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quarta-feira, 6 de junho de 2018

Prudência, dizia o ditador

Ladrões de Bicicletas


Posted: 05 Jun 2018 06:23 PM PDT

Imagem já não sei se do filme "No", se do documentário "Chicago Boys"

Em 1988, a perder a campanha de um referendo que se pretendia ser plebiscitário, o general Augusto Pinochet apelou à prudência dos chilenos. Não votem "No". Não queiram deitar a perder todo o sacrifício feito.
O que é que os chilenos poderiam perder?
A economia crescia, mas esses ganhos eram desigualmente repartidos. O milagreapenas fora conseguido pelos economistas conhecidos por Chicagos Boys com a quebra de liberdades fundamentais, com as tropas no governo e as polícias na rua. De 1980 a 1989, os gastos públicos com a saúde caíram 42%, os da educação 23%, os salários reais subiram 3% em dez anos mas ficando 10% abaixo do valor de 1970, o rendimento mínimo desceu 34%.
Só a ideia de prudência tem pressuposto todo um diagnóstico das causas das crises verificadas: a crise das dívidas públicas, motivadas por défices orçamentais elevados, em que no centro está o Estado. Esse diagnóstico está errado. E como tal, a terapia conexa - a austeridade, a contenção, a prudência - não resolve nenhum problema. Pior: evita que se olhe o problema de frente. Mas não se quer olhar o problema de frente porque isso seria olhar de frente o centro do poder e, como tal, pôr em causa a actual estrutura do poder.
A aplicação da prudência era, no Chile, a forma de manter essa realidade, essa distribuição de poder. Ao mesmo tempo, aproveitava-se para culpabilizar as políticas redistributivas da esquerda.
O mesmo apelo à prudência foi feito na Grécia em 2015, com o Syriza estava no poder. Para mostrar quão prudente poderia ser um governo de radicais, a equipa de Tsipras foi além das metas. Em vez do plano de Varoufakis, que previa um saldo orçamental primário de 1,5% do PIB complementado com uma reestruturação da dívida pública (única forma de solver o problema de base, criado pelo sistema financeiro corruptamente mantido pelo BCE, apoiado numa comunicação social falida e obediente), aumentou a meta para 3,5% do PIB, durante anos e anos, com uma vaga promessa de reestruturação no futuro.
Dois pontos percentuais a mais era o mesmo que esfolar vivo um povo já em plena crise social aguda.
E tudo por receio que o BCE fechasse a torneira de financiamento aos bancos e colocasse os gregos em bichas para retirar dinheiro das caixas multibanco. Havia alternativa?

Segundo Yanis Varoufakis, sim.
Primeiro, a alternativa seria realizar uma reestruturação da dívida como foi feito com a Alemanha no pós-guerra. Essa solução - apesar da História - nunca teve o aval de quem manda na Alemanha, porque prejudicaria a Alemanha e beneficiaria quem actualmente beneficia a Alemanha, através de uma moeda europeia desequilibrada que acentua esse desequilíbrio.
A outra alternativa era enfrentar esta realidade desigual: ganhar poder de fogo, sem falsos bluffs. Isso far-se-ia preparando soluções técnicas para poder virar a mesa do jogo. Preparar-se para a criação de uma moeda paralela que circulasse electronicamente, deixar falir o banco central (sucursal do BCE) e criar um novo banco central, revelar a insustentabilidade da dívida e fazer os credores pagar o que tinham feito na Grécia, não aceitar um resgate para pagar aos credores os seus desmandos que poria o povo a pagá-los, com a austeridade.
Ia ser difícil? Dificílimo. Mas era uma questão de respeito próprio nacional.
Ou seja, foram os apelos à prudência que mantiveram o mesmo tipo de poder, de rédea curta (apesar de um referendo contra o regime europeu), subjugando um país ao poder em Frankfurt - em que já não se sabe se o BCE é a ponta de lança do sistema financeiro europeu, ou se é a sua verdadeira cabeça - nunca resolvendo nenhum dos problemas de fundo, porque a dívida é a fonte do poder. Mas cá os nossos comentadores achavam tudo muito bem. Os mercados até tinham reagido bem...
Recordam-se agora de todos os apelos à prudência para que o Governo de Portugal em 2015, apoiado à esquerda, não desfizesse o que fora feito pela direita, não "deitasse fora" todo o sacrifício feito por todos? Recordam-se de todas as críticas ao OE de 2017 por ser contraccionista e esconder a austeridade? Era a forma de o governo ser prudente, sem que se perceba por que razão foi criticado à direita por o ser.
E relembram-se agora de todos os recentes apelos à prudência quando de todos os lados se critica os défices além do previsto e se coloca em causa a forma de gestão orçamental do recém-nomeado presidente do Eurogrupo? "Esperemos agora que a sorte continue a proteger António Costa para não pagarmos um preço elevado por essa falta de prudência." Ou ainda de outro: "A prudência não está na moda".
Para perceber ao que conduz tanta prudência - que no fundo não resolve nenhum dos problemas reais e apenas mantém uma forma de poder -, para perceber que poder está instalado na Europa e que poder necessariamente Centeno vai servir, aconselha-se vivamente a leitura do livro de Yanis Varoufakis, Comportem-se como adultos - A minha luta contra o establishment na Europa. Sente-se muito o ego do ex-ministro, mas eu acredito que o que ele conta é inteiramente verdade.
E de cada vez que ouvirem António Costa usar o argumento do sacrifício feito por todos, pensem que essa é a forma prudente do primeiro-ministro já estar a ceder e a defender a prudência que mantém no poder um certo tipo de poder.
Esse é um problema que o PS terá de resolver por si. Para onde quer levar os portugueses?

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