos possíveis. E um Estado que se presta a não tentar ser dos melhores no que diz respeito à transparência e ao combate à corrupção, de Direito também já parece ter muito pouco.
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